Algumas notas sobre Pushkin (parte 3 – final)

Adalberto De Queiroz

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Devo iniciar esta crônica com um pedido de desculpas ao leitor, pois subestimei o tempo que levaria para gerar esta série de três artigos sobre o escritor Alexandr Pushkin, considerado um dos pais da moderna literatura russa.

A esta altura, devo registrar meu reconhecimento ao trabalho da tradutora e pesquisadora Denise Bottmann[i], que salvou o cronista de cometer um erro histórico – repetir que não existem, em português, obras de Pushkin em profusão, quando deveria ter dito que estas não estão disponíveis no mercado (brasileiro) atual. Isto é, hoje são limitadas as traduções das obras de Pushkin em nosso meio.

Na sua pesquisa, Denise revela o histórico das edições russas em livro no país, excluídas as adaptações e quadrinizações. Do amplo levantamento de Bottmann, destacamos alguns importantes lançamentos, ao longo dos últimos quase 90 anos do mercado editorial brasileiro. Dou a palavra, pois, à Denise:

A grafia varia um pouco: Pushkin, Puskine, Puchkin, Puchkine, Puschkin. Atualmente, com a normatização da transposição fonética, consagrou-se o uso de Púchkin. Ao que tudo indica, o primeiro Púchkin entre nós saiu pela Livraria do Globo em 1933: A filha do capitão, em tradução de Paulo Corrêa Lopes (Figura 1).

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Seguem-se outras tantas edições ao longo dos anos 30 do século passado, sendo que “em 1944, sai pela Companhia Editora Leitura a coletânea Os russos: antigos e modernos, na coleção Livros do Mundo, com organização de Rubem Braga e supervisão de Graciliano Ramos. O volume traz dois contos de Púchkin, “A dama de espadas”, em tradução de Dias da Costa, e “O chefe de posta”, em tradução de Aníbal Machado (Figura 2). Essa coletânea é reeditada nos meados dos anos 70 pela Ediouro (então Edições de Ouro), com o título de O livro de ouro dos contos russos, e agora em 2004 com o título de Contos russos: os clássicos” – afirma Denise Bottmann.

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Ainda em 1944, “Álvaro Moreyra lança sua tradução de “A dama de espadas” pela Brasilia aeterna. Aliás, essa tradução fora publicada em 1944, com tiragem especial para a Confraria de Bibliófilos Brasileiros Cattleya Alba, numa edição numerada de luxo, com capa de seda e ilustrações de Martha Pawlowna Schidrowitz feitas à mão” (Figura 3). Algumas notas sobre Pushkin (parte 3 - final) 3

“Note-se de passagem o triste destino que terá essa tradução sessenta anos depois: foi apropriada pela Martin Claret, que a partir de 2006 passou a se arvorar em detentora de seus direitos autorais” – denuncia Bottmann.

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A edição para bibliófilos assinada por Álvaro Moreyra, uma joia na bibliografia de Pushkin em Português do Brasil.

Felizmente, num golpe de sorte, este cronista encontrou o volume especial da Cattleya Alba, em um sebo no Rio, numa das poucas viagens àquele balneário que realizei em meados dos ano 80 do século passado. E tornei-me o feliz proprietário do exemplar nº 71, com os autógrafos do tradutor e da ilustradora.

Os anos se passaram sem que eu desse a atenção devida a este extraordinário poeta russo, até que a febre de leitura dos russos me atingiu em cheio e não delirei lendo e relendo Gogol, Dostoiévski e Pushkin.

Neste último artigo da série, gostaria de destacar o romance em versos “Eugênio Onêguin”. O lançamento da obra foi saudada por Irineu Franco Perpétuo como “a pedra de toque da literatura russa”. “Eugênio Onêguin” chegou às livrarias brasileiras em 2010, em edição da Record, pelo admirável esforço de tradução do embaixador Dário Moreira de Castro Alves.

Agora, metade do que o esforço solitário de Castro Alves nos deu a ler em primeira mão, vem a lume com a tradução dos quatro primeiros capítulos dos oito que compõem a obra, feita por Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina, uma edição bilíngue, em formato especial (18x25cm, capa dura).

