Uma inspiração messiânica
Há mais de dois mil anos, quando o poeta latino Virgílio escreveu sua obra “Bucólicas[i]”, especialmente a IV Écloga, seus versos se tornaram o primeiro anúncio da encarnação de Jesus Cristo. Desde Santo Agostinho, essa parte do longo poema se transformou em profecia poética do nascimento de Jesus, uma inspiração messiânica composta pelo poeta 40 anos antes do Advento.
Terá a vida dos deuses o menino, que os verá
no meio dos heróis, e será visto em meio a eles,
regendo com as virtudes de seu pai um mundo em paz.
Para Dante, Virgílio se transformou no guia por excelência e tornou-se “aquela fonte/que expande de eloquência um largo rio”; para Victor Hugo é “o mestre divino” que o inspirou em “Vozes interiores” a compor estes alexandrinos maravilhosos:
Dans Virgile parfois, dieu tout près d’être un ange,
Le vers porte à sa cime une lueur étrange.
C’est que, rêvant déjà ce qu’à présent on sait,
Il chantait presque à l’heure où Jésus vagissait.
C’est qu’à son insu même il est une des âmes
Que l’orient lointain teignait de vagues flammes.
C’est qu’il est un des cœur que, déjà sous les cieux,
Dorait le jour naissant du Christ Mystérieux !
Dieu voulait qu’avant tout, rayon du fils de l’homme,
L’aube de Bethléem blanchit le front de Rome.
Sim, “a alvorada de Belém (da Judéia) parece alvejar a fronte de Roma”; e o crítico literário José Geraldo Nogueira Moutinho afirma que “no início do Cristianismo, os comentaristas do IV século, impressionados com a messiânica que domina inteiramente o poema [de Virgílio], conferiram-lhe o valor de uma profecia cristã.”
Poesia do Natal
Foi assim com Lactâncio e Santo Agostinho, que aderem a essa hipótese de profecia poética, assim como toda a Igreja medieval, culminando o processo em Dante, que, no Canto XXI do Purgatório, põe na boca de Estácio a mais fervorosa saudação ao vate. Confessando que, lendo-o, se tornou poeta e se tornou cristão, o autor da Tebaida confirma Virgílio no papel de Profeta[ii]:
Com a cristianização de Roma, à época de Constantino, no século III – e fundamentada no relacionamento entre o sagrado e o profano, a Igreja estabeleceu o “Ciclo do Natal”, tendo como ponto máximo e o foco central o que para os fiéis é o maior evento histórico: o nascimento de Jesus.
Com o ciclo do Natal, na verdade se inicia o Ano Litúrgico para a Igreja, que vai do 1º Domingo do Advento (cerca de quatro semanas antes do Natal) e termina no sábado anterior a ele.
Com isso, as origens pagãs – desde as celebrações das Saturnálias romanas –, do culto a Cronos ou ao Sol ganham outra dimensão para o crente, como neste poema do poeta baiano Wladimir Saldanha, o 5º. dos Cinco estudos dezembrinos do livro “Natal de Herodes” (2016).
Sou dos que sofrem a súbita
contemporaneidade de dezembro.
Mas não me advirtam do solstício
que eclipsaram no Natal.
Os celtas em círculo, seus hinos,
volvem todos para o Menino.
Ignorá-Lo, mudá-Lo em duende,
nada disso abrevia ou consome.
Dezembro se impõem no dia, em pleno abril.
Atravanca fevereiro, acende fogueiras
de São João. Já vai muito distante
quando se deixa ver, definitivo,
para que digam: foi tudo tão rápido!
Dezembro se desmembra: é sempre.
Para relembrar um verso de Murilo Mendes, a poética do ciclo natalino compõe uma riqueza especificamente cristã, mas torna-se também fonte de confissão e remissão. Ele próprio num poema em prosa intitulado “Natal” diz que escreve “poemas pelo resgate dos poetas cuja fé vacila” – e se inscrevem tais versos em longa tradição cristã de celebrar o Natal.
Tal é o caso dos poemas que podem ser lidos em “Poemas de Natal”, livro do jovem poeta Igor Barbosa[iii] – livro que é “uma investigação, apresentada sob a forma de um tríptico composto por trinta poemas em três formas fixas (sonetos alexandrinos, retrancas e décimas) sobre o vazio que há nas coisas feitas e vividas, conduzindo à descoberta de que o Menino Jesus, o Cristo, é quem dá sentido à vida e às obras humanas.”
Comecemos por este Motivo, poema de abertura da nova edição do livro de Igor Barbosa:
Ó ave sazonal, que uma vez por ano
pousa em meu coração, mais uma vez te espero;
e porque sei que pousas sem perturbar meus planos
é que tua vinda me é tão cara; assim te quero.Ó luz escultural que aos olhos não faz dano,
apaga a ilusão: O sonho de ser sério
não dura em tuas lousas, e as cores do profano
não tocam quem tu és: Teu nome é sincero.Ó fruto do desejo, resposta universal:
Não quero consumir-te muito mais que plantar-te;
ainda que não andes tão cedo sobre o vau
deste braço de água em que vais desenhar-te
dando na vida um beijo (pois ela passa mal),
espero resumir-te em resumida arte:Desenho em traços grandes e toscos como o mal
da minha dor, da mágoa com que já tive parte….
