[Conto] Sonho após a morte
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O que há após a morte? Há a tão esperada vida eterna? Será que há escuridão? Na realidade, não há nem um, nem outro. Assim como quando dormimos e nosso cérebro nos faz sonhar, quando morremos não é diferente. Basicamente, quando você morrer, irá viver em seu próprio sonho eternamente.
Izabella estava internada em estado grave, completamente dependente de aparelhos para sobreviver, seus tios conversavam do lado de fora do quarto do hospital, enquanto a observavam pela janela.
— Disseram que ela não irá sobreviver. — Disse a tia com um pesar na voz.
— Ela não tem chance alguma… — Disse o tio dando um longo suspiro em seguida. — Como ela pôde ter tanta falta de sorte? Tão jovem… Sempre tão dedicada no trabalho… Por que pessoas más vivem nesse mundo? — perguntou o tio, sem esperar uma resposta.
— Com licença? — disse uma voz feminina fraca, os dois tios voltaram-se para uma garota de aproximadamente quatorze anos que estava em uma cadeira de rodas. — O que houve com essa mulher? — perguntou ela, após dias de curiosidade e somente naquele momento tivera a oportunidade de perguntar.
— Oh, nossa pobre sobrinha… — Lamentou a tia. — Ela estava dirigindo de volta para casa após um longo dia de trabalho, o trânsito estava impossível, ela acabou batendo no carro da frente. Ela foi muito educada com o dono do outro carro, ambos conversaram e trocaram os números de telefone para entrarem em contato mais tarde, afinal o dano havia sido bastante superficial, mas… — A mulher fez uma breve pausa, colocou a mão no peito e continuou: — Depois de voltar para o carro e continuar o seu trajeto normalmente, minha sobrinha havia sido seguida por aquele dono do outro veículo, enquanto ela tentava abrir o portão de sua casa rapidamente, o homem veio com um pedaço de madeira e a acertou na cabeça. Os médicos dizem que ela foi brutalmente violentada e espancada, está em uma condição terrível, seu cérebro está falhando… Ela não irá durar muito tempo.
Imagem: deviantart.com |
No quarto, Izabella estava adormecida e seu sonho já estava começando. Apesar de seu coração ainda continuar batendo, o cérebro da moça acabara de morrer. Enquanto os médicos entravam às pressas em seu quarto e as máquinas apitavam desesperadamente, Izabella teve a mesma sensação de quando estamos quase dormindo e começando a sonhar. Sentiu-se tonta por um breve momento e então acordou. Estava sentada no meio fio, em frente à casa de seus pais. Estava calor, ela se sentia mais leve, olhou para suas pernas, elas eram pequenas e finas, observou seu corpo e percebeu que ele era pequeno e magro, ela tinha 10 anos novamente.
Izabella ficou em pé calmamente. “O que eu estou fazendo aqui? O que está acontecendo?”, pensou. A pobre moça não sabia que havia morrido, mas de certa forma, ela podia sentir isso, ela entendia que nunca mais poderia deixar aquele sonho e que dessa vez, o sonho não iria parecer real, ele era real. Começou a andar pela calçada e ver seu antigo bairro outra vez, admirou as casas que já não existiam mais na realidade. Antes mesmo de andar uma quadra, Izabella lembrou-se de Laila, sua cadela que já havia morrido, porém que estava perfeitamente bem e viva quando ela tinha 10 anos de idade. Correu para casa e ao parar para abrir o portão, percebeu que não estava nem um pouco cansada como quando corria aos seus 22 anos e sentiu-se muito bem. Após fechar o portão, encheu os pulmões de ar e chamou o mais alto que pôde pelo nome da cadela, exatamente como ela fazia aos 10 anos.
Laila veio correndo, ela era uma grande e saudável labradora. Parou aos pés de Izabella e lambeu-lhe o pé, como de costume. Izabella ficou pasma, como aquilo era possível? Ela abraçou Laila e lhe deu carinho. Subitamente as nuvens começaram a se juntar e aquele mundo ficou escuro em questão de segundos, Izabella olhou para o céu e sentiu medo. “Por que estou com medo disso?”, perguntou a si mesma, “Ah, sou uma criança novamente…”, concluiu.
Izabella deixou a cadela para trás e pensou em entrar em casa, mas sentiu que deveria ir explorar aquele novo mundo. Saiu pelo portão e o céu começou a trovejar, entretanto, não parecia que iria chover. Ela desceu algumas quadras e quando chegou a rua principal, os carros passavam lentamente e ela pôde ver alguém familiar do outro lado, era sua mãe.
