Verônica Daniel Kobs
Antes de dar início às relações interartísticas que este estudo propõe, cabe resgatar o
princípio básico da obra de Oswald de Andrade, que foi desenvolvendo aos poucos, até delinear
com mais clareza o que o autor chamou de movimento antropofágico. A antropofagia utilizava
“um tipo ao mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência europeia por
um mergulho no detalhe brasileiro” (Candido, 1965, p. 144-145). Por causa disso, Haroldo de
Campos faz menção à “devoração crítica”, alertando para o fato de que “a atitude antropofágica
proclamada no ‘Manifesto’ de 1928 […] já está presente, embrionariamente, no ‘Manifesto da
Poesia Pau-Brasil’” (Campos, 1974, p. 31).
Realçando a interculturalidade que norteou a produção do autor modernista, desde a década
de 1920, o crítico e colega Paulo Prado sintetiza o surgimento da poética de Oswald de Andrade:
Oswald de Andrade, numa viagem a Paris, do alto de um atelier da Place Clichy — umbigo do
mundo — descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou, no
encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil existia. Esse
fato, de que alguns já desconfiavam, abriu seus olhos à visão radiosa de um mundo novo,
inexplorado e misterioso. Estava criada a poesia “pau-brasil”. (Prado, 1974, p. 67, grifo no
original)
Na tentativa de refazer os passos do autor, na capital francesa, este ensaio propõe algumas
aproximações, a fim de aventar hipóteses que permitam uma melhor compreensão do papel das
vanguardas no pensamento e na poesia oswaldianos.
O Dadaísmo foi a vanguarda que mais questionou o status da arte, ao propor um olhar
contemplativo em relação às coisas do dia a dia (Fig. 1), compreendidos como “objetos antiarte”
(Ades, 2000, p. 99), os quais, por sua vez, motivaram a técnica que ficou conhecida como “ready-
made recíproco” (Ades, 2000, p. 99). Nesse contexto, estabeleceram-se a “fotomontagem” e
“colagem […] feita de recortes de jornais” (Ades, 2000, p. 106).
Fonte: https://www.wikiart.org/pt/kurt-schwitters/difficult-1943
Coerente com os princípios do Dadá, Oswald de Andrade, no texto “agente”, usa a
linguagem típica dos classificados de jornais para construir um poema:
agente
Quartos para famílias e cavalheiros
Prédio de 3 andares
Construído para esse fim
Todos de frente
Mobiliados em estilo moderno *
Modern Style
Água telefone elevadores
Grande terraço sistema yankee
Donde se descortina o belo panorama
De Guanabara (Andrade, 1974, p. 108)
Em outra referência clara ao Dadaísmo, a série de poemas reunidos na seção “Pero Vaz de Caminha” é construída com base na releitura e reescrita dos documentos do período colonial.
a descoberta
Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra ((Andrade, 1974, p. 80)
Novamente, a literatura se apropria de textos informacionais como matéria-prima, ampliando seu domínio artístico. Além disso, é importante perceber que a retomada de textos teóricos ajuda a consolidar a releitura crítica da inteligência nacional.
A pintura cubista privilegiou a fragmentação, as formas geométricas e a síntese (Golding, 2000, p. 46-47). Os quadros propunham imagens entrecortadas ou sobrepostas, a fim de dar uma impressão de “empilhamento” e assim obter um efeito antinaturalista (Golding, 2000, p. 49). Tais princípios podem ser comprovados com esta tela (Fig. 2), que, embora represente uma cena comum e cotidiana, utiliza técnicas que se recusam a mostrar os objetos e os móveis com clareza:
Fonte: https://pt.most-famous-paintings.com/Art.nsf/O/8XY42W/$File/Georges-Braque-Interior-with-Palette.JPG
Valendo-se do Cubismo, no poema a seguir o eu-lírico descreve a cidade de Tiradentes, que até 1889 era conhecida como Vila de São José Del Rey:
são josé del rei
Bananeiras
O Sol
O cansaço da ilusão
Igrejas
O ouro na serra de pedra
A decadência ((Andrade, 1974, p. 134)
Nesses versos, o poeta recusa os encadeamentos e escolhe montar o poema por meio de uma sucessão de frames ou recortes. Desse modo, privilegiam-se a fragmentação e a descontinuidade — características marcantes da vanguarda em análise.
