Porque escrevo (1)

Adalberto De Queiroz

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“e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever

Carlos Drummond de Andrade

Aprender a ler com minha avó Cecília, antes de poder frequentar um grupo escolar, foi talvez a mais profunda descoberta que eu jamais tenha repetido. Ela pegava um pedaço de papel com um furo no meio (como um olho ou uma lupa) e o colocava sobre as manchetes de jornal. Vovó Cecília, literalmente, ensinou-me o bê-a-bá, na mais terna acolhida que um Hefesto pudesse ter ao ser expulso do paraíso sem poder ter uma mãe.

A alegria que hoje vejo eclodir na vida de meus netos bilíngues ao aprenderem a ler em Português, sendo nativos de língua Inglesa, só me faz valorizar ainda mais as lições de minha avó pernambucana, dadas ao menino na velha Garanhuns, que nunca mais tive coragem de visitar, guardando-a secretamente na memória, até hoje.

Houve depois uma escola que me reteve por pouco tempo, enquanto esperava uma vaga no orfanato. Quando via a professora Lya escrevendo o que eu já podia ler, pelos esforços anteriores de minha avó, acreditava que poderia também um dia escrever; e, quem sabe, ensinar outros a fazerem o mesmo. 

Tive no Abrigo uma professora inesquecível, uma baiana que atendia pelo nome de Dona Anésia, que além de letras e números, premiava a meninada com saborosos doces de sua própria lavra.

Um dos meninos, que ainda tinha dificuldades para ler, foi motivo de galhofa quando implorou: “Professora, lê, lá!”

Lê-lá virou apelido, grudou-lhe ao nome como a pecha do que ainda não sabia ler.

Os livros me perseguiram toda a vida, desde que uma benfeitora me presenteou com um livrinho inesquecível – O bugre do chapéu de anta, do Sr. Francisco Marins – é, era um tempo em que nomeávamos os escritores com o título de Sr. e Sra!

E vieram outros mais, guiados sobretudo por outra professora que me fez amar os livros, sabendo que exigem sempre dedicação, tempo, isolamento para serem sorvidos, entendidos ou, simplesmente, nos proporcionar prazer. Encontrei-a na idade adulta e tenho por ela a mais alta gratidão: a Acadêmica Ercília Macedo-Eckel.

Anos mais tarde, entre a escolha por uma carreira na área de Humanas ou de Exatas, minha mãe de criação me fez fazer a escolha que me parecia mais grata a quem me educara: fui para a Física, que nunca concluí. Pulei de galho em galho, das Exatas à Tradução, desta à Publicidade, ao Marketing, ao Comércio. Fiz-me empreendedor.

A vida e as “agruras do comércio” (a expressão é de São Tomás de Aquino), me levou a me isolar ainda mais nas páginas dos livros, dos textos digitais, das bibliotecas, nos mais diversos locais, de salas de reuniões às catedrais de silêncio que para mim se tornaram os aviões, meio de locomoção frequente nesses trinta anos dedicados ao comércio.

Voltei a viver só de e para os livros quando decidi afastar-me dos negócios. Já vai para quatro anos. Leio, regularmente, o dia todo, todo dia. Já não me alegra ir ao cinema, ver televisão – exceção que faço aos grandes acontecimentos que precisam ser reportados uma vez ao dia, à noitinha; ou ao prazer do divertimento da novela televisiva que ocupa uma hora de alguns dias na semana. 

Livros, livros, eis a minha dieta atual – e continuo magro. Sinto-me feliz, a ponto de não apenas ler, mas escrever um tantinho mais do que quando era apenas comerciante, sobretudo.

É à sombra dos poetas amados que vou gerando este texto, em busca de uma justificativa para a pergunta provocativa do amigo analista (Ítalo Campos). E assim, deixo que a sombra do menino Jorge se infiltre agora como o fizera em “Minha sombra”:

Minha sombra eu só queria
ter o humor que você tem,
ter a sua meninice,
ser igualzinho a você.

E de noite quando escrevo,
fazer como você faz,
como eu fazia em criança:
Minha sombra
você põe a sua mão
por baixo da minha mão,
vai cobrindo o rascunho dos meus poemas
sem saber ler e escrever.

Eis-me aqui, a expor “o mais íntimo do homem”, impossível sem desnudar-se. “O mais íntimo do homem” – sussurra o pensador Vicente Ferreira da Silva “consiste justamente nessa fundação poética de sua essência, nessa autoprojeção de sua fisionomia humana”. Eis-nos, homens e mulheres, pessoas que não podem (e não devem) ceder à imposição de um todo inerme, de pedra, contra o mais íntimo do nosso Ser, tão leve.

Escrevo porque desejo ser lido. Leio porque desejo “o exílio das palavras” como um Paraíso borgeano, uma enorme biblioteca, em que até possa fazer perguntas e entender o contentamento do Outro.

(*) Texto recém publicado na antologia “Porque escrevo”, Adalberto de Queiroz et alli, org. Ítalo Campos, Goiânia: Editora Kelps, 2019.

2 comentários em “Porque escrevo (1)”

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