Algumas notas sobre Pushkin (1)

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Ele nasceu há mais de duzentos e vinte anos, morreu em duelo aos 38, negro num país eslavo, Alexandr Serguéevich Pushkin era de estirpe nobre, por via de um bisavô descendente de um príncipe da Abissínia e também por parte do pai, o major da guarda Sergueievich Pushkin, cuja ascendência remonta ao século XII, vindo do lendário Ratcha, antepassado de muitas famílias nobres russas.

A vida de Pushkin me importa muito e deve importar a toda gente interessada na grande literatura. Por isso, lanço meu olhar a dois séculos atrás, onde se pode constatar a alta importância da vida de um menino russo, descendente de escravo e nobre – ambos figuras importantes da corte de Pedro, O grande, – o bisavô militar e o neto que se impôs pelo talento e a nobreza de seus versos.

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Algumas notas sobre Pushkin (1) 1
Foto: O Cavaleiro de Bronze e outros poemas”. Seleção, tradução, introdução e notas Nina Guerra e Filipe Guerra. Lisboa – Assírio & Alvim

Ao observar esses quatro retratos, concentro-me nos do poeta e de seu bisavô, e confesso, leitor, que só me vêm à mente os grandes mistérios que cercaram este meninozinho negro e nobre que se tornou antes dos trinta anos o poeta mais importante da Rússia, o precursor e o maior influenciador de boa parte dos grandes nomes da literatura de seu país no século XIX.

Alexandr Pushkin, um nome no topo da arte da escrita, alvo de culto por parte da elite russa e, mesmo passados mais de 180 anos de sua morte, poeta cuja obra e personalidade continuam a atrair os leitores e pesquisadores da Poesia em todo o mundo, “que faz identificar sua obra com a nobreza, acima de toda conjuntura social, política…com a independência e liberdade adquiridas por mérito ancestral” (cf. Nina & Filipe Guerra), sem perder a capacidade de ironizar a própria origem:

[i]Do escriba russo dispara
Raivosa, em chusma, a confraria,
Chama-me de aristocrata.
Vede-me só que tontaria!
Não sou oficial, assessor,
Nem nobre por nomeação;
Nem acadêmico, professor;
Sou simples russo, e vilão.

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Pushkin nasceu em 1799 e foi morto em duelo em 1837, aos 38 anos, mas seu nome é lenda viva para a literatura hoje, quando se contabilizam mais de 220 anos de seu nascimento em Moscou e 183 de sua morte trágica em São Petersburgo.

Pushkin era bisneto de “escravo” – ou um homem descrito por um embaixador francês como “uma raridade” aprisionado na África – que por mérito ascendeu ao topo do mundo como poeta.

Pushkin tornou-se importante porque foi um homem que ouviu mais sua ama do que os críticos de plantão, que ouviu o canto do povo vindo da voz de Arina[ii] a ama que [era] narradora nata da boca de quem o futuro poeta ouviu um sem-fim de histórias e canções populares, para algumas das quais ele viria mais tarde encontrar uma forma literária…

Ecoando Aurora Bernardini, anoto aqui que Pushkin é o poeta que traz consigo “o menino de traços africanos herdados do tataravô Abraão Petróvitch Aníbal (1696-1781), o famoso “Negro de Pedro, o Grande”, [que] procura abrigo junto à babá Arina Radiônovna que o acalenta com as lendas folclóricas e as crenças dos humildes camponeses.”

Mudam-se os tempos, com certeza,
E ninguém, claro, o desaprova:
Novíssima, a nossa nobreza
É tão mais nobre quanto nova.
De caduca estirpe fragmento
(E não único, meu irmão),
De boiardo antigo descendo;
Sou, meus amigos, um vilão.

Arina, a ama que lhe deu os sons e as cores da voz do povo russo, voz mais ouvida pelo poeta, ainda bem! – do que a voz da Academia, Arina é a voz que ecoa na alma do poeta e em seus versos, pois este sabia não se levar tão a sério e, a despeito da origem nobre, podia dizer sobre si mesmo versos como os que vou transcrevendo ao longo desta crônica, trechos do poema “A minha genealogia[iii]”:

Não vendeu crepes meu avô,
Não engraxou botas ao czar,
Não foi acólito, não saltou
De ucraniano a titular,
Nem desertou dos esquadrões
Austríacos; serei então
Aristocrata? Por quem sois!
Graças a Deus, eu sou vilão.

De uma viagem que fiz a São Petersburgo em 2016, guardo com carinho impressões fortes, que voltam vivamente à memória sempre que revejo fotografias que fiz durante a visita à casa-museu Pushkin (na verdade um apartamento) onde o poeta viveu seus últimos anos.

