[Hilda Hilst pede contato] Literatura e interpretação do (outro) mundo

Verônica Daniel Kobs

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Recentemente, Gabriela Greeb lançou livro e filme com o mesmo título: Hilda Hilst pede contato. O duplo projeto da diretora paulistana traduz muito bem o estilo e a personalidade da escritora paulista. Hilda Hilst (1930-2004) era múltipla e eclética. Na visão de Italo Calvino, o “multíplice […] substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo […]” (CALVINO, 1998, p. 132), já que “o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (CALVINO, 1998, p. 127).

Hilda, sem dúvida, era plural, concretizando estes versos do mestre modernista Mário de Andrade: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, / Mas um dia afinal eu toparei comigo…” (ANDRADE, 2021). Como autora, Hilda escreveu tanto em verso quanto em prosa, além de ter se dedicado ao teatro. Essa versatilidade não foi apenas um recurso para que Hilda se descobrisse como artista. Mais do que isso: as diferentes experimentações refletiam a curiosidade, a inquietação e a busca incansável da escritora por saber e conhecer muito sobre tudo:

Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior. A descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (CALVINO, 1998, p. 138)

O máximo ainda era pouco para Hilda Hilst. Ela lia diariamente, por várias horas. Chegava a alternar escrita, reflexão e leitura. Por essa razão, quando fui dar título a esta resenha, tive a ideia estabelecer uma relação com estas palavras de Marisa Lajolo:

Em nossa cultura, quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida, mais intensamente se lê, numa espiral quase sem fim, […].

Do mundo da leitura à leitura do mundo, o trajeto se cumpre sempre, refazendo-se, inclusive, por um vice-versa que transforma a leitura em prática circular e infinita. (LAJOLO, 1993, p. 7, grifo nosso)

O reduto pessoal e intelectual de Hilda Hilst era uma chácara localizada em Campinas (SP) e conhecida como a Casa do Sol:

A Casa do Sol tornou-se um espaço de encontro de artistas, jornalistas e pesquisadores. Eram seus visitantes os escritores Lygia Fagundes Telles, Caio Fernando Abreu e Olga Savary; os críticos literários Leo Gilson Ribeiro e Nelly Novaes Coelho; a artista visual Maria Bonomi; os físicos Newton Bernardes e Cesar Lattes, entre outros. A presença da proprietária no ambiente era central, aguda, marcante, estimulante.

[…].

Hoje, após a morte da autora, a Casa do Sol mantém-se dedicada à criatividade. Sede do Instituto Hilda Hilst (IHH), é aberta a residências artísticas e espetáculos teatrais. (ITAÚ CULTURAL, 2021)

Isolada na casa do Sol, Hilda falava e discutia sobre tudo: física, filosofia, literatura, política, ufologia… Mas há, ainda, outro detalhe que pode ser somado à versatilidade da autora, na leitura e na escrita. É algo que diz respeito a ela mesma e a alguns de seus personagens, no que se refere às questões de gênero e sexualidade. Hilda Hilst perverteu a ordem e desconstruiu estereótipos, utilizando os preceitos do que hoje denominamos gênero fluido. Trata-se de uma categoria “não-binária” que prevê a “mudança de um gênero a outro” (TUMBLR, 2021).

Do mesmo modo, Hilda transitou com muita altivez e perspicácia por dois universos — a religiosidade e pornografia — que, de início, são considerados antagônicos, mas que se tornam complementares. Analisando a obra teatral de Hilda Hilst, Éder Rodrigues e Sara Rojo mencionam especificamente a peça O verdugo, concluindo que: “O elemento performático do texto reincide sobre as significâncias do revelar em risco, do abrir interpretações e lançar ultimatos de ruptura, contrapor” (RODRIGUES; ROJO, 2015, p. 47, grifo nosso). Essa afirmação também é bastante significativa para entendermos o valor do projeto de Gabriela Greeb. Hilda Hilst pede contato é uma obra sobre a vida, a morte e sobre a vida após a morte.

Retomando as palavras de Rodrigues e Rojo, a escritora paulista, ao tentar entender os espíritos e a quarta dimensão, faz um convite — ao diálogo e a novas perspectivas. Quando vai à Casa do Sol, Gabriela Greeb começa a idealizar o filme (Fig. 1): “Hilda, já morta, tenta se comunicar com os vivos. […]. Os escritores, em geral, querem ser ouvidos ou querem se escutar na boca do outro. Hilda é diferente, ela quer ouvir o outro, ela quer o diálogo. Contato” (GREEB, 2018, p. 175).

