Cultura literária medieval

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Eis-nos, benévolo leitor, diante de um novo ano, renovando as esperanças e planejando escrever novas histórias. Eis-nos, diante do deus Jano (Ianus), a divindade romana das portas, das passagens, dos princípios, fechamentos e transições. Já estivemos aqui. Curvemos novamente a fronte diante da figura do mito latino que foi associada por Santo Agostinho às portas de entrada e saída, às transições – às passagens.

Dessa sua face dupla em que estão simbolizados o passado e o futuro, colheitas e dinheiro, Santo Agostinho reinventou o mito, quando diz: “Jano tem poder sobre todos os começos”; e ainda: “em poder de Jano estão os inícios”. É, portanto, sob a égide de Jano que o cronista lança um olhar atento para a literatura medieval.

Recorro ao mestre Segismundo Spina para iniciar o ano (e quem sabe mais uma série de textos) adentrando às veredas da Idade Média. Spina nos habilita a seguir o caminho de “aventura e encantamento”, que é percorrer as veredas da Idade Média, certos de que estamos sendo guiados por mestre seguro do destino traçado.

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Saiba o leitor que com Spina, estará diante de um mestre da palavra poética – título que aqui tomo de empréstimo ao professor Alfredo Bosi, ao falar do Spina poeta da juventude, que deixou a expressão poética num segundo plano, para que o pedagogo tomasse a cena.

Eis-nos, benévolo leitor, diante da Idade Média sem os pejorativos e os esquemas deletérios que a ela foram atribuídos pelos filósofos ditos “livres pensadores”, pelos matemáticos e racionalistas de um século que decidiu voltar as costas ao de sua própria mãe, pois, afinal não haveria Renascimento sem os diversos renascimentos que essa época abençoada promoveu na história da Humanidade.

Saiba ainda, como bem nos adverte o autor[i], que, “o ingresso na cultura medieval, em especial a literária, não se faz sem pagarmos um pesado tributo; a compreensão dos valores dessa época exige do estudioso uma perspectiva ecumênica, pois as grandes criações do espírito medieval – na arte, na literatura, na filosofia – são frutos de uma coletividade que ultrapassa fronteiras nacionais. E uma visão de conjunto só se adquire depois de muitos anos de trato e intimidade” (SPINA, 1997, p.12).

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É de Yara Frateschi Vieira[ii], da Unicamp, a observação lapidar sobre o mestre Spina:

O professor Spina pertence às primeiras gerações de intelectuais brasileiros que se formaram em universidades nacionais e nelas permaneceram, contribuindo com o seu trabalho de docência, orientação e pesquisa para a construção e transmissão de um saber institucionalizado, sim, mas não limitado, no seu âmbito e alcance, às paredes da escola.

Cultura literária medieval 1
Segismundo Spina, filólogo, medievalista (1921-2012).

E mais poderia este velho escriba dizer: “Spina, dileto Mestre”, porque é ele autor de diversos livros, tendo como obras mais destacadas os estudos “Do Formalismo Estético Trovadoresco” e “Apresentação da Poesia Barroca Portuguesa”. Na Editora da USP (Edusp) tem ele três títulos publicados: “A Lírica Trovadoresca”, “A Poesia de Gregório de Matos” e “Ensaios de Crítica Literária”. A editora citada me ajudou a reconstituir em síntese uma carreira de uma vida, diante da qual prostramo-nos todos que admiramos a Literatura Medieval e os estudos de Filologia.

Uma literatura não sobrevive sem pesquisadores do naipe de Spina, daí que agora volto-me a ti, leitor, para te repetir as palavras do ex-assistente de Spina, o professo Oswaldo Humberto L. Ceschin na edição que tenho sobre a mesa e que te desejo seja leitura em futuro breve:

Cultura literária medieval 2
Este livro é “um guia seguro da literatura medieval”, garante o prof. Osvaldo H. L. Ceschin

“Este livro é um exemplo de como dar contribuição a uma área de estudos muito complexa com simplicidade e eficiência. A iniciativa da Ateliê editorial de recuperar para o uso de tantos que se interessam por cultura e literatura este precioso resultado do conhecimento e da experiência de Segismundo Spina merece aplausos. Publicado em 1973, volta agora em nova e cuidadosa edição, como convém a um trabalho científico e didático que preservou, por seu conteúdo, o valor e a atualidade”.


De fato, caro Leitor, este livrinho é um livraço – “A cultura literária medieval: uma introdução”, do professor Spina, merece ser lido mesmo por leigos. Ali o leitor encontrará uma divisão pedagógica em três partes teóricas específicas (As Formas; O Estilo; A Temática) e cinco sinopses cronológicas de excelente alcance didático pela abundância de dados ordenados, segundo os critérios críticos adotados pelo autor.