Do mesmo livro, extraí este poema de G. K. Chesterton (A litte litany), traduzido por Igor como Pequena ladainha; o original vem logo abaixo da tradução:
Quando o Senhor deixou a eternidade e se fez jovem,
o autor do tempo se encolheu para a tua alegria
(como sob o arco inferior do sol a terra brilha);
e olhando só a ti, portão do céu, a terra via.Ou ao cerrar seus céus dourados, só por um momento,
como uma casa de ouro Ele te quis, Ele te fez,
para te decorar com quadros do mundo sedento
voltando-se para Ele, O entendendo, dessa vez.Ou descobrindo em ti o Seu espelho; o único vidro
que pode suportar a Sua luz sem se quebrar,
até que de Sua casa no mais alto céu, Deus pôde
ver Deus, como à noite os fantasmas podem se encontrar.Estrela da manhã de Deus: Estrela que não cai
e que brilhou naquela hora de segredo arcano
em que a terra e o céu, por um instante, se inverteram
e o céu olhou para cima, observando um rosto humano.Ou, quando no teu colo, o saber celestial
chorava: A mesma voz que a todo homem hoje exorta,
e mais que o brilho imenso que lhe ofertam Querubins
teu colo preferiu: Um trono de misericórdia.Ou, deixando um instante de brincar à tua bainha,
Deus mesmo, já peralta, em ti se aninha, em ti repousa;
teu alto corpo escala, a grande torre de marfim,
e dá, nos lábios teus, um beijo na mística rosa.
A LITTLE LITANY
G. K. ChestertonWhen God turned back eternity and was young,
Ancient of Days, grown little for your mirth
(As under the low arch the land is bright)
Peered through you, gate of heaven–and saw the earth.
Or shutting out his shining skies awhile
Built you about him for a house of gold
To see in pictured walls his storied world
Return upon him as a tale is told.
Or found his mirror there; the only glass
That would not break with that unbearable light
Till in a corner of the high dark house
God looked on God, as ghosts meet in the night.
Star of his morning; that unfallen star
In that strange starry overturn of space
When earth and sky changed places for an hour
And heaven looked upwards in a human face.
Or young on your strong knees and lifted up
Wisdom cried out, whose voice is in the street,
And more than twilight of twiformed cherubim
Made of his throne indeed a mercy-seat.
Or risen from play at your pale raiment’s hem
God, grown adventurous from all time’s repose,
Or your tall body climed the ivory tower
And kissed upon your mouth the mystic rose.
Mas é necessário registrar que há em Igor uma catolicidade que é de todo reconhecível e identificável, na linha da catolicidade de Tasso da Silveira – “o mais homogeneamente católico dos poetas do Brasil” (Zamboni, 2014) e que é capaz de poemas como este:
A obra das mãos dispensa o rosto de mostrar-se;
a irradiação da ideia, que restaura
a impossibilidade de que se disfarce,
transforma o feito no seu rosto, na catarse
das entrelinhas do suor na sua face,
porque a mão fez força a fim de que se exaura
o custo da matéria prima; o desenlace
será seu testemunho ali, até que passe
a própria e vã dificuldade que escavara
ao desenhar um mapa assim: Não destacasse
a existência de matéria assim tão rara
nos fundos da caverna, em que se torna clara
a própria treva, e este minério de outra classe
seria a permanência do pó que ficara.
E para finalizar, tenho ainda sobre a mesa outro livro sobre a temática deste ciclo – é do goiano Miguel Jorge – “Natal de Poemas[iv]”. Livro que tem uma verve menos religiosa (naquele sentido original de guarda do sentido do sagrado). O Autor goiano aqui estabelece laços com uma sutil crítica social, embora não desfaça os laços cristãos do que representa o Ciclo do Natal, de tão cara memória.
Consta do livro de Miguel Jorge 22 poemas e uma carta ao Papai Noel, todos em amostra bilíngue, com tradução ao idioma espanhol feita pelo editor professor Antonio Corbacho Quintela, e ilustrações de Amaury Menezes, do que pode ser amostra este poema Do viver que nos diz:
Eis aqui o Natal posto sobre a mesa.
Deitam-se os sonhos em pratos de ouro,
na medida certa de suas engrenagens.
O cantar não é assim, o cantar de anjos, trigais
ao vento, incensos e mirras.
Nesta manhã, aproximam-se os sonhos dos sonhos,
evocações de ouros, e poucos respiram por ele.
Eis aqui, em caldeamento ode cores, a chama
azul a aureolar cabeças, ao tempo em que se
acordam pesadelos, os deuses a confortarem
nossa existência. Líbano, Síria, Palestina, em garras.
Punhos enrodilham-se à sombra das noites. Rezas de
estreitos oceanos se entrelaçam ao fulgor das chamas.
O fresco e claro som das orações a iluminar o renascer
de uma bela e antiga história.
Leia também a Edição Clarice Lispector, comemorativa por seu Centenário!
[i] VIRGÍLIO, 70-19 a.C. “Bucólicas”; tradução e notas de Péricles Eugênio da Silva Ramos; introdução de Nogueira Moutinho. Ilustr.: Marcos Lima. São Paulo: Melhoramentos; Brasília, Editora da UnB, 1982.
[ii] ALIGHIERI, Dante. A divina comédia: Purgatório; tradução e notas de Ítalo Eugenio Mauro. – São Paulo: Ed. 34, 1998, pág. 145.
[iii] BARBOSA, Igor. “Poemas de Natal acrescidos de um ensaio sobre a dor, a cura e a vida”, Ilustrações: Barbosa, Cintia. 1a. Ed. – Rio de Janeiro: Editora ViV, 2019. Livro disponível no site da editora, cf. link: www.editoraviv.com.br/loja
[iv] JORGE, Miguel. “Natal de poemas – Navidad de poemas”, tradução ao espanhol por Antonio Corbacho Quintela. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária, 2017. 122 p. 13 il.