Das pragas do Egito ao Apocalipse

Adalberto De Queiroz

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Guerras, conflitos, terremotos, maremotos e tsunamis, sequestros, assaltos, violência entre Nações e entre pessoas, epidemias, doenças estranhas (e raras), mortes, mortes em profusão.  Será o fim dos tempos? – Será o apocalipse agora?

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Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, da
Bíblia Ottheinrich. 
(c) Imagem do Wikimedia Commons.

O apóstolo São João previu esses eventos, no livro que encerra os canônicos do Novo Testamento. Essa narrativa cifrada e assustadora para alguns, é o Apocalipse, a visão dos “últimos tempos”.

Muito antes, os profetas hebreus haviam tecido muitos comentários sobre esses fatos que a Igreja designa “novíssimos” – isto é, tudo o que diz respeito às coisas finais, individual ou coletivamente e que está ligado à escatologia.

Isaías talvez seja o mais eloquente nesse campo, ao descrever o Juízo Universal como uma cena de terra devastada:

“Eis que o Senhor devasta a terra e a torna deserta, transtorna a sua face e dispersa seus habitantes”.

“Isso acontece ao sacerdote como ao leigo, ao senhor como ao escravo, à senhora como à serva, ao vendedor como ao comprador, ao que empresta como ao que toma emprestado, ao credor como ao devedor.
A terra será totalmente devastada, inteiramente pilhada, porque o Senhor assim o decidiu. A terra está na desolação, murcha; o mundo definha e esmorece, e os chefes do povo estão aterrados. A terra foi profanada por seus habitantes, porque transgrediram as leis, violaram as regras e romperam a aliança eterna.”

O profeta hebreu sugere que essa desolação foi uma punição aos “crimes que pesam sobre a terra”, sugere a expiação de pecados e encerra dizendo que, ao final, “a lua corará de vergonha e o sol empalidecerá”, com a chegada do Salvador.

O que significam tais sinais e para que eles servem, se é que têm alguma serventia?

Há pelo menos duas instâncias para examiná-los e tentar compreendê-los.

No âmbito individual, a situação é a de confronto com a ideia da Morte. Embora inevitável, isso ainda significa o maior terror para a maioria dos mortais. Poucos parecem confrontar com tranquilidade a ideia da Morte – “a indesejada das gentes”.

Ninguém quer saber de morrer, pelo menos não nesta epidemia da hora presente.
O escritor alemão-suíço Hermann Hesse tinha uma placa no portão de sua casa que dizia:

Quando um homem atinge a velhice/Cumprida sua missão/Tem o direito de confrontar/A ideia da morte em paz”.

Por ser tema voltado ao domínio das crenças, é recomendável separar as coisas, fazendo a distinção entre a escatologia do indivíduo e a da raça e do universo em geral.

A primeira, partindo da doutrina da imortalidade pessoal –, ou pelo menos da esperança na sobrevivência (de alguma forma) após a morte – procura determinar o destino ou condição, temporária ou eterna das almas individuais e definindo ponto a ponto as questões de futuro que dependem da vida presente.

A segunda, segundo a teologia, é a escatologia do universo (da raça em geral) que lida com eventos como a ressurreição e o julgamento – o Juízo Final, do qual, segundo a revelação cristã, todos os homens participarão. Diz respeito também aos sinais e presságios da ordem moral e física que precedem e acompanham esses eventos.

De qualquer forma, no âmbito coletivo, estamos diante de uma espécie de prestação de contas com o “inimigo oculto” (ou invisível, na acepção de Rogério Borges) – inimigo que a todos parece perseguir sorrateiramente.

Esse inimigo serve aos cineastas como prato cheio para roteiros campeões de bilheteria.

O cinéfilo parece purgar sua dor e seus temores mais recônditos numa poltrona confortável de um cinema 3D, vendo desenrolar tramas às vezes macabras de filmes como Contágio, Epidemia, The walking dead etc.

O Papa João Paulo II disse certa vez que “a ânsia de conhecer melhor e de compreender o homem de hoje e o mundo contemporâneo, de lhe decifrar o enigma e desvendar o seu mistério, de discernir os fermentos de bem ou de mal que nele se agitam, leva muitos, de há um certo tempo a esta parte, a fixar no mesmo homem e neste mundo um olhar interrogativo.” Isso pode se dar através do “olhar do historiador e do sociólogo, do filósofo e do teólogo, do psicólogo e do humanista, do poeta e do místico; e é, sobretudo, o olhar preocupado, se bem que carregado de esperança, do pastor” – esse último tipo bem encarnado na figura dele próprio como papa.

Os poetas se expressam, ao longo da história, sobre esses temas. Dante Alighieri e Milton não passaram incólumes. O poeta inglês William Blake (1757-1827) tratou do assunto numa espécie de Evangelho às avessas “O casamento do céu e do inferno[i]” – uma antiBíblia, segundo seu tradutor no Brasil, o poeta Lêdo Ivo.