A diferença entre as edições do romance em versos russo fica por conta de alguns fatores, sendo o decisivo a revisão da edição da Ateliê Editorial, que tem na revisão um time encabeçado pelo falecido professor Boris Schnaiderman (1917-2016) e completado por Áurea Maria Coisi e Isabel Andrade Moliterno.

 Pushkin
“Eugênio Onêguin” não é um poema dramático, mas um romance em versos! E, infelizmente, uma obra comparativamente pouco lida por aqui.

Da tradução de Pushkin em português, cabe dar a palavra aos tradutores da edição portuguesa, Nina Guerra e Filipe Guerra, que traduziram “O cavaleiro de bronze e outros poemas” para o português, em edição da editora Assírio & Alvim, de Lisboa (1999).

Pelo que foi dito da linguagem de Púchkin — laconismo implicando alguma polissemia de cada palavra, leveza, fluidez oral, «extrema pureza» das combinações a tradução de Púchkin-poeta para uma língua estranha ao russo não é fácil. O tradutor português tem sempre tendência para se apoiar nas suas referências culturais, nos «seus» poetas portugueses, e assim dar uma versão poética, sua, dos textos, muitas vezes alheia aos verdadeiros desígnios do poeta russo.

Não se trata aqui de versões, e sim de traduções. Duas pessoas — uma russa e outra portuguesa — propuseram-se a tentativa de traduzir o poeta Púchkin em equipa. Assim, cada versão final dos poemas, em português, só foi dada como definitiva quando a parte russa da equipa de tradução entendeu que ela se aproximava, mais ou menos, do espírito, da sonoridade e das intenções do poema em russo.

Cabe ainda destacar o trabalho solitário e mais do que meritório do embaixador Dário Moreira de Castro Alves, que dedicou mais de uma década de sua vida à tradução do romance pushkiniano: “Decorria o ano de 1995, quando comecei a dedicar-me à tarefa de traduzir a obra-prima de Pushkin, a qual merece estar na prateleira de uma centena de obras-primas da literatura universal. O resultado desse esforço foi concluído em julho de 2006, em Fortaleza, embora eu deva à minha vida em Lisboa, já aposentado – de 1990 a 2002, a maior parte do meu tempo empenhado nesse trabalho e nesse esforço” – afirma na introdução da obra traduzida[ii].

Castro Alves nos revela que Pushkin gastou mais de uma dezena de anos elaborando o famoso romance em versos e a tradução foi feita sobre a chamada editio optima, datada de 1837. Foi um esforço grandioso do tradutor encarar os 5.523 versículos (ou versos, linhas), com exceção dos dezoito versos trocaicos (a Canção das meninas, e as duas cartas, uma de Tatiana a Oneguin e a outra, deste àquela, que são tetrâmetros jâmbicos, sem a forma de soneto).

Os capítulos (“glavo” em russo), explica-nos o tradutor, consta de estrofes em estilo de sonetos corridos, com mais ou menos 40 a 50 estrofes cada um, sem a divisão de quartetos e tercetos comuns ao gênero. São versos octossílabos, com tônicas recaindo em cada quarta sílaba do verso, daí o nomeá-los de tetrâmetro jâmbico.

O ineditismo da tradução feita por Dário de Castro Alves nos concede uma tradução em língua portuguesa feita diretamente do russo. O desafio enfrentado por ele, foi sendo amadurecido desde a juventude, quando serviu como funcionário do Itamaraty, na qualidade de secretário da Embaixada do Brasil em Moscou, nos anos 1960. Mesmo sabendo que a tarefa era hercúlea, o jovem Dário foi seduzido pelo desafio e encontrou em Olga Ovtcharenko uma espécie de “madrinha” da missão levada a cabo em dez anos.

De outra natureza é o trabalho parcial de tradução de “Eugênio Oneguin” que nos provê a Ateliê Editorial, ao publicar o primeiro volume da obra, em tradução de Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina, contemplando a publicação dos capítulos I a IV do citado romance em versos.