Tudo ali deriva do que os especialistas (e museólogos) chamam de culto Pushkin, um culto especial à personalidade não de um ditador, mas de um poeta; não de qualquer poeta, mas do poeta por excelência da pátria Rússia. Culto até justificável pelo interesse que milhares de pessoas estrangeiras ou de nacionalidade russa demonstram por saber mais sobre Pushkin.

Percorri o apartamento com o interesse de turista e a curiosidade do admirador, acompanhado por um áudio em francês em fones de ouvido.

O material do sagrado espaço familiar do poeta está organizado de forma a colocar o visitante em contato com a vida íntima dos Pushkin, então podemos ver sua mesa de trabalho, a pianola da esposa e seus objetos de maquiagem da esposa. 

Impressionaram-me também as armas do poeta que estão expostas em suas embalagens, em meio às fotos da família e do próprio poeta, seus livros, seus objetos e desenhos.

Aquela porta por onde passou o poeta, saindo em direção ao fatídico duelo que lhe custou a vida, não pode ser aberta pelo visitante, mas ficamos tocados pela explicação textual que nos leva a pensar muito naquela noite de duelo com Georges d´Anthès, um jovem francês ao serviço do governo da Rússia. O oficial que cortejava a bela esposa do poeta – Natália Gontcharova –, no dia 27 de janeiro de 1837, atingiu o poeta na barriga e este agonizou por dois dias até morrer.

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Fotos: Acervo pessoal

“Dois dias de grande sofrimento marcaram o fim do poeta que, ainda hoje, e muito vivamente, ocupa lugar cimeiro na história literária e sentimental da vida russa, em medida acima da média da que é comum em não poucos países do mundo” – conforme a anotação do tradutor de Pushkin no Brasil, embaixador Dário de Castro Alves.

É o menino Alexandr Sergueievitch Pushkin marcado fundamente por sua origem africana, por ser o bisneto de um “escravo” do czar Pedro, O grande. O bisavô Abram Petróvich (filho de Pedro!), Gannibal era descendente de um príncipe da Abissínia e fora levado por um francês que colecionava animais e “outras raridades” (escravos) para o rei Luis XIV, antes de chegar à corte do czar. Na linguagem poética pushkiana o avô é

E o mouro, pechincha de bazar,
Cresceu reto, trabalhador,
Amigo e não escravo do czar
.

Abandonado no serralho do sultão em Istambul, Gannibal foi dado como presente ao imperador russo por seu embaixador na Turquia. Pedro, o Grande, tomou-se de carinhos especiais pelo avô de Pushkin, dando-lhe o nome de Petróvich Aníbal.

Educado na corte, Aníbal torna-se um militar respeitado, a serviço do exército francês, sendo reconhecido como destacada matemático, perito em fortificações e hidrotecnia.

Pushkin sentia-se ligado, por esta via de seu bisavô, ao czar Pedro, o Grande, pois “Junto aos czares um Pushkin, sempre:/Coube-lhes honra, exaltação” – ligado a uma espécie de dignidade nobre, merecida por muitas gerações de antepassados – e não adquirida por meios duvidosos (como era comum no seu tempo):

Sob as minhas armas selados,
Meus alvarás são mais de um cento,
Meus orgulhos tenho calados,
Mas novos nobres não aguento.
Faço versos, estudo os anais,
Não sou rico nem cortesão,
Simplesmente Pushkin, sem mais,
Dono de mim: sou um vilão.

Porém, fora da autodefinição poética, afinal quem é Pushkin?
– Um caráter Proteano. Diz o professor de literatura russa Joe Andrew ao introduzir o volume de respostas às perguntas: “Quem foi Pushkin?” e “O que representou Pushkin para a Rússia?”. Proteano aqui, note bem o leitor, é tomado naquele sentido de ser associado a Proteu –, não aos modelos de carreiras da administração moderna!

No livro “Duzentos anos de Pushkin, vol. I” (ANDREW 2003[iv]) prova como essa característica do autor russo de se metamorfosear constantemente foi fundamental para o modernismo russo e para a canonização da obra de Pushkin.

Proteu é aquele deus marinho da mitologia grega que fugia diante de algum humano ansioso por saber o seu destino, que se metamorfoseava, assumindo aparências marinhas monstruosas e assustadoras.

Pushkin teria, segundo Andrew, essa característica de “Protean figure” tanto em vida quanto como a “persona póstuma”, por sua reputação e capacidade de influenciar outros escritores, foge e reaparece com novas vestes de escritor notável e pai do modernismo russo.

