Sobre poesia e poetas

Adalberto De Queiroz

Leitor benévolo, eis-me pronto a uma confissão: não me foi possível concluir a prometida terceira parte do estudo que venho fazendo da obra do poeta russo Alexandr Pushkin. Então, eis-me aqui voltando os olhares para a Poesia brasileira.

– As coisas, na verdade, pioraram para a publicação de livros de poesia e sobretudo para poetas novos. Mas estes continuam a aparecer. São como filhos de pobre, teimosos, indiferentes às vantagens das pílulas anticoncepcionais.
– No entanto, as pílulas contra a poesia hoje são muito mais numerosas que ontem. Há quem diga que os vanguardismos tudo têm feito por matá-la, mas ela resiste, apesar de tudo.
– Ainda bem que assim seja. Seria possível o mundo sem poesia? Teria ele interesse sem o fascínio do discurso poético?[1]

Embora isso tenha sido escrito em 1972, e publicado em livro em 1976, nem por isso, a verdade deste diálogo deixa de ser válida para 2020. Vivemos aquele momento em que, mais do que nunca, os poetas, esses eternos teimosos, insistem em superar os anticoncepcionais do mercado editorial.

O contexto em que o mestre paranaense da Crítica Temístocles Linhares falava era o da publicação de uma nova antologia “Poetas novos do Brasil”, organizada por Walmir Ayala, reunindo dezessete poetas de diversas partes do país.

Não desejo retornar à poesia daquela geração da seleta de Ayala, mas descortinar algumas questões que estão postas hoje novamente, por uma plêiade de poetas que incluem Érico Nogueira, Cláudio Neves, João Filho, Wladimir Saldanha, etcétera.

Tenho sobre a mesa este “Isto a que falta um nome[2]” – livro de poesia de Cláudio Neves. É um livro do qual um dos melhores críticos (e ele próprio poeta dos melhores) em atuação no Brasil, o Érico Nogueira diz ser “grande poesia… uma das melhores, sem dúvida, que se vem fazendo hoje no Brasil”, “[…] Cláudio realiza aqui uma quadratura do círculo, de vez que junta o melhor de Drummond com o melhor de Cabral, sem deixar de ser ele próprio. O que, de resto, na terminologia de Harold Bloom, é traço distintivo dos strong poets“.

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O poeta Cláudio Neves, nascido no Rio de Janeiro em 1968, autor de “Isto a que falta um nome”, “Ouvido no café da Livraria”, entre outros títulos de poesia, ensaio e ficção. (Foto acervo pessoal/Reprodução)

Érico já havia escrito sobre o tema, no ensaio “A poesia brasileira hoje”, no livro “Quase poética[3]”, traçando um contraponto ao senso comum que afirma coisas tais: “A poesia brasileira está em baixa” ou “A poesia, no Brasil, atingiu seu auge no início dos anos cinquenta”, e coisas semelhantes.

O poeta-crítico não nega a vitalidade do que fora produzido de 1940 (“O sentimento do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade) a 1948 (Poesias completas, de Manuel Bandeira), passando pela produção poética de Cabral, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Jorge de Lima, etcétera. Porém, destaca:

“Uma consideração mais atenta, porém, das publicações das duas últimas décadas pode, se não contradizer, ao menos repensar os parâmetros desta conclusão [‘a última década do séc. XX e a primeira do XXI não passam de um período de decadência, no Brasil, em matéria de poesia’], cujo caráter automático e quase intocável parece flertar com o dos clichês e lugares-comuns.”

Em face da variedade e do grande número de poetas, bons e ruins, em atividade no Brasil, Érico Nogueira escolheu uns poucos para compor uma lista do que ele considera antológicos. E a escolha personalíssima leva em conta, naturalmente (e como usual), o gosto do crítico-leitor e seu temperamento.

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Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista, em 1979. Poeta e estudioso, ganhou o “Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura”, de 2008, com O Livro de Scardanelli, sua primeira coletânea de poemas. (Foto acervo pessoal/Reprodução)
LEIA TAMBÉM SOBRE ÉRICO NOGUEIRA:
https://recortelirico.com.br/2020/07/poetas-tempo-penuria-erico-nogueira/

A lista não é exaustiva em relação às obras dos poetas selecionados e vou listá-la sem os títulos dos livros citados, por conta do espaço deste artigo. São eles.: Nelson Ascher, Affonso Romano de Sant´Anna, Alexei Bueno, Bruno Tolentino, Gerardo Mello Mourão, Alberto da Cunha Melo, Carlos Felipe Moisés, Marco Lucchesi, Paulo Henriques Britto, Cláudio Neves, Marco Catalão, João Filho, Wladimir Saldanha, etcétera, etcétera.

