‘Os laços de família’ reforça o estilo e a técnica de Clarice Lispector
O conto ‘Os laços de família’, que integra a antologia ‘Laços de família’, da autora naturalizada brasileira e que vivia em Pernambuco Clarice Lispector, sintetiza bem a proposta do conjunto de textos narrativos, porém não só pela questão da nomenclatura em si, mas, principalmente, pelo estilo proposto na narrativa, tanto no que tange a forma quanto no quesito conteudista. Clarice propõe uma linha de personalidade na relação entre o eu, e nas relações interpessoais, sobretudo entre as entidades familiares.
O enredo do conto apresenta Catarina, filha de Severina, dona de casa que recebe a mãe para duas semanas em sua residência, muito a contragosto de Antônio, seu esposo que, na despedida, fingira à sogra que sentia pela ausência dessa em sua casa. Após a despedida, mãe e filha entram no táxi a caminho da estação do trem e, dentro do veículo, o clímax do conto acontece. Entre conversas aleatórias e a frase interrogativa contínua de Severina à filha: “não esqueci nada?”. Isso prossegue, e no meio do percurso uma súbita freada bagunça as malas, mas, nesse momento, parece bagunçar também as personagens.
Ambas encontram-se, de certa forma, fora dos seus eixos, como a própria Lispector coloca: “de repente envelhecida e pobre”, mas, como de repente? Aqui já temos uma das características latentes da escrita e da literatura como um todo da autora, colocando situações longevas em contextos efêmeros, num passe de descoberta, geralmente do eu, mas nessa cena, aparentemente, das personagens. Catarina começa a notar sua mãe, numa circunstância inédita a vê envelhecida, e o próprio narrador passa, a partir disso, a tratar Severina como “a velha”, numa epifania clara desse entre os laços dessas personagens que, na teoria, deveriam ser próximas, mas não eram.
Essa proximidade falta-lhes, inclusive, no contexto físico, pois, no momento da bagunça pós freada, o narrador aponta que essa catástrofe trouxe “uma intimidade de corpo há muito esquecida”. Claro, mais uma importante característica da literatura Lispectoriana, o paradoxo. Essa intimidade, ou falta de, na relação entre mãe e filha é perturbadora para ambas, mas é claro que mais para Catarina, que se vê incomodada com a incessante pergunta da mãe: “não esqueci de nada?”, a ponto de que pensa que a mãe esqueceu-se de muitas coisas na vida, inclusive dela mesma, porém “agora era tarde demais” para recuperar este tempo perdido no laço familiar, situação tão atual como nunca, em um conto que foi escrito nos anos 1960.
A narrativa segue, a filha ainda parece catatônica ao ver a mãe se despedir e “desaparecer” de seu campo de visão no trem. A filha teria que voltar para casa e lidar com outra preocupação tão comum das avós, colocada por sua mãe ainda na ida. Em sua opinião, seu neto era “magro e nervoso”, e Catarina concluíra que isto era um fato, assentindo com “a velha”. No caminho de volta para casa, parecia menos atônita, mais serena, ao caminhar pelas ruas.
Ao regressar, a mulher se depara com o seu esposo, na sala, “tomando o seu sábado”, e aí as coisas mais incríveis do conto acontecem. Catarina é tomada por um instinto maternal nunca antes sentido e, com isso, espera dar ao seu filho, tudo de uma vez, o que não pôde dar-lhe outrora. Afora as questões do texto em si, a narrativa, o que a Clarice tenta nos mostrar é que, com a descoberta (a epifania), a mãe poderia, enfim, não igualar-se à avó do seu filho, sendo distante. Porém, a repentina aproximação causa espanto em todos, no filho, que o narrador afirma que nunca conseguiu dizer “mamãe” com tamanha verdade; em seu esposo, que preferira sempre ficar só, mas com a presença dos seus pares, aos fins de semana, e isso causa-lhe espanto; e, talvez, a própria mulher, que vê em seu âmago qualquer coisa de novo.
Esse conto trabalha não só com a perspectiva dos laços entre os familiares, tão frágeis hoje, ou mais, do que no tempo da narrativa, mas também com a questão da mulher, das suas vivências, o seu bem estar, a sua interioridade. Essa característica já é latente na grande maioria das histórias de Lispector, entretanto, aqui isso se consolida. Por exemplo, o seguinte trecho que o eu lírico coloca sobre o relacionamento entre o casal busca evidenciar essa frágil relação: “Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa”.
Essa perspectiva feminista fecha com chave de ouro uma retórica que é Lispectoriana, sobretudo. Ratificar o entendimento entre os personagens para uma culpa da mulher em ser, talvez, orgulhosa por sair de um relacionamento humilhante é um cerne literário, e justo, ao que nos consta, sobretudo para um entendimento moderno e pós-moderno, e aí vamos precisar colocar a autora nessa corrente modernista, e ficará fácil compreender o porquê desses temas aparecerem tanto em sua literatura.