Cultura literária medieval (3)

Adalberto De Queiroz

Ainda na minha cruzada pela boa informação sobre a Idade Média, tenho sobre a mesa outro livro do consagrado medievalista brasileiro de saudosa memória – o professor Segismundo Spina, meu mestre na viagem que refaço, e para a qual convido novamente o benévolo leitor a me seguir, sempre alertando que é preciso encontrar guias seguros para entender este período da história.

Segismundo Spina é um desses guias seguros, porque nos habilita a “seguir o caminho de aventura e encantamento” que é adentrarmo-nos às trilhas da Idade Média. Não é excessivo reforçar o alerta ao incauto viajante:

O ingresso na cultura medieval, em especial a literária, não se faz sem pagarmos um pesado tributo; a compreensão dos valores dessa época exige do estudioso uma perspectiva ecumênica, pois as grandes criações do espírito medieval – na arte, na literatura, na filosofia – são frutos de uma coletividade que ultrapassa fronteiras nacionais. E uma visão de conjunto só se adquire depois de muitos anos de trato e intimidade (SPINA, 1997[i]).

Hoje, benévolo leitor, seu bilhete de viagem dá direito a um pequeno passeio por um extenso território, impossível de ser entendido em tão curta promenade – a Literatura Portuguesa da Era Medieval, por Segismundo Spina, no volume 1 da série “Presença da Literatura Portuguesa”[ii], lançada em 1961 e recentemente reeditada, sob a direção de Antônio Soares Amora.

Segundo Jean Thoraval, a Idade Média literária em França teve uma tardia estreia – no ano de 842, quando o primeiro escrito atesta a existência da “langage roman” – língua da qual se originaram, na evolução do latim vulgar, os modernos idiomas romeno, italiano, francês, provençal, catalão, espanhol e português –; e essa estreia se dá com os “Les Serments de Strasbourg”, tendo-se que esperar até o século XII para se assistirmos o surgimento dos grandes textos literários como “A canção de Rolando”, por volta de 1100 (THORAVAL, 1978[iii]).

Já a data presumível da mais antiga composição literária portuguesa, segundo Spina, é o ano de 1198 – era uma cantiga de amor escrita pelo trovador Paio Soares de Taveirós, dirigida a Maria Pais Ribeiro (a Ribeirinha), amante de D. Sancho I. A criação literária de então tem o que Spina denominou “laços de comunidade” – o movimento que se origina no sul da França – a chamada poesia provençal, para a qual já chamei atenção em artigo desta série[iv].

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Iluminura portuguesa: nobre, jogral com cítola, rapariga com castanholas
(c) Biblioteca Nacional de Portugal

Os primeiros capítulos da história literária da moderna Europa foram abertos, no curso do século XI, com os troveiros [trouvères] do norte da França e os trovadores [troubadours] da Provença. Por Provença vamos designar aqui, à revelia da impropriedade do termo, toda aquela civilização do Languedócio [Languedoc] que está compreendida entre o Mediterrâneo e o Maciço Central, os Pirineus e a fronteira italiana. Aí brotou, quando em língua vulgar também surgia uma floração épica no setentrião da França, uma poesia lírica, cuja importância é indiscutível como fonte de todo o lirismo europeu dos séculos posteriores.

Devemos como lusófonos guardar um fato relevante: que a poesia provençal, bem como a chamada “floração lírica do Minnesang na Alemanha” (Minnesängers: cantores consagrados à Minne, ao amor sutil, sublime – como nos ensina Spina); dos trovadores do norte da Itália – e até mesmo a expressão poética dos árabes na Andaluzia –, tais ondas poéticas se fixaram na Galiza e no norte de Portugal, tendo Santiago de Compostela como “centro produtor e de irradiação”. Estava na cidade dos peregrinos católicos, em visita ao túmulo do Apóstolo, centrado o “foco da elaboração literária da poesia trovadoresca”, se irradia a poesia e a música (jogralia) para as cortes de Castela (D. Fernando e Afonso X, o Sábio) e Portugal (SPINA, 2006).

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Capa do livro de Spina (11a. ed.)

O livro de Spina, agora reeditado, guarda as boas característica do original e continuará, certamente, por seu didatismo e erudição a cumprir o papel desempenhado na edição original, conforme os editores: “esta obra abriu [e abrirá] novos caminhos para o ensino da literatura portuguesa no Brasil – e ainda bem que assim foi, de vez que não era outra a intenção de seus autores”, principalmente agora em que o ensino da literatura portuguesa deixou de ser obrigatório no Brasil[v].

A poesia dos trovadores provençais é, no desenvolvimento da cultura ocidental, um momento privilegiado – alerta-nos o poeta e tradutor Augusto de Campos de quem agora celebramos o aniversário de 90 anos (Augusto nasceu em 14.02.1931, em São Paulo).

Pois bem, no artigo anterior desta série, fiz um chamado especial para que o leitor buscasse conhecer, nessa rica fonte da poesia medieval, o poeta Arnaut Daniel (1180-1210), destacado pelo tradutor paulista em “Mais Provençais[vi]” (CAMPOS, 1987); e agora enfatizo o destaque de Augusto: “a poesia provençal é um momento em que se organizam e se fixam os caracteres básicos de uma linguagem que iria prevalecer por séculos, até a nossa época.”

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O poeta Augusto de Campos, que completou 90 anos em 14/02/2021 (c)Foto Lia de Paula/MinC.