Nesse sentido, então, ao examinarmos a influência de Pushkin 220 anos depois, encontraríamos uma série de “filhos de Pushkin”, seguidores de uma espécie de culto iniciado por Dostoiévski e persistentemente continuado por inúmeros autores em todo o mundo, sempre ampliando a influência do poeta na cultura literária russa e na literatura de outros países.

Essa natureza “Proteana” do poeta pode ser vista em algumas adaptações que as obras de Pushkin gerou para a música e o teatro.

“O cativo Caucasiano”, por exemplo, teria sido adaptado ao balé em 1823, um ano depois da publicação e, na época do bicentenário, Lyubov Kiseleva levantou pelo menos 103 óperas baseadas na obra de Pushkin. Este cronista teve a honra de assistir a uma encenação de “Eugênio Oneguin” em 2016, numa viagem que fiz a São Petersburgo, onde também visitei a casa-museu Pushkin.

A apropriação política da obra de Pushkin é outro dado importante para reafirmar este caráter Proteano de sua vida e obra. Czaristas e comunistas começaram logo após a morte prematura do poeta a exumarem o cadáver do poeta, numa antropofagia do tipo “o meu/o nosso” Pushkin.

A literatura de Pushkin inundou o mercado de publicações, a ponto de algo em torno de 12 a 18% das obras russas girarem em torno do poeta, sendo que em 1887  — 50 anos depois do desaparecimento do poeta –, o governo russo distribuir suas obras para todas as escolas primárias do país. No final do século XIX, pois, pode-se afirmar que a persona histórica de Pushkin era já um território do mito.

Em 1828, com o poeta ainda vivo e atuante, Kireevskii tentou elevá-lo ao status de “poeta laureado”; em 1834, Gogol, um mestre da ficção russa, seguindo por quase todos que vieram depois, escreve um artigo que ficou famoso “Algumas palavras sobre Pushkin”, em que declara que cada traço da vida do poeta é “inteiramente russo”.

Com a morte trágica de Pushkin em 1837, seu enterro se transformou num ato de luto público, uma dor generalizada, sentida por todos na Rússia, uma comoção pública, como confirma o tradutor de Pushkin no Brasil Dário Moreira de Castro Alves, para quem o sofrimento do poeta ferido em duelo e o enterro foram “dois dias de grande sofrimento marcaram o fim do poeta que, ainda hoje, e muito vivamente, ocupa lugar cimeiro na história literária e sentimental da vida russa”.

Trabalhando como secretário da Embaixada do Brasil em Moscou, nos anos 1960, o grande tradutor de Pushkin, o embaixador Dário Castro Alves[v] afirmava que “não havia possibilidade, em Moscou, de que eu pudesse testemunhar, deparar alguém, de qualquer profissão – de gari a alto magistrado, de motorista a general, de porteiro a ministro, em suma, pessoa de qualquer círculo que não conhecesse Pushkin, que não o apreciasse, ou que não soubesse de cor alguma peça do poeta. Pushkin na Rússia é absolutamente universal, talvez mais do que Camões o é em Portugal, por exemplo, ou Shakespeare na Inglaterra”.

O discurso de Dostoiévski, proferido seis meses antes de sua morte, com saúde debilitada, mas lúcido, é dado como outra evidência de que o “Proteu russo” era mesmo o poeta nacional da Rússia. Diante do monumento ao poeta em Moscou, Dostoiévski emocionou a massa com seu discurso. O tradutor Dário Castro Alves concorda com Olga Ovtcharenko, do Instituto Gorki de Literatura Mundial, considerando Dostoiévski como a melhor para falar de Pushkin:

Em Pushkin havia duas ideias principais. A primeira era a universalidade da Rússia, a sua compaixão e o parentesco autêntico do seu gênio com os gênios de todos os tempos e povos do mundo… A segunda ideia de Pushkin – a sua viragem para o povo e a única esperança na sua força.

O monumento em praça de Moscou dedicado a Pushkin tornou-se um ponto de encontro para leitura pública de poesia — um marco histórico e turístico que resiste a sucessivos revisionismos (incluindo o stalinista), e parece resistir à atual cultura de cancelamento e derrubada de estátuas dos antepassados ilustres e personagens históricas.

“Pushkin é um fenômeno extraordinário, e, talvez, o fenômeno único do espírito russo, — disse Gogol. “E vou acrescentar: “ele é um fenômeno profético.” (…)

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Fotos: Acervo pessoal.