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Blake (1757-1827) – Uma visão memorável

“A antiga tradição de que o mundo será consumido
pelo fogo ao cabo de seis mil anos é verdadeira, conforme Eu ouvi no Inferno.
“Pois o querubim com sua espada flamejante já foi ordenado deixar a guarda da Árvore da Vida, e assim que o fizer, a Criação inteira será consumida e tudo o que hoje nos parece infinito e corrupto aparecerá como infinito e sagrado.”

Mas retornemos aos acontecimentos deste excurso – os “novíssimos”, eventos temidos, onde se incluem as catástrofes, que ao leigo parecem “velhíssimos”, porque dizem respeito a acontecimentos muito antigos.

Estão aí desde o tempo dos dinossauros em que um cataclismo dizimou todos eles; prossegue no Dilúvio, passa pelas sete pragas do Egito, repetem-se na “peste negra” da Idade Média, na “gripe espanhola”, chega às ondas gigantes e letais (das tsunamis da Ásia) e carregam de pavor tantos eventos que entraram para história por dizimar grande parte de populações do globo –, quase sempre considerados não-compreendidos, gerando revolta contra Deus em muita gente.

Aparentemente, são fenômenos da Natureza.

A diferença, no caso desta primeira praga do século XXI é que, vivendo numa “aldeia global”, estamos sob o jugo da pletora de informações que invade os lares,  os computadores e celulares como verdadeiro bacamarte, moderno arcabuz de notícias.

Se o espectador souber filtrá-las poderá tirar vantagem dessa (aparente) facilidade e da incrível velocidade de comunicação e da disseminação de notícias – o que se, por um lado, apavora alguns, a outros tem o condão de prover boa informação.

Comparando épocas, notamos que nos tempos de outras pragas e desastres, a compreensão dos “novíssimos” se baseava em poucas fontes de esclarecimento, talvez a família, os mais idosos, o padre, o médico da família e, assim, a pessoa para fazer o seu julgamento tinha à sua disposição uma única forma de comunicação – o boca-a-boca.

Se o leitor chegou a este ponto da crônica merece o respeito do cronista abusado que agora o convida a desligar a TV, a esquecer um pouco as notícias sobre o Corona vírus (Covid 19), a mortandade na China (e mundo afora).

Convido você, leitor persistente, a se transportar ao tempo dos faraós, ao tempo das sete pragas do Egito – que, ao pé da letra do relato bíblico, são na verdade dez.

Havia pouca ou nenhuma informação ao grande público e os sacerdotes talvez fossem o único canal de credibilidade para que o povo egípcio e os escravos (os hebreus) entendessem o que estava acontecendo.

Foram dez, portanto as pragas. Conte comigo:
(1) cajados que se transformavam em cobras;
(2) águas do rio Nilo que viraram sangue;
(3) a infestação geral por rãs,
(4) depois por mosquitos (olha só a origem da febre do Nilo, no Brasil, conhecida pela epidemia da dengue e derivadas);
(5) a invasão da moscas;
(6) a mortandade do gado;
(7) os tumores e úlceras nos homens e no gado;
(8) a saraivada de pedras de granizo;
(9) a escuridão geral (blackout); e,
(10) o “terror-mor”, a mortandade dos primogênitos do Egito…

Ufa! E ainda assim, relata o Livro do Êxodo o coração do faraó continuou obstinadamente endurecido.

O poeta inglês John Milton assim as descreveu, no Canto XII do já clássico “Paraíso perdido”:

(…)

[…]
O ímpio tirano a conhecer se nega
O grão Deus de Israel, seus altos núncios.
r terríveis sinais, duras sentenças,

Há de ser a deixá-los compelido:
De seus rios as rápidas correntes
Em sangue não vertido hão de mudar-se;

Torva aluvião de rãs, nuvens de moscas,
Vermes sem conto povoarão nojentos
Todo o palácio seu, seus reinos todos;
Peste asquerosa matará seus gados;

Chagas, tumores cobrirão infectos
Dos povos seus e dele mesmo as carnes;
Do raio o fogo e da saraiva a neve
O céu do Egito rasgarão concordes,

E, pela terra aspérrimos rolando,
Tudo aniquilarão que nela gira;
Os grãos, frutos, e plantas que escaparem,

De gafanhotos um cruel dilúvio
Come, deixando sem verdura a terra;
Por dias três escuridão palpável
Rouba a luz, todo o Egito em si imerge;

Deles depois, à meia-noite em ponto,
Prostra os recém-nascidos fera a morte.
Às dez pragas fatais assim cedendo,

Por fim submete-se o dragão do Nilo
E consente partir a hebréia gente:
A miúdo humilha o coração de bronze[ii].

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John Milton, Inglaterra (1608-1674) – um clássico sob a”égide protestante e reformista” (Alexei Bueno).

Na nossa “aldeia global”, há muitos “corações endurecidos”, mesmo que fartamente informados, pois não compreendem os sinais.