[Hilda Hilst pede contato] Literatura e interpretação do (outro) mundo
Figura 1: Cena do filme Hilda Hilst pede contato (BRA, 2018), de Gabriela Greeb.
Imagem disponível em: <https://www.papodecinema.com.br/filmes/hilda-hilst-pede-contato/>

A fim de estabelecer esse contato com o outro mundo, Hilda Hilst fazia anotações e usava equipamentos específicos. Além disso, ela se cercava de amigos (incluindo escritores, físicos e outros convidados) que, como ela, acreditavam na possibilidade de comunicação entre os vivos e os espíritos:

Alô, alô, povo cósmico, rede telefonia, Hilda procurando contato, Hilda procurando contato. Dia 24 de setembro de 1978. Hilda procura contato com o absurdo. Por favor, algum dos meus amigos me diga se está vivo. Algum dos meus amigos pode falar comigo? É Hilda, Hilda Hilst. (GREEB, 2018, p. 151)

Por alguns anos, as experiências de Hilda Hilst com o extramundo renderam centenas de audições, anotações e tentativas de interpretação. Parceira constante de Hilda nesse projeto foi a escritora Lygia Fagundes Telles, que chegou a ouvir algumas vozes do além:

LYGIA: A impressão que eu tenho, as vozes que eu ouvi nas gravações são coisas assim, tão ligeiras, né?

HILDA: Pois é rápido demais, mas é incrível, né? (GREEB, 2018, p. 139)

Mais adiante, na mesma conversa, podemos ler a descoberta que as duas escritoras fizeram: de que os espíritos não se comunicavam se houvesse silêncio.

LYGIA: É interessante, Hilda, eu notei que todas as falas acontecidas foram enquanto se falava.

HILDA: Parece que eles aproveitam o som.

LYGIA: Aproveitam o som. Talvez usem a nossa própria voz como instrumento para eles, porque no silêncio não houve a menor manifestação. (GREEB, 2018, p. 140)

Com base nesse dado, Hilda providenciava para que sempre houvesse algum tipo de barulho ou ruído, em suas tentativas de estabelecer contato:

Vocês estão me ouvindo?

Povo cósmico, contato. Hilda pedindo contato com o povo cósmico, a quarta dimensão, os mortos que não estão mortos. Eu vou ler alguma coisa, eu acho que vocês podem ficar mais assim. Aproveitar mais o som. Vou fazer barulhos com papéis… (GREEB, 2018, p. 147-148, grifo nosso)

Para a física, “o tempo é a 4ª dimensão, […] é uma linha que vai do passado ao presente e ao futuro” (PORTAL SÃO FRANCISCO, 2021) e essa conexão vem reforçar o desejo de Hilda Hilst por ultrapassar quaisquer limites e ir sempre além. Nós, meros mortais, não somos capazes de ver ou ouvir o que existe na quarta dimensão. As coisas estão lá, mas não podemos percebê-las de modo nítido. Nosso corpo nos limita. Entretanto, podemos contar com o auxílio da filosofia, para tentar compreender essa linha temporal múltipla e encadeada que a física descreve:

[…] entre o homem e Deus, alfa e ômega de todas as coisas, que imensa lacuna! […]. Que filosofia já preencheu esta lacuna? O Espiritismo no-la mostra preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos dos homens, nos diferentes graus que levam à perfeição. Tudo então se liga, tudo se encadeia, desde o alfa até o ômega. (KARDEC, 2019, p. 44)

Durante quatro anos, Hilda Hilst tentou estabelecer uma ponte entre o mundo terreno e o mundo dos espíritos… Embora ela tenha tido sucesso em algumas ocasiões, ela registrou a falência de seu projeto, já que, como sempre, a escritora desejava algo a mais:

Povo cósmico, contato. Já é dia 24, são duas e pouco da madrugada, eu continuo como uma debiloide tentando falar com vocês, e vocês com umas vozes absolutamente inaudíveis. […].

É quatro anos aqui na Terra que eu estou fazendo isso, não vai dar tempo, porque uma hora eu estou aí, né? Por que vocês inventaram essa coisa de “ponte”, se vocês não podem nem falar alto nem dizer nada? Não entendo.

Meu intermediário, eu vou terminar minhas gravações definitivamente, não há mais possibilidades. Eu acho uma tarefa inútil porque parece que vocês não querem mais falar comigo. […]. Aqui na Terra eu estou fazendo papel de imbecil, de palhaça, porque só eu é que ouço. […].

[…].

