Esses meninos que fugiram
“Que nestas páginas você aprimore seu amor às belezas da vida, ao prazer de ser feliz na simplicidade, para ter na fronte sorridente estampada a esperança” (…)
Esse texto é parte da dedicatória de um livro de Hermann Hesse, que recebi de presente, em maio de 1972, quando fazia o preparatório ao vestibular.
Desde então, nunca parei de ler o autor. O livro-presente era “O jogo das contas de vidro”. O impacto que Hesse causou, primeiramente no jovem que eu fui; e, agora, repetido no velho em que me tornei – foi (é) intenso.
O livro de Hesse foi publicado quando o autor se encontrava perto dos setenta anos. Eu o li primeiramente aos 17 anos.
Agora, aos 64, o livro do Hesse continua em minha memória de leitor e na memória afetiva. Foi pela influência de uma amiga de escola, uma garota bem mais experiente, que eu tive acesso aos “Jogo dos avelórios”. Comecei através deste livro a admirar o escritor alemão que adotou a nacionalidade suíça.
José Geraldo Nogueira Moutinho diz, no prefácio do livro que no portão do jardim da casa do romancista alemão-suíço podia se divisar uma inscrição discreta, porém incisiva:
“Quando um homem atinge a velhice
Cumprida sua missão
Tem o direito de confrontar
A ideia da morte em paz”.
Parece haver certa misantropia na legenda, o que, de modo algum, retira os méritos de Hermann Hesse, alemão-suíço que é parte importante do elenco de humanistas que nasceram no final do século XIX (em torno de 1870-80), tais como André Gide, Proust, Thomas Mann, Rilke, Valéry, Joyce, Max Scheller, Musil, Hermann Broch, Eliot e outros.
Procurei ao longo da minha vida conhecer essa família de “seres marcados pelo sofrimento”, para usar a expressão de J. G. Nogueira Moutinho –, e estes começaram a apontar ao adolescente que eu fui caminhos interessantes e me fizeram resistente à fuga do real.
Enquanto via alguns meninos de minha temporada no Abrigo em Anápolis empreendendo fugas – das quais uns voltavam outros, não; empreendi uma “fuga para dentro”. Hoje, reflito sobre as páginas de Hesse que li em “O jogo das contas de vidro” e que não canso de reler:
“Admitamos que existe liberdade, mas que ela se limita à escolha da profissão. Depois disso acabou-se a liberdade. Desde os estudos feitos na universidade, o médico, o advogado, o técnico estão presos a um currículo escolar muito rígido, que termina com uma série de exames. Caso eles passem nos exames, recebem seu diploma e poderão exercer sua profissão com aparente liberdade. Serão, porém, escravos de poderes baixos, vão depender do sucesso, do dinheiro, do seu orgulho, da procura da fama, da simpatia ou antipatia que despertarão nos outros. Têm que se candidatar a eleições, ganhar dinheiro, tomar parte na luta brutal das castas, das famílias, dos partidos e dos jornais. Em compensação, têm a liberdade de obter sucesso e fortuna e ser odiados pelos que não os tiveram, ou vice-versa.
“– Creio que nunca observei como ela [a Escola] é linda – disse o companheiro de José. – Pois é, isso talvez aconteça porque eu a vejo pela primeira vez como uma coisa que tenho de deixar e da qual preciso despedir-me.
“Não vás rir de mim, mas esses meninos que partiram têm para mim, apesar de tudo, algo de imponente, assim como o anjo rebelde Lúcifer tem certa grandiosidade. Talvez tenham feito uma coisa errada, podemos admitir que cometeram um erro, mas, seja como for, fizeram alguma coisa, realizaram algo, ousaram dar um salto e é preciso coragem para isso. (…) Isso significa a possibilidade de abandonar qualquer coisa, levar as coisas a sério, ora… dar um salto! Eu não tenho desejo de dar um salto para voltar ao meu antigo lar e à minha antiga vida, eles não me atraem, eu quase os esqueci. Mas gostaria, quando chegar a hora e for necessário, desapegar-me também e saltar, não para voltar a um estado inferior, mas para a frente e para cima.”
Ultrapassados os 60 anos de experiência, admito que ainda estou em rota, no caminho à procura desse “salto no ser” de que nos fala Martim Vasques em “Crise e utopia[i]”, repercutindo Mário Ferreira dos Santos; sinto-me como aquele homem que “descobre-se dentro de uma procura por uma ordem refletida não só no mundo onde vive, mas também dentro da sua alma, em que se revela uma medida invisível, que só pode ser corretamente compreendida através da experiência no ser”.
E as palavras da dedicatória da amiga W. no livro do Hesse ecoam com doçura em minha alma anciã:
“(…) A esperança que só há no sorrir franco que brilha nos olhos e vem da alma; e pelos atos, dela imbuídos diz-nos que ainda vale a pena.
“A luta é a alegria da vida. Que você sempre tenha forças para tanto” (W., Anápolis, 25/05/1972).
E deixo o leitor com um poema intitulado “Lamento”, atribuído
ao personagem José Servo jovem pelo narrador de “O jogo das contas de vidro”:
“A nós não foi doado um ser.