Sob esse aspecto do poeta aniversariante, cabe abrir um parêntesis para destacar as comemorações em torno da data, iniciativa de Casa das Rosas e Casa Guilherme de Almeida, que englobam a apresentação “A trova dos Trovadores[vii]“, que recomendo com entusiasmo. Trata-se de apresentação poético-musical, com melodias e textos provençais dos séculos XII e XIII, traduzidos pelo poeta Augusto de Campos. Em alguns casos, as traduções receberam melodias e harmonias criadas por Lívio Tragtenberg.

Hoje, sempre restrito ao espaço da crônica, cabe-me buscar um que outro personagem que possa servir de amostra da cultura literária medieval em Portugal, mas enfatizo a recomendação ao leitor que aprofunde seu conhecimento, saciando sua curiosidade em livros como este de Spina e outros que a vasta bibliografia do medievalista elenca ao final da obra citada (ver nota i abaixo), além é claro do suporte digital, como este site abrangente da FCSH – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob o título Cantigas medievais galego-portuguesas: corpus integral profano (obra completa, 2 vol.)[viii].

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Iluminura medieval para um poema galego-português. (c) BNP

No livro de Spina citado aqui o leitor encontrará duas grandes seções – 1ª. época medieval, cobrindo o período de 1198 a 1434 e a 2ª. época, que abrange o período de 1434 a 1527. Na primeira, ele cobre as categorias catares d´amigo, cantares d´amor, cantigas de escárnio e maldizer, a ficção cavaleiresca e a prosa doutrinal; já na 2ª., a literatura moralista e didática de Avis, a poesia palaciana e o teatro de Gil Vicente; além da poesia lírica do século XVI, fechando o volume com ampla bibliografia.

Naturalmente, é livro de filólogo e medievalista (de “arqueólogo literário”), não de poeta e, como já nos alertava Augusto de Campos, na obra citada (ver nota vi), aos estudiosos de “nobre ofício, de cunho mais propriamente científico” – tal como Spina, Raynouard e Bartsch (estes dois nominados por Campos) – “falta-lhes quase sempre a sensibilidade poética mais aguda, capaz de captar, para além das verificações de natureza estilística ou histórica, toda a riqueza expressiva e de inseri-los na circulação sanguínea da poesia de hoje”. Essa é talvez a causa, conclui Campos, do atraso na reavaliação do talento de Arnaut Daniel:

Foi [Ezra] Pound quem reassumiu o juízo crítico de Dante a propósito de Arnaut (“o melhor artífice da língua materna”), uma opinião que, como diz o poeta americano, esteve fora de moda por 500 anos, porque os poetas não foram capazes de ler provençal e os “scholars” nada entendem de poesia.

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Ezra Pound, Venice, (c) by Walter Mori, 1963

Ainda não conheço uma antologia que atualize os provençais galego-portugueses, na linha do que fez Augusto de Campos com a poesia de Raimbaut D´Aurenga e Arnaut Daniel em “Mais provençais”. A citada antologia (online) do projeto da FCSH com a Biblioteca Nacional de Portugal ainda é a mais rica fonte para o leitor interessado neste tema.

É agradável demais navegar pelo site e poder saborear aquele lado musical que é inerente à poesia do período, afinal, “a linguagem da lírica occitânica é também a fonte da poesia dos trovadores galego-portugueses” e está embebida em musicalidade. Deixo aqui para finalizar uma amostra de uma cantiga d´amigo, do poeta Martim Codax e o link para o registro fonográfico no site português, lembrando que há também uma página específica para composições e recriações modernas das obras do período.

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Cantiga original Ondas do mar de Vigo

Ondas do mar de Vigo,

se vistes meu amigo?

       e ai Deus, se verrá cedo?

Ondas do mar levado,

se vistes meu amado?

       e ai Deus, se verrá cedo?

Se vistes meu amigo,

o por que eu sospiro?

       e ai Deus, se verrá cedo?

Se vistes meu amado,

o por que hei gram coidado?

       e ai Deus, se verrá cedo?


[i] SPINA, Segismundo. “A cultura literária medieval: uma introdução”. São Caetano do Sul (SP): Ateliê Editorial, 1997.

[ii] SPINA, Segismundo. “Era medieval/Presença da literatura Portuguesa, vol. 1”, por Segismundo Spina. 11ª. ed. – Rio de Janeiro: DIFEL, 2006, 288 p. Coleção sob a direção de Antônio Soares Amora.

[iii] THORAVAL, Jean et alli. “Les grandes étapes de la civilisation française”. Paris: Bordas, 1978, 729 p.

[iv] Cf. artigo da série no link https://recortelirico.com.br/2021/01/cultura-literaria-medieval/

[v] Cf. BNCC do MEC http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase e artigo do DN Portugal links consultados em 25.02.2021 https://www.dn.pt/sociedade/literatura-portuguesa-deixa-de-ser-obrigatoria-no-brasil-5039149.html

[vi] CAMPOS, Augusto de. “Mais provençais”. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[vii] Cf. YouTube, link consultado em 25.02.2021 https://youtu.be/edlpLuYIqQk?t=95

[viii] Lopes, Graça Videira; Ferreira, Manuel Pedro et al. (2011-), Cantigas Medievais Galego Portuguesas [base de dados online]. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. [Consulta em 25/02/2021] Disponível em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt>.

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