Trastes da memória (1)
A cidade e eu. Eu e a cidade – repito este mantra como um iogue em busca de relaxamento e liberação. Só mesmo assim para compor um texto que lança raízes nas camadas profundas do meu ser. Lembrar com precisão da cidade em que fui criado parece tarefa impossível, divagar é, pois, necessário para que o texto aflore.
Nasci em Goiânia no longínquo ano de 1955, segundo alguns parentes, teria sido um sábado de Carnaval, o que foi desmentido pela Wikipedia –, mas certamente, sou o fruto do pecado e dos desejos de dois jovens – um pai ignorado e de uma mãe migrante nordestina que jamais me reconheceu, a não ser na certidão de nascimento.
Mudaram-me na primeira infância para Garanhuns em Pernambuco, donde o sotaque inicial de paraíba, quando fiz a segunda mudança – com meus tios Adalberto e Luzia, na condição de um “pau-de-arara” de volta para Anápolis, a Manchester Goiana dos anos 60. Na verdade, viajamos no carro de meu tio e a única lembrança que me resta dessa saga é cruzarmos o rio São Francisco à noite.
Em Anápolis fui criado e se não sou capaz de lembrar-me dessa cidade como a Juiz de Fora dos Nava, isso é menos por dívida à cidade do que pelo pouco talento para memorialista.
As minhas lembranças da velha e querida Santana das Antas dos meus “verdes anos” – inclui alguma revolta juvenil, como testemunha este verso:
“Anápolis: tem os trastes, tristes trilhos de outros tempos”
Anápolis, na verdade, não era sequer uma fotografia na parede, mas “como dói”, feito a Itabira de Carlos Drummond.
De Anápolis, é preciso primeiro que eu expresse a gratidão a tudo que devo aos educadores evangélicos (que me ajudaram a superar todas as carências – de proteínas a afeto; e me deram a educação formal que me possibilitaram alcançar a Universidade). Assim o fiz em meu discurso de entrada na Academia Goiana de Letras:
“Sou gratíssimo aos meus pais adotivos, Dona Modesta e Sr. Roque Bernardes Sobrinho, diretores do Abrigo Evangélico Goiano que acolhia 100 crianças carentes.
“Sou grato ao meu Estado, à cidade de Anápolis e à Vila Jaiara, onde aprendi a me relacionar dentro de regras de respeito mútuo e civilidade, mesmo em meio às dificuldades que vivenciamos nos anos 1960-70.
“Foi pela generosidade dos irmãos evangélicos de Anápolis e da missão United Brothers norte americana que pude ter alimentação, acesso às vacinas e aos tratamentos de saúde e aos primeiros estudos no Colégio Couto Magalhães, em Anápolis.
“Graças à generosidade dos meus pais adotivos, posso hoje trazer-lhes minha leitura poética do mundo, colocando a Vila Jaiara no mapa da poesia goiana:
“[…]
Ele, na Vila Jaiara, vira a fábrica de tecidos
onde trabalhavam tantos e tão próximos; sim.
E os porcos no meio da rua e seu relógio
no bolso do morto – o defunto, sim —
com quem uma gambira havia urdido…“Eu sou esse menino no corpo do velho d´agora.
Sou o que vi: novas terras seriam anunciadas —
com o brilho do luar, terras a conquistar.
“O que toda a gente negara ao menino,
sob a costa americana , eu —
um pobre diabo da Vila Jaiara, olhei:
a harmonia da linha do horizonte,
O skyline da vila enorme e sonhei,
Como sonham outros em outras luas,
anônimos em suas quitinetes, sonhando
palácios da lua, luando neon multicor”.
Sou hoje forçado a olhar para todo aquele acervo vivencial como quem carrega a alma numa folha de papel A4, tarefa que se torna indecifrável para a maioria dos seis que me leem.