Boa noite para vocês, a experiência foi praticamente nula, eu ouço vocês de longe, mas não entendo nada. (GREEB, 2018, p. 153-154, grifo no original)

A irritação da autora devia-se à dificuldade de decifrar os sons que ela conseguia gravar. Nas anotações de Hilda, compiladas em fac-símile, por Gabriela Greeb, lemos várias tentativas vãs de interpretação. Em uma das transcrições, Hilda Hilst estabeleceu algumas hipóteses, a fim de buscar um sentido coerente para a gravação: “Voz isolada grita o que parece a palavra MERECI, devida ou merecida ou Bedecilda” (GREEB, 2018, p. 163). Podemos observar que Hilda inicia seu processo de interpretação fazendo a correspondência com termos triviais, conhecidos por qualquer pessoa. Porém, sua última sugestão é “Bedecilda”, nome de sua mãe, concretizando uma etapa comum, no ato da leitura, conforme explica Alberto Manguel:

Conforme Bacon sugeriu, infelizmente (ou felizmente) só podemos ver aquilo que, em algum feitio ou forma, nós vimos antes. Só podemos ver as coisas para as quais já possuímos imagens identificáveis, assim como só podemos ler em uma língua cuja sintaxe, gramática e vocabulário já conhecemos. (MANGUEL, 2006, p. 27, grifo no original)

Apesar da frustração da escritora, a experiência sobrenatural existiu e, de fato, mostrou possibilidades para discutir questões ainda insolúveis, no mundo real e terreno. Inclusive, em Hilda Hilst pede contato, Gabriela Greeb registra testemunhos de pessoas próximas de Hilda, que afirmam que a Casa do Sol era uma espécie de lugar mágico, onde Hilda e seus convidados avistaram até mesmo discos voadores, em mais de uma ocasião.

Depois da morte de Hilda Hilst, Gabriela Greeb fez inúmeras visitas à Casa do Sol, ma, certa vez, ocorreu algo inusitado. Pode-se dizer que, naquele dia, a própria Hilda Hilst fez contato com a diretora:

Fui à cozinha buscar minha bolsa, estava escuro. Quando entrei, um raio de luz atravessou a porta entreaberta do pátio, incidiu sobre as acerolas na mesa e o ambiente se inundou de vermelho. [...]. Aquela cena era incrível. Mora [José Luís Mora Fuentes] viu aquilo e riu, disse que era um sinal, um código. Que Hilda havia prometido a ele que depois de morta daria sinais de sua presença através da luz vermelha. (GREEB, 2018, p. 176)

O vermelho é o símbolo do poder, o que também sugere duplicidade: “(…) ação e paixão, libertação e opressão” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946).  Novamente, Hilda Hilst torna-se muitas, agora representada pela cor que Gabriela escolheu para a criação e a divulgação de sua obra (Fig. 2):

[Hilda Hilst pede contato] Literatura e interpretação do (outro) mundo 1
Figura 2: Cartaz de divulgação do projeto Hilda Hilst pede contato, de Gabriela Greeb.
Imagem disponível em: <https://www.adorocinema.com/filmes/filme-265443/fotos/detalhe/?cmediafile=21529473>

Nas palavras da diretora, o filme e o livro deveriam ter “a luz vermelha (o vermelho da vida): carne, terra, sangue. O vermelho como sinal de sua presença [a presença de Hilda Hilst, claro!]” (GREEB, 2018, p. 182). Hilda Hilst ainda está entre nós. Não podemos vê-la, mas podemos senti-la e ouvi-la sussurrando, mesmo que sejam sons incompreensíveis.


REFERÊNCIA

ANDRADE, M. de. Eu sou trezentos… Disponível em: <http://culturafm.cmais.com.br/radiometropolis/lavra/mario-de-andrade-eu-sou-trezentos>. Acesso em: 20 jul. 2021.

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

GREEB, G. Hilda Hilst pede contato. São Paulo: SESI, 2018.

ITAÚ CULTURAL. Casa do Sol: essa extensão de mim. Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/hilda-hilst/casa-do-sol/>. Acesso em: 11 ago. 2021.

KARDEC, A. Introdução ao estudo da doutrina espírita. In: _____. O livro dos espíritos. Londrina: IDE, 2019, p. 11-44.

LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993.

MANGUEL, A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letars, 2006.

PORTAL SÃO FRANCISCO. Quarta dimensão. Disponível em:<https://www.portalsaofrancisco.com.br/fisica/quarta-dimensao>. Acesso em: 11 ago. 2021.

RODRIGUES, E.; ROJO, S. A eminência da morte na dramaturgia de Hilda Hilst: A possessa e O verdugo. In: REGUERA, N. M. de A.; BUSATO, S. (Orgs.). Em torno de Hilda Hilst [versão on-line]. São Paulo: UNESP, 2015, p. 29-48.

TUMBLR. Espectrometria não-binária. Disponível em: <https://espectrometria-nao-binaria.tumblr.com/>. Acesso em: 11 ago. 2021.


LEIA TAMBÉM: As vozes do feminino nas obras de Hilda Hilst e Frida Kahlo

5 comentários em “[Hilda Hilst pede contato] Literatura e interpretação do (outro) mundo”

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