O professor Spina expõe os elementos fundamentais da literatura medieval a partir das formas, do estilo – expressão que marca, segundo Ceschin, “o artista, o movimento e a época –, e dos temas, que nas relações com a forma e a expressão constituem o lastro dessa matéria estética elaborada no período das cruzadas, da cavalaria, dos monastérios, das catedrais, das relações feudais e senhoriais que mudaram a história europeia”. As cinco sinopses cronológicas do livro estão assim apresentadas por Segismundo Spina:

  • Sinopse I) – Século IX-XI – a. Séc. IX-XI; e Fins do séc. XI – Período de criação – foco: França;
  • Sinopse II) – Século XII – Sentimental e Imaginativo; 
  • Sinopse III) – A. Século XIII – Racionalista – Escolástico – Primado da França; B. Fins do Século XIII – Início do Primado Italiano; 
  • Sinopse IV – Século XIV – Aurora do Humanismo – Primado da Itália; 
  • Sinopse V – Século XV – Outono da Idade Média e Madrugada do Renascimento. Ainda o Primado Italiano.

O mestre Spina tem a nos ensinar, na arte da filologia, em sua função substantiva, que se concentra no texto para explicá-lo; na sua função transcendente, onde o texto deixa de ser um fim em si mesmo para se transformar num instrumento que permite ao que cria e ao que relê “reconstituir a vida espiritual de um povo ou de uma comunidade de uma determinada época.”

E mais ainda, considerar a filologia na sua “função adjetiva”, função na qual esta ciência deduz, do texto, aquilo que não está nele: a determinação da autoria, a biografia do autor, a datação do texto, a sua posição na produção literária do autor e da época, bem como sua “valorização”, que é para Segismundo Spina “a avaliação estética” par excelence.

Já no prólogo de “Apresentação da lírica trovadoresca” (SPINA, 1956, p.7), Spina nos advertia sobre o nosso notório descaso da cultura medieval, em especial, para o desconhecimento da literatura. Devemos a uns poucos críticos e estudiosos não só o gosto dos estudos medievais, como o desenvolvimento de um método para apreciação desse período da história literária.

Os primeiros capítulos da história literária da moderna Europa foram abertos, no curso do século XI, com os troveiros [trouvères] do norte da França e os trovadores [troubadours] da Provença. Por Provença vamos designar aqui, à revelia da impropriedade do termo, toda aquela civilização do Languedócio [Languedoc] que está compreendida entre o Mediterrâneo e o Maciço Central, os Pirineus e a fronteira italiana. Aí brotou, quando em língua vulgar também surgia uma floração épica no setentrião da França, uma poesia lírica, cuja importância é indiscutível como fonte de todo o lirismo europeu dos séculos posteriores.

E porque a síntese se impõe à crônica, escolho para apresentar a você, leitor, uma pequena amostra de um só desses representantes de tão ricas “expressões da arte provençal”, aquele de quem disse Dante ser “il miglior fabbro del parlar materno”.

Falo de um dos escolhidos do poeta Augusto de Campos em “Mais provençais[iii]” – Arnaut Daniel (1180-1210). Campos admite que “foi indubitavelmente [Ezra] Pound que, retomando o esquecido juízo de Dante, recolocou na altura merecida o artesanato furioso de Arnaut, contextualizando-o no quadro da linguagem poética moderna”. Uma amostra poderia ser esta Canção traduzida por Augusto de Campos:

CANÇÃO DE AMOR CANTAR EU VIM [iv]

Canção de amor cantar eu vim
ao ver o verde do capim
            e o campo enfim
            cheio de cor
            de muita flor
      e verde ver a folha,
            para que o ar
            no meu cantar
      os pássaros recolha.

Recolho o som do ar assim
e para revivê-lo em mim
            eu canto, sim,
            pois sei compor
            com arte e ardor
      e Amor não há quem tolha;
            nalgum lugar
            vou encontrar
      alguém, não tenho escolha.

Se escolhe Amor ao amador
o faz escravo de um senhor:
            aonde for,
            o faz voar
            e revoar
       ao vento como bolha;
            triste e ruim
            é sempre o fim
      de quem Amor acolha.

Assim acolhe com calor
a dama bela ao trovador,
            mas o temor
            do mau olhar
            não quer deixar
   que Amor aflore e colha
            em seu jardim
            a flor carmim
   que a inveja aferrolha.

Ferrolhos põe, para apartar
a bela dama do seu par
            e a exilar
            nalgum confim,
            longe, sem-fim;
   por isso o olhar se molha
            de ira e dor,
            por não dispor
   da flor, que se desfolha.

Desfolha, a flor, a descorar,
mas sua cor há de voltar
            pois meu trovar,
            claro clarim,
            não há Caim
    que a ouvi-lo não se encolha,
            nem fingidor
            ou traidor
   que ele não desacolha.

À Dama ama e olha
            Arnaut, cantor,
            que ante esse Amor
todo outro amor se esfolha.
   


[i] SPINA, Segismundo. “A cultura literária medieval: uma introdução”. São Caetano do Sul (SP): Ateliê Editorial, 1997.

[ii] Cf. link web: https://blog.atelie.com.br/2013/01/um-mestre-da-palavra-poetica/#.YAHUhehKiUl consultado em 15/01/2021, às 14h46 – ensaio apresentado no 22º. Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa.

[iii] CAMPOS, Augusto de. “Mais provençais”. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

[iv] Idem, pág. 58/60 (provençal) e p. 59/61 (português).

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