E ao final da lista, Nogueira transcreve o milenar adágio do Cônsul romano (Caio Cornélio) Tácito:

“(…) é por um vício da maldade humana que sempre se louva o velho, e o novo se escarnece”.

Uma tarefa interessante seria repassar ao longo de uma série de artigos pequenas resenhas (e quem sabe uma seleta de poemas), que tornassem palpável ao leitor comum uma amostra do valor da lista do Érico; e a esta, eu – com meu temperamento e meu próprio gosto –, adiciono outros nomes, de poetas de minha terra (Goiás), que por não atuarem no centro da produção nacional, quase nunca são levados em conta: Gilberto Mendonça Teles, Heleno Godoy, Darcy França Denófrio, Edmar Guimarães, Sônia Maria Santos, Miguel Jubé, Edival Lourenço, Gabriel Nascente, Aidenor Aires, Brasigóis Felício, Valdivino Braz, etcétera, etcétera.

Hoje, cedo à tentação de começar por um poeta que descobri lendo nosso “miglior fabro” (Érico Nogueira) e transcrevo este que é considerado por ele, Érico, “um dos poemas mais impactantes” do livro “Isto a que falta um nome” – é o Poema 10 da série de abertura do livro, “Notas para o Livro das Constatações”.

10
Mera e moral cigarra de uma tarde,
de um verão que ouço ainda e me deserda
como a um filho, por causa da nora
louca e loquaz, e talvez infiel.

Som inespacial, por isso obsidente,
indecifrável contraponto ou sobra
de um céu profundo, de uma trepadeira
gretando um muro para sempre ela.

Cigarra fútil, lembrança acessórias
e comparada aos mortos que a ouviram
ou se metáfora do pensamento.

Mera e moral aquela tarde e tudo nela,
como eu agora e eu de quando eu era
tão imortal quanto a lembrança dela.

Deste terceiro livro de Cláudio Neves, destaco um trecho do prefácio em que Érico repercute uma conversa havida com Neves, em que este observava sobre a poesia brasileira da atualidade:

“Hoje vejo um segundo movimento: uma depuração de objetos e procedimentos. A poesia tende a retomar seus temas centrais, esquivando-se de ser o receptáculo das “sobras do real” (expressão bem pedante com que alguns definem a recusa à temática da angústia existencial, por exemplo).

Érico arremata: “Concordo com ele: a mais recente poesia brasileira, ademais de senhora do artesanato, se distingue, sim, entre outras coisas, pela retomada dos grandes temas. E nesse movimento a poesia de Cláudio Neves, exata e profunda, depurada e impactante, física e metafísica, representa, sem dúvida, um dos papéis principais. Como é bom ler um poeta assim”.

E para encerrar estas pequenas anotações sobre “os teimosos e indiferentes às pílulas anticoncepcionais das editoras” – nossos bardos em atuação, uma desordem na ordem das coisas, registrando sua revolta contra a máquina que tenta enfraquecer e desfigurar o poder de sua humanidade – para lembrar-nos do poeta alemão Rainer Maria Rilke, citado pelo filósofo Vicente Ferreira da Silva, no ensaio “Sobre a poesia e o poeta”[i]: “olhai a máquina: como ela rodopia e se vinga, desfigurando-nos e enfraquecendo-nos”. Entanto, os poetas resistem, como “a forma das criaturas do plenilúnio de que fala Yeats, nas Fases da Lua:

“…vistas nas colinas desoladas por camponeses trêmulos que se afastam apressados, corpo e alma alienados, no pasmo de si mesmo, eles são vistos em contemplação, o olhar da mente fixo em imagens que uma vez foram pensadas, pois só as imagens imóveis, perfeitas, apartadas podem romper a solidão dos belos olhos saciados e indiferentes.”

Atendamos, pois, ao chamado da “fantasia poética”, que é, segundo o filósofo, o “ditado de uma profunda necessidade, de uma liberdade humana, que a cinge e ao mesmo tempo a liberta”. Ouçamos o chamado da Poesia de ontem, de hoje e de sempre, pois, afinal, é impossível um mundo sem poesia.


[1] LINHARES, Temístocles. “Diálogos sobre a poesia brasileira”, Rio de Janeiro, Brasília: Ed. Melhoramentos/INL, 1976, pág. 117.

[2] NEVES, Cláudio. “Isto a que falta um nome”. São Paulo: É Realizações, 2011.

[3] NOGUEIRA. Érico. “Quase poética. Campinas (SP): Vide editorial, 2017, pág. 169-173.

[i] SILVA, Vicente Ferreira da (1916-1963). “Transcendência do mundo: obras completas”. São Paulo: É Realizações, 2010 – pág. 501-7.


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