Cavaleiros do Céu

Um menino que do alto de uma goiabeira que havia em frente à casa de tia Luzia, cantava uma música. Eu a ouvi mais tarde numa gravação do Milton Nascimento, com o título em português de “Cavaleiros do céu”. Agora, só consigo lembrar-me do menino repetindo o refrão: Y-pi-a-ê, Y-pi-a-ô… 

As primeiras lembranças motivam as últimas anotações. Murilo Mendes em suas memórias (“A idade do serrote”) fala sobre “As primeiras letras. As primeiras lutas. Perto do colégio uma serraria…serra, serrote – primeiros instrumentos hostis.” O poeta é marcado até o fim por essa idade, onde tudo é novo.

Quando penso no garoto tentando imitar a memorável versão “original” de Stan Jones (1948), me sinto pasmo por ainda ser capaz de lembrar do som exato do menino cantando na goiabeira. Também me recordo que, antes de dominar o inglês minha mulher costumava cantar pelo som das sílabas, acompanhando as músicas americanas de que ela tanto gostava, sem entender uma palavra do que era dito na letra – apenas repetindo os fonemas nem sempre corretos.

Cavaleiros do Céu

Eis-nos próximos ao Natal de 2023, tentando entender essas primeiras hostilidades. A vida é especialista em substitui-las e nos dispor com uma carga de proteção que nos prepara para o próximo golpe, mesmo quando sabemos estar bem próximos de encerrar um ciclo.

O final de ano nos traz perspectivas de iniciar esse novo ciclo. Diante de uma velha crônica do Gustavo Corção, me sinto próximo a “desatar a mordaça do doido que quer dançar e cantar…” Espero não desapontar meus leitores cristãos por não trazer aqui nenhuma memória sobre a cerimônia do Natal, mas tenho que ser honesto com meus sentimentos e lembranças – minha memória é de uma independência campeã e herética.

A memória, ensinam os gregos antigos, tem uma espécie de sinete ou anel real com o qual você pode gravar na mente a sua “marca”.

Porém, há um pressuposto sobre o que se grava. Platão dizia que a memória funciona a partir de dois tempos, o da inscrição do traço e o de sua recordação, sendo que a relação que o traço mantém com a percepção é complexa. Eu gravei alguns poucos trechos do que vivi em minha infância – a fase lembrada por excelência e esquecida pelas pessoas que têm que pagar psicólogos, mas devo firmar cada vez mais as lembranças recentes como a “anti-idade-do-serrote”, pois, afinal, fui menino pobre, mas feliz. 

Quis o destino que a vida fosse muito bondosa comigo e me proporcionasse excelentes memórias: a expressão de alegria das minhas filhas ainda pequenas abrindo os pacotes de presentes, o entusiasmo delas ao ver o túnel de luzes da Tamandaré ou a iluminação da Polo Imobiliária. Também foi inesquecível ver o brilho no olhar do neto Rodrigo pela primeira vez diante das luzinhas da árvore de Natal.

Dos momentos recentes, lembro-me com vivacidade os três meses que passei com mulher, genro, filha e neto no Japão no Natal passado, em um minúsculo apartamento em Sumida, bairro de Tóquio. O olhar do meu neto Rodrigo recebendo o presente de Natal ainda permanece vivo em nossas retinas cansadas. O bolo de morango, tradição natalina no Japão, nos deliciou e ainda tivemos a chance de ver pequenos sinais da festa na Tóquio iluminada pelos fogos de artifício. Fomos dormir em paz naquela aventura vibrante do outro lado do mundo, que não quero esquecer. E, assim, repito o título do meu amigo e confrade Hélio Moreira “Deixem-me contar enquanto eu me lembro”.

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Hoje, aqui em Goiânia, preparamo-nos para as comemorações de fim-de-ano e para construir novas memórias, tentando cantar e dançar como deve ser quem não vive preso à idade do serrote.


A crônica Cavaleiros do Céu foi publicada originalmente no Jornal “O Popular de Goiânia”.

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