Pushkin representou a vida russa com tal força criadora, e com arte tão consumada como ninguém alguma vez o fez antes dele — e ninguém certamente o fará depois dele.

[…]
Justamente aqui, nessa qualidade [o dom de encarnar-se completamente em cada nacionalidade estrangeira], encontra ao máximo expressão essa sua força russa nacional, o caráter popular de sua poesia, de sua evolução, do porvir de todo o povo russo: nisso está seu caráter profético.
Por quê? – O que é a força do espírito do povo russo se não a sua aspiração, em sua meta última, à universalidade e à humanidade? Mal se tornou poeta popular, mal esteve em contato com a força do povo, Pushkin sentiu imediatamente a grande futura missão dessa força.

Essas citações, retiradas do estudo “Dostoiévski e Pushkin” da professora de Literatura e Cultura Russa da USP Aurora Bernardini[vi] reforçam a ideia latente do emocionado discurso de Dostoiévski:

Os futuros russos, compreenderão todos… que se tornar um verdadeiro russo significará precisamente aspirar à definitiva reconciliação das contradições europeias, mostrar a saída à tristeza europeia: o ânimo russo, profundamente humano, saberá abraçar com amor fraterno todos os nossos irmãos e, no fim, quem sabe, dirá a palavra definitiva da grande harmonia universal, do acordo fraterno definitivo de todas as raças, segundo a lei evangélica de Cristo!

Os tradutores de Pushkin em Portugal – Nina Guerra e Filipe Guerra[vii] enumeram algumas influências na introdução a “O cavaleiro de bronze e outros poemas”, sob o tema “Os filhos de Pushkin… uma prole numerosa. Toda a literatura russa dos séculos XIX e XX deve algo a Pushkin e exemplificam:

“Nicolai Gogol: pouco mais novo era que o poeta. Pushkin sugeriu-lhe, pessoalmente, o tema de O Revisor; o herói de O Capote é o pequeno e modesto anti-herói de Pushkin. Noites na Granja à beira do Dikanka segue as pisadas dos contos populares, que Pushkin gostava de por em texto.
“Fiodor Dostoiévski, com a sua Petersburgo sombria, habitada pelos descendentes do louco e desgraçado Eugênio de O Cavaleiro de Bronze”
“Mikhail Lérmontov – “Morreu poeta, servidor da honra / Caiu caluniado pela chusma”.
“Anton Tchekov – é “o Pushkin em prosa” – nas palavras e Leon Tolstói.
“Marina Tsvetáeva – “A lição que deu / – É força. O meu olhar é claro:/ Aperto, não lambo, / A mão de Pushkin”.
 “Ossip Mandelstam – este belo dístico:
“O funeral de Pushkin foi de noite…
De noite puseram o sol no caixão…”

E deixo os leitores por hoje a pensar no sol sobre o funeral de Pushkin, prometendo aos meus seis leitores que nos próximos artigos aqui na Recorte Lírico darei continuidade a esta série, com notas sobre três livros de Pushkin recentemente traduzidos em português – Eugênio Oneguin, A dama de espadas e O cavaleiro de bronze e outros poemas. Até lá e Obrigado Cпасибо (spassiba). 


Curtiu o primeiro texto da série sobre o Pushkin? Então leia também a novíssima Edição Lucila Nogueira:
Algumas notas sobre Pushkin (1) 10

[i] Cf. nota abaixo (GUERRA, 1999). Trecho do poema “A minha genealogia”, cf. Nota ii, op. cit. pág. 127.

[ii] PÚCHKIN, Aleksandr. “O Cavaleiro de Bronze e outros poemas”. Seleção, tradução, introdução e notas Nina Guerra e Filipe Guerra. Lisboa – Assírio & Alvim, 1999, pág. 11.

[iii] Idem, pág. 127-131.

[iv] ANDREW, Joe et alli. “Two hundred years of Pushkin, vol. I, “Pushkin´s secret: Russian writers reread and Rewrite Pushkin”, introdução, organização editorial e notas por Joe Andrew & Robert Reid, Ed. Rodopi, Amsterdam-New York, 2003.

[v] PUSHKIN, A. S. (Alexandr Sergeevich), 1799-1837. “Eugênio Oneguin”, tradução, introdução e notas de Dário Moreira de Castro Alves. – Rio de Janeiro, Ed. Record, 2010.

[vi] Bernardini, A. 2015. Dostoiévski e Púchkin. RUS (São Paulo). 6, 6 (dez. 2015), 13-20. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765.rus.2015.108588 link consultado em 22/9/2020.

[vii] Ver Nota 1.

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