Somos apenas correnteza,
Fluímos de bom grado pelas formas:
Pelo dia e a noite, a gruta e a catedral.
Por elas penetramos, incitados
Pela sede de ser.
“Assim nós vamos sem repouso,
Enchendo as formas uma a uma,
Sem que nenhuma delas seja para nós
A pátria, a ventura ou a dor.
Estamos sempre a caminhar,
Somos sempre visitantes,
Não ouvimos o apelo do campo nem do arado,
Para nós não cresce o pão.
“Os desígnios de Deus sobre nós não sabemos,
Ele brinca conosco, barro em sua mão,
O barro que é mudo e tem plasticidade,
Que não sabe nem rir nem chorar:
Barro amassado, porém jamais queimado.
“Ah! quem nos dera transformar-me em dura pedra!
Permanecer enfim!
É o que nós aspiramos pela eternidade,
Mas nossa aspiração é apenas
Eternamente um medroso tremor,
E não virá jamais a ser repouso em nossa via.”
[i] VASQUES DA CUNHA, Martim. “Crise e utopia: o dilema de Thomas More”, Campinas (SP): Vide Editorial, 2012, p. 37, notas 33-42.
O amigo havia mencionado, outrora, a dedicatória, lógico, fiquei curioso. Coincidentemente, explicava para o meu filho, agora mesmo, mesmo, mesmo, que havia, desde a adolescência, resolvido escrever um livro, só que só o faria na velhice. Me lembro, como se fosse agora, o quanto me impactou a frase na tabuleta que Hermann Hesse pregou no seu portão. Queridísimo amigo Adalberto, a cada día me identifico mais com o teu lado “sofredor” e imaginar a razão dos nossos “caminhos” cruzarem-se no limiar das nossas vidas. Quero viver para ver e ler a única obra do ganhador do prêmio Nobel que não li ter a sua “tradução” e, sinto o meu coração palpitar por pensar e sentir que S. Francisco de Assis está “endossando” os nossos ideais. Até.
Dileto HENRIQUE, só aceitei o desafio de traduzir HESSE sem conhecer a língua alemã, por sua provocação. Tenho a tradução italiana, encomendei a inglesa e a francesa, para fazer uma tradução por “translação”, como “tia” Raquel de Queiroz o fez de Dostoiévski.
O primeiro livro que li conscientemente, por conta própria, foi o “Sidarta” de Hesse, descoberto na biblioteca de minha mãe, aos 13 anos. Marcou-me a busca espiritual do príncipe, que, no fundo, era a busca de Hesse e que depois me jogaria na busca de Kerouac, de Salinger, de Merton, e de tantos outros… Hesse permanece, agora, aos 44, um dos principais parceiros de busca e de caminhada… . Obrigado pelo belo texto, querido Beto…
Sérgio, caro irmão em Cristo:
Obrigado.
Que Deus nos ilumine sempre.
Abraço fraterno do seu
BETO.
Meu caro amigo Beto, que grandeza de alma meu bom amigo, quer no sentimento de artista, poeta, prosador, crítico literário, na dialética dos grandes pensadores ou como mestre que soube plantar tudo na mente e no coração de seus semelhantes. Você é de uma leveza humana incrível.
Abraços e admiração.
Álvaro Catelan
Obrigado, professor ÁLVARO CATELAN.
Encontrei o livro Sidartha de Hesse na biblioteca da UCG quando ela existia abertíssima ao público morador de Goiânia ainda na primeira avenida de frente para um campo de futebol onde hoje é a faculdade de de odontologia e farmácia da UFG. Hesse representa a literatura alemã. Mas acho que o encontrei próximo dos livros de Lobsang Rampa numa prateleira sobre religiões orientais. Uma funcionária recomendara essa leitura,Estava perto de obras sobre o pensador chamado Krishnamurti. Eu beirava os quatorze anos e fazia a oitava série. O texto de Hesse me carregou de ousadia para viajar ao Guarujá sem nenhuma providencia prudente. Fui apenas por ser um dos alunos do objetivo júnior que puderam ir ao festival de canções feitas pelos estudantes daquele ano de 1978. Hoje acho que Hesse pode ser um perigo para garotos saírem sem lenço e sem documento, assim como acho que no geral os modernos, alemães ou não, são péssimos portadores da verdade, e a maioria odeiam o Deus que os ama e que é bom de verdade, São como o nosso povo brasileiro que a mídia RJ-SP torna estrelista, vedete e prostituída.Mas continuam caídos e sem a bóia de salvação, que é entender Jesus Cristo para segui-lo com fidelidade.
Olá, NATAN.
Obrigado pela leitura e seu comentário. Como católico, não posso concordar com a afirmação de que “Hesse pode ser perigoso” – se reler a biografia de São Francisco e os poemas dele poderá notar que não há nada de anticristão nele. Dos alemães, recomendo que leia o Papa Bento XVI, principalmente, “Introdução ao cristianismo”; de Hölderlin, recomendo os poemas; de Goethe, “Poesia e verdade”; de Hans Hurr von Balthasar, “Somente o amor é digno de crédito”, e a biografia de Georges Bernanos. Talvez assim você possa rever seu conceito sobre os alemães.
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