Em contrapartida, há analistas de sobra, comentaristas aos milhares – todos “especialistas” em epidemias e que tais.  Divulgam, repercutem, tergiversam, tornando o fato em factoide ou em “fake News” – na maior parte do tempo desejam ser profetas do século, porta-vozes da pós-verdade. Tornam-se na maioria dos casos exemplos tortos do que Aarão foi para Moisés diante do faraó.

Afinal, recordemo-nos: o Senhor disse a Moisés que dele faria um deus e de seu irmão Aarão seu profeta.

Há falsos profetas de sobra no mundo globalizado de hoje e o Egito pode ser visto como a China, que tem lá sua forma supercontrolada de emitir suas notícias ao mundo. De um lado, sabemos da avalanche de hospitais construídos celeremente, de outro, intuímos o alto controle da informação espalhada pelo poder central.

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Terremoto de Lisboa (1755)
O Rei de Portugal Dom José I se salvou porque estava na Missa

No caso do Egito, me dou conta que mesmo com o auxílio providencial de Jeová, havia um enorme débito de informação.

Vejo o caso da gripe espanhola, pandemia que vitimou 5% da população mundial entre 1918/19 – um número inexato entre 50 a 100 milhões de pessoas –, quando as notícias já circulavam céleres, até pelo aprendizado feito à época da guerra de 14/18.

Ah, e um tanto antes, no terremoto de Lisboa (1755), notamos que o rei Dom José I só foi salvo da catástrofe porque assistia a uma missa em Santa Maria de Belém, fora Lisboa. O livro de óbitos de uma paróquia lisboeta registra os nomes de mortos e um trecho cheio de esperança de que outro abalo não ocorra com tão trágico resultado:

Deixo escrito neste livro a fatalidade deste caso sempre memorando, e não menos do que já aconteceu na mesma vila em 24 de Maio de 1614, que sempre será lembrado: e permita Deus que de um e outro se lembrem os homens, para comporem os seus procedimentos, e acções, regulando-as sempre pelas leis do mesmo Deus, e sua igreja.”

No imaginário da população ocidental, constituída por maioria judaico-cristã, disseminou-se à época a ideia de que aquela primeira leva de mortos pela infecção pelo H1N1 representava a chegada do apocalipse.

A guerra mundial e a peste seriam, pois, punições divinas pelos pecados cometidos, pelo ateísmo e o abandono da religião, pela devassidão e pelo materialismo reinantes. Lembre-se o leitor que os bolcheviques chegaram ao poder em 1917.

Esta página vai se encerrando inconclusa porque o cronista buscou sem êxito as lições da realidade para entender melhor o roteiro da fé que poderia espargir luz sobre as evidências. Dois ou três dias pensando sobre este tema e apenas uma pequenina luz bruxuleante se afigura.

Fosse o cronista um crente na escatologia egípcia, tudo ficaria mais fácil, pois, para aquele povo dos faraós “os que partem são habitualmente chamados de “vivos”; o caixão é o “baú dos vivos” e o túmulo o “senhor da vida”…” – portanto, para que temer as dezenas de pragas?

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E para que você não se vá daqui sem alguma poesia, deixo esses de Augusto dos Anjos (Apocalipse) com meu afeto nada escatológico[iii]:

“Minha divinatória Arte ultrapassa
Os séculos efêmeros e nota
Diminuição dinâmica, derrota
Na atual força, integérrima, da Massa.
É a subversão universal que ameaça
A Natureza, e, em noite aziaga e ignota,
Destrói a ebulição que a água alvorota
E põe todos os astros na desgraça!

São despedaçamentos, derrubadas,
Federações sidéricas quebradas…
E eu só, o último a ser, pelo orbe adiante,

Espião da cataclísmica surpresa,
A única luz tragicamente acesa
Na universalidade agonizante! “


[i] *Chapa 14 do “Casamento…”, Editora Hedra, 2008.
[ii] Fonte consultada em 05/03/2020 – link consultado.
[iii] Fonte internet. Ver link reduzido.


8 comentários em “Das pragas do Egito ao Apocalipse”

  1. Dileto Cássio, meu editor-Amigo:
    Sou feliz por estar em tão boa companhia na RL.
    A brincadeira de chamar os artigos de “croniquetas” era uma homenagem aos meus antepassados e patrícios – Eça de Queirós e Ramalho Ortigão — que, além das crônicas faziam as chamadas “Farpas”, que são polêmicas das melhores.
    Abraço a você e a todos os colegas do site.
    Beto.

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  2. O Apocalipse é/foi uma janela aberta para o passado, presente e o futuro. Um livro que exige muito estudo de outras áreas (astronomia, história, cabala, jesuitismo etc,). para maior entendimento. O período mais significativo foi o das CRUZADAS. Os amigos poderão encontrar no meu estudo A DESCIDA DAS SOMBRAS, mais detalhes. Irretocável texto caro Adalberto.

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