O lado negro de Machado de Assis revisitado por Sérgio Bianchi
No conto “Pai contra mãe” (1906), Machado de Assis revisita o passado de sua raça, dando aos leitores um novo panorama, pós-abolição. Entretanto, quando lemos a narrativa, percebemos que a escravidão deixou marcas indeléveis, que, quase dez anos depois, quando Machado publicou seu texto, na coletânea Relíquias da casa velha, ou mesmo hoje, ainda estão presentes nas relações sociais, de um modo ou de outro. Sem dúvida, isso é parte do aspecto relacional que caracteriza as identidades, sejam elas de classe, de cor, de raça ou de gênero:
A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição […] está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosa mente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas. (SILVA, 2003, p. 81)
Portanto, no conto, o narrador de Machado com certeza dirigia-se à elite branca, classe a que pertencia a maioria dos leitores daquela época, quando ainda não tinha ocorrido a democratização da literatura. Nesse sentido, como lhe era habitual, o provocativo narrador machadiano falava diretamente ao leitor, convidando-o a imaginar a realidade dos negros escravos:
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. (ASSIS, 1970, p. 10-11, grifo nosso)
De fato, a realidade representada no texto literário era uma constante também em outras artes como, por exemplo, nas telas de Rugendas e de Debret (Fig. 1):
Como se vê, em ambas as obras, menciona-se um cenário urbano e isso se relaciona ao primeiro equívoco que deve ser reparado em nossa história: a escravidão desenvolveu-se no Brasil em meio à urbanidade, sem se restringir ao campo, e às fazendas, especificamente. Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro, o Rio de Janeiro apresentava “a mais forte concentração urbana de escravos do Novo Mundo” (ALENCASTRO, 2008). O autor completa essa informação, mencionando que, de acordo com o censo de 1849, o “Rio (zona urbana e rural) possuía 266.000 habitantes dos quais 110.000 eram escravos. Se nos limitarmos à delimitação urbana do município, o número de habitantes era de 206.000 dos quais 79.000 eram escravos” (ALENCASTRO, 2008).
Considerando isso e a necessidade de desmistificar algumas questões eternizadas pela história, o narrador do conto “Pai contra mãe” trata das máscaras, que significam a um só tempo a coisa em si e também uma espécie de metáfora para a hipocrisia social, que Machado de Assis sempre tentava denunciar e combater vigorosamente, por meio de sua literatura:
Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. (ASSIS, 1970, p. 9, grifo nosso)
No filme Quanto vale ou é por quilo?, de 2005, o diretor Sérgio Bianchi usa imagens para substituir a descritividade privilegiada pelo narrador machadiano. Sendo assim, o diretor também nos apresenta a “tal máscara”, mas por intermédio da visualidade que, pela concretude, causa maior impacto no leitor/espectador (Fig. 2):
Voltando ao conto, a revisita de Machado permite uma crítica sob outra perspectiva, afinal, Machado era negro e, no texto literário em questão, o tema são os negros escravos e recém-libertos.
Sim. Machado de Assis era negro e este é um registro que indica tal característica: “‘Era miúdo de figura, mulato de sangue, escuro de pele, e usava uma barba curta e de tonalidade confusa, que dava ares de antigo escravo brasileiro, filho do senhor e criado na casa de boa família. […]’” (PORTAL GELEDÉS; NOBRE, 2021). Porém, “Machado de Assis era considerado um integrante da elite carioca, e portanto, um homem branco. Isto foi o que anotou no atestado de óbito de Machado de Assis, o escrivão Olimpio da Silva Pereira” (PORTAL GELEDÉS; NOBRE, 2021) (Fig. 3):
Sobre a fraude realizada na certidão de morte do autor, os estudiosos da vida e da obra de Machado de Assis consideram que o “fato é muito significativo, pois, a obrigatoriedade do registro [de] cor nos documentos fúnebres só fora estabelecida 75 anos mais tarde, em 1973, em função provavelmente da luta dos movimentos negros […]” (PORTAL GELEDÉS; NOBRE, 2021). Entretanto, esse dado histórico explica por que, na maioria das enciclopédias e dos livros didáticos, a foto geralmente associada ao escritor realista não corresponde à realidade (Figs. 4 e 5):
Quer saber mais sobre este assunto? No dia 17 de julho, às 14h30, a Fae Curitiba, dando continuidade ao projeto Litteraria: Vozes de Resistência, oferece a palestra Pai contra mãe, de Machado de Assis, e o filme Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi. Nesse evento, serão analisados o conto realista, publicado em 1906, e o longa-metragem, lançado em 2005. A comparação objetiva demonstrar os resquícios da escravidão — camuflados pelo favor e pela filantropia —, em nossa sociedade atual. Acesse https://www.fae.edu/noticias-e-eventos/evento/161923122/litteraria-vozes-de-resistencia.htm para se inscrever. A gente se vê lá!
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