O segundo volume deve conter a tradução dos capítulos 5 a 8, e está prometido para breve, devendo trazer também um apêndice com a tradução de variantes textuais do romance e fragmentos da “Viagem de Onêguin”, que não foram utilizados na edição lançado por Pushkin.

Há também a promessa de que o volume II da Ateliê conterá textos de tradutores sobre princípios teóricos e técnicas que nortearam o trabalho em questão.

Uma contribuição de peso ao trabalho de Franca Neto e Vássina veio do falecido professor Bóris Schnaiderman que funcionou como consultor e revisor da obra. Sabe-se que estamos diante de um peso pesado da cultura russa no Brasil e os tradutores não economizam elogio e gratidão: “Sua atitude paciente [dele, Schaiderman] e sua interlocução rigorosa, marcada pela erudição, fina sensibilidade e modéstia, além de enriquecer nosso trabalho em muitos níveis, serviram de estímulo constante para se levar adiante tarefa tão difícil.”

E concluem: “Portanto, a esse mestre ilustre em nossas letras, que não chegou a ver, como tanto queria, a publicação desta tradução, ela é dedicada in memoriam”.

Como leitores da língua de Camões, ganhamos com estas duas publicações o direito de ler Pushkin em tom elevado e podendo dar-nos ao luxo de duas traduções que podem ser cotejadas e aproveitadas em mais de uma centena de notas elucidativas das nuances históricas e questões tradutórias. Recomendo com entusiasmo aos meus leitores e mais: desejo que não fiquem restritos a pensar que o autor russo seja indesejado (ou anacrônico), nem tampouco alienígena, pois, afinal, a arte nos unifica sob o mesmo teto do sonho de uma pátria universal – a boa literatura.

E deixo ao benévolo leitor uma comparação para a coda deste artigo, do Cap. I – XLVI, sendo que na coluna da esquerda temos a tradução de Dário M. de Castro Alves e à direita, de Plínio Correia. Boas leituras!

Quem já viveu, muito pensou[iii] Quem viveu e pensou decerto[iv]
Despreza n´alma a humana gente Despreza na alma a gente à volta;
E quem sentiu se perturbou A quem sentiu inquieta o espectro
C´o espectro vão do tempo ausente Dos dias que não têm mais volta;
E que jamais há de voltar; A este não há fascínio e glória;
A um, encantos vão faltar; A este a serpente da memória,
Morde outro a serpe da lembrança, A este o remorso sempre morde.
A contrição, a outro alcança, Isso concede um quê maior de
Trazendo à fala animação. Graça, às vezes, à conversa.
De início, Oneguin eu tardei No início, o linguajar de Onêguin
A perceber; conta me dei Me perturbou; mas me vi entregue
De seu sarcasmo e derrisão A efeito a acerba controvérsia
E ouvi biliosos argumentos E a bile entre o escarnecimento
Com epigramas virulentos. E a epigrama atro e virulento.

Nota do editor: Um obrigado especial ao colunista Beto, pela brilhante e enriquecedora série sobre Pushkin, inédita no Recorte Lírico e em muitos veículos nacionais. Convido o leitor a continuar nos acompanhando com este post: Ivan Junqueira, o Recorte Lírico e a bolha intelectual

[i] BOTTMANN. Traduções De Aleksandr Púchkin No Brasil. Belas Infiéis, v. 3, n. 1, p. 241-247, 2014. Link consultado em 17/11/2020: https://tinyurl.com/recorte3

[ii] PUSHKIN, A. S. (Alexandr Sergeevich), 1977-1837. Eugênio Oneguin. Trad. e introdução de Dário Moreira de Castro Alves. – Rio de Janeiro, Record, 2010.

[iii] Idem, pág. 47.

[iv] PÚCHKIN, Alexandr. Eugênio Onêguin – um romance em versos. Tradução: Alípio Correia de Franca Neto, Elena Vássina. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2019, pág.61-63.

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