A primeira vez que saí de Anápolis sozinho, por meu tino próprio, foi para ver um jogo do Santos contra o maior rival local – o Goiás Esporte Clube. Foi a primeira vez em que vi o Pelé jogar. Meu primo e eu voltamos entusiasmados com a odisseia dos jovens torcedores alvinegros. Ganhamos naturalmente, no placar e na emoção juvenil – memória pra todo o sempre.
Tenho dificuldades de me lembrar das centenas de viagens em companhia dos demais irmãos de criação, quando fazíamos o giro pelo Estado, em busca de auxílio. Eram viagens de Kombi em que a bandinha do Abrigo se exibia para os crentes de todo o Estado, dispostos a ajudar os mais pobres.
Essas deambulações provisórias em visitas às igrejas cristãs em todo o estado seguiam um script de orações, mostra de fotos (diapositivos), cantos, declamações e o apelo final de nosso pai adotivo para obter novos recursos.
Sempre voltávamos na Kombi do Abrigo e Sêo Roque, diretor e mentor daqueles cem meninos, voltava com o Fordinho 3×4 cheio de sacos de arroz, feijão, galinhas, porcos e outros mantimentos…Eu tocava tarol na bandinha.
Divertia-me e, vez por outra, chorava – o que era aceito pelo script. Depois me mudei de verdade.
Em Goiânia, primeiro fui morar no distante bairro Capuava e depois no CEU/UFG (a casa do estudante universitário – entidade criada para abrigar os estudantes sem recursos, e patrocinada pela Universidade Federal de Goiás).
Vivi longe da cidade e logo depois no centro dos acontecimentos – a praça Universitária. Tudo novidade que incendiava. É que, ao contrário de todo mundo do meu convívio em Anápolis, fiz vestibular em Goiânia, mas não passava de um anapolino na capital.
A capital, ah! Goiânia e seus neons deslumbrantes, Goiânia e seu Lago das Rosas, seu Estádio Olímpico – na época vivo e inteiramente disponível para os meus 17 anos de idade.
Tudo surpreendente, incluindo as leituras, as conferências, as idas ao cinema, o namoro firme. Tempo de conhecimento dos primeiros livros de autores goianos – principalmente, de Antonio José de Moura, Carmo Bernardes e os irmãos Teles (Gilberto e José Mendonça).
Goiânia e o Chafariz, Goiânia e o bar do “Zé Latinhas”, Goiânia e o “Zero Bar”, Goiânia e o “Cine Rio”, Goiânia e suas meninas em flor, nem mesmo o magnífico coral da Cristã Evangélica me conseguia fascinar tanto (e não mais).
Ô perdição por ti, Goyania, para quem em mim,
como noutro, outrora, “teria a própria liberdade a morte…
Daí, me mudei para Porto Alegre. Há duas vozes que traduzem essa mudança inesquecível que me incendiou para a poesia e para o anseio da paixão que até hoje mantenho por certa dama. Para além do que escrevi com e em meu corpo, a cidade tem duas marcas incendiadas n´alma: Quintana e Augusto Meyer.
Em Porto, já se sabe – foi pronto
seu espanto; e agora, dobrando
o cabo de São Vicente, a africana
dolência não lhe tira a esperança.
Poetizei em “Destino palavra”, livro que presta contas poéticas das cidades e da vida que se esvai. Sobre Porto Alegre, o resto é o silêncio, aqui e ali rompido por um farfalhar de folhas de plátano. É “Um doce frio da memória”, como dizia o jovem poeta Paulo Bentacur, nas noitadas de minha casa na rua Barros Cassal.
Porto Alegre me abriu dimensões novas, antes de me promover a volta a Goiânia. Voltei com um cargo na Caixa Econômica Federal e investi numa carreira profissional que deveria não ter sido. Vida, minha via, sem pensar joguei a mercadoria tempo no rio rápido em que escorres.
Bancário, mudei de casa como devedor que foge dos juros e tentei mudar de vida a cada chamado inebriado dos cantos de sereia da ideologia reinante naqueles anos de redemocratização.