— Mamãe! — chamou Izabella, acenando com os dois braços para que sua mãe a visse.
— Fique aí, já estou indo! — respondeu a mãe, olhando para os dois lados da rua antes de atravessar.
Izabella se sentiu bem ao ver sua mãe novamente, enquanto a esperava, assistiu ao que seria o seu sonho eterno. Quando sua mãe iniciou a travessia, aparentemente do nada, surgiu um caminhão e a atropelou. Seu corpo foi arremessado para longe. Izabella ficou em choque e não sabia o que fazer. O motorista do caminhão continuou a dirigir, como se nada tivesse acontecido e as pessoas que estavam por perto também pareciam sequer ter visto aquilo acontecer. A menina correu para a direção em que o corpo havia sido arremessado, mas não o encontrou. Rompeu-se em lágrimas, sentia uma angústia crescer em seu peito, então o inesperado aconteceu, seu pai apareceu.
— Izabella, venha aqui. — Disse seu pai carinhosamente, que estava vestindo um terno preto e estava ao lado de um caixão.
Izabella percebeu o cenário daquele mundo ondulando e transformando-se em outro. De repente, ela estava em uma capela, o corpo de sua mãe estava sendo velado e seu pai ali, estendendo a mão para ela. Ela pegou a mão do pai e ele a puxou para si, dando-lhe um abraço. Sem saber o porquê, ela começou a chorar novamente. O pai a ergueu em seu colo e o caixão ao lado abriu-se sozinho. Izabella pôde ver sua mãe morta lá dentro, ela estava muito pálida, mas parecia bem para quem acabara de ser atropelada por um caminhão.
— Irei sentir falta dela… — Lamentou o pai.
— Eu também. — Disse Izabella.
— Talvez você devesse ir com ela. — Disse o pai.
— O quê? — perguntou Izabella.
O pai então tentou colocá-la no caixão com a mãe, Izabella começou a entrar em desespero. Tentou gritar e pedir por ajuda, pedir para que ele parasse, mas sua voz simplesmente não saía e ela apenas conseguia lutar com seus braços e suas pernas finas e pequenas. Toda a sua força não foi o suficiente, seu pai fechou o caixão com ela lá dentro e tudo ficou escuro.
As coisas ondularam mais uma vez e ela estava em frente a sua casa novamente. O sonho não começou de novo, muito pelo contrário, Izabella entendeu que estava vivendo em um pesadelo e que ele nunca iria acabar, porque ela nunca mais iria acordar.
Todos os dias, Izabella vivia um pesadelo diferente, porém quase sempre no mesmo cenário. Com o tempo, ela se acostumou com as pessoas morrendo de modos inexplicáveis, se acostumou com as mudanças para outros cenários que não faziam o menor sentido, com pessoas, monstros e coisas que simplesmente surgiam do nada. Ela apenas demorou a se acostumar com situações de mudança súbita, como quando ela estava apenas caminhando pela rua e no próximo segundo já estava sentada à mesa com sua família almoçando.
Nem sempre Izabella era criança também, algumas vezes ela se tornava bebê, adolescente, adulta, idosa, até mesmo virava uma flor do jardim da casa de sua avó ou virava outra pessoa, como o seu pai ou o namorado de sua irmã. O sonho nunca acabava, não tinha início, meio ou fim. Ele simplesmente acontecia continuamente.
Izabella também podia descansar e aproveitar o mundo do seu sonho, por alguns minutos, enquanto nada acontecia, ela podia ler um livro que sempre quis ler — apesar de que ele poderia desaparecer a qualquer momento —, podia comer muito — mesmo sem sentir fome —, podia ouvir músicas antigas e ficar deitada em sua cama. Nesses momentos em que ela não estava fazendo nada, ela invejava as pessoas que ficavam presas em outros tipos de sonho que não eram pesadelos, como naqueles sonhos em que se pode mandar em tudo: se você quiser voar, basta imaginar que está voando e irá fazê-lo.
Inevitavelmente, cada pessoa possui o seu próprio sonho ao morrer, não é possível escolher se ele será perfeito ou virá a ser um pesadelo terrível. Izabella estava tendo somente um pesadelo leve, não chegava a ser dos piores. Logo, ela pôde se adaptar àquilo e entender como as coisas funcionavam, afinal, ela teria de vivê-lo eternamente.