Estive em Brasília. Nunca me mudei para lá, só idas e vindas a trabalho. Morava num hotel.
Morei em Recife, onde rápido escarafunchei meu passado, sem nenhuma sorte de garimpeiro que bamburra. Voltei pra Goyania, com a promessa vã de me mudar dessa casa somente para a eterna morada. E, depois de uns tantos desencontros pessoais – entre ser politicamente de esquerda e ser, optei pelo que me pareceu razoável e coerente. Tudo ganhou para mim nova dimensão.
Não saí mais de Goiânia, onde cometi meus maiores desatinos e equívocos, onde deixei de ser – como estrangeiro de mim – e daqui não saí senão para deambular por Marrakesh, Valence, ver um pôr-do-sol no Gualdaquivir, uma nevasca em Boone (Carolina do Norte), uma palmeira em Sumter (Carolina do Sul), uma peça na Broadway, um sorvete na banca 45 do mercado central em Porto Alegre, um show do Serge Gainsburg à Grenoble, outro de Joe Cocker em Lyon.
Ah! a descoberta de Santa Teresa d´Ávila – as muralhas da cidade e uma truta à obilense. Depois, de novo ouvir um cantador em Caruaru, beber vinho em Juazeiro, rezar em Pirenópolis e fumar um havana em Guapó… Emoções das cidades.
Hoje posso entre nossas sete árvores guardando o retângulo de uma casa que construímos lentamente – minha mulher e eu, ouvir o autor das “Confissões”:
– “Quão grande abismo é o homem” – e, sondando a alma, numa incursão mais ousada, adentrar este “imenso e infinito santuário” e com Santo Agostinho repetir a pergunta:
“Quem poderá chegar ao seu fundo”?
No próximo dia 21 de outubro devo retornar a Anápolis, para atender a um convite da Biblioteca da Universidade Evangélica – como protagonista de “O escritor na biblioteca”. Devo ter Anápolis e sua boa gente no centro de minha fala e espero dar conta da tarefa sem que, ao final, veja tudo com os olhos úmidos.
Tive o imensurável prazer de viver algumas emoções vivênciadas na leitura deste texto : Traste da Memória (1) de autoria do imortal Adalberto de Queiroz. Tive o prazer de o conhecê-lo, quando residia no Abrigo Cristão Evangélico em Anápolis, quando estudávamos no Colégio Couto Magalhães, hoje Uni-evangélica, instituição de ensino tradicionalíssima em Anápolis, que desde tempos memoráveis tem prestado relevantes serviços no setor de ensino, desde a alfabetização até na formação superior em varias áreas do conhecimento e até mesmo na pós-graduação com varias cursos de mestrado e doutorado. O “maninho” como era carinhosamente tratado pelos seus colegas e também pela Carmem, hoje minha amada esposa e sua colega de orfanato, sempre demonstrou uma inquietude no sentido de se tornar uma pessoa diferenciada. Enfrentou todos os obstáculos inerentes à nossa condição social e tornou-se um vencedor para nosso gáudio e santo orgulho. Parabéns, continue nesta estrada benfazeja para nos brindar com mais escritos que tocam a nossa alma e que são alentos para nosso espírito.
Obrigado pela leitura e gentil comentário, Ernâni.
Li, senti e me emocionei com sua história. Ah, esses poemas tão bem colocados! Lindo demais, meu querido Adalberto. Cada dia te admiro mais.
Um abraço.
Muito Obrigado, amiga Alcione.
História de vida lindíssima e poesia condizente! Inspirador!
A que se juntam amizades de alta qualidade como a tua, nobre @Nelson Castro.
Olá, belo trabalho!!! Tenho um tio que gostaria muito de ver fotos de onde ele morava quando criança, era onde é o Posto Costa na Jaiara. Será que encontram alguma coisa? Obrigada
Olá, Raquel: infelizmente, tenho ido muito pouco a Anápolis.
Anápolis é uma foto na parede (e no coração).
Abraço do Beto.