Já o Futurismo celebrava a metrópole, a industrialização e o movimento (Fig. 3). Por causa disso, “Como nome para o movimento, Marinetti hesitara entre dinamismo, eletricidade e futurismo” (Lynton, 2000, p. 85). Sem dúvida, o Futurismo foi bastante militante na defesa de sua ideologia, opondo-se fortemente à tradição. “Marinetti queria que as artes demolissem o passado e celebrassem as delícias da velocidade e da energia mecânica” (Lynton, 2000, p. 85).
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/03/23/cultura/1395598225_356558.html
Em suma, esse movimento artístico requisitava “uma nova arte para um novo mundo” (Lynton, 2000, p. 87). Nesse panorama, o campo era substituído pela urbanização dos grandes centros, como demonstram estes versos de Oswald de Andrade:
a transação
O fazendeiro criara filhos Escravos escravas
Nos terreiros de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Por terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café (Andrade, 1974, p. 92)
Dando continuidade ao ideário futurista, neste outro poema, o eu-lírico exalta o bonde elétrico, meio de transporte que passou a fazer parte da rotina da capital paulista em 1900, por iniciativa da empresa Light:
bonde
O transatlântico mesclado
Dlendlena e esguicha luz
Postretutas e famias sacolejam (Andrade, 1974, p. 106)
Isso vai ao encontro do manifesto futurista, com destaque a este trecho: “Cantaremos a incandescência noturna e vibrante de arsenais e estaleiros, refulgindo em violentas luas elétricas, as vorazes estações devorando suas fumegantes serpentes… as locomotivas de peitorais robustos […], e o voo suave dos aviões […]” (Lynton, 2000, p. 86). Além de Oswald de Andrade ter homenageado a urbanidade, Tarsila do Amaral, nas ocasiões em que fez ilustrações para os poemas do marido, celebrou o progresso trazido pela eletricidade e pelos navios, que não apenas traziam imigrantes, mas também estabeleciam importantes vínculos comerciais entre o Brasil e outros países (Figs. 4 e 5).

Fontes: Andrade, 1974, p. 119; Andrade, 1974, p. 143.
Com os avanços da indústria e da tecnologia, o Brasil estava em franca ascensão. O país estava em movimento, rumo ao progresso, defendendo uma ideologia que atingiu seu auge na década de 1950.
Assim como o Cubismo, o Expressionismo também defendia o antinaturalismo. No entanto, suas técnicas e características eram distintas. O Expressionismo utilizava o exagero (Fig. 6) por meio de “cores brilhantes e pinceladas intensas” (Lynton, 2000, p. 36), o que costumava conferir à obra “certo grau de distorção” (Lynton, 2000, p. 40).
Fonte: https://blog.artsoul.com.br/wp-content/uploads/2022/08/image-13.jpeg
Para ilustrar o aspecto expressionista na poesia de Oswald de Andrade, destacamos a seguir as três estrofes finais do poema “soidão”, nas quais predomina a repetição:
[…]
Chove chuva choverando
Que a casa de meu bem
Está-se toda se molhando
Anoitece sobre os jardins
Jardim da Luz
Jardim da Praça da República
Jardins das platibandas
Noite
Noite de hotel
Chove chuva choverando (Andrade, 1974, p. 171)
O uso da repetição como recurso estilístico aparece sob forma de anáforas, ecos, aliterações, assonâncias, rimas, paralelismos e trocadilhos com neologismos, como ocorre no primeiro e no último versos do excerto lido: “Chove chuva choverando”. A princípio, a repetição pode ser interpretada como facilitadora. No entanto, ela apresenta tantas nuances e variações que os versos se transformam numa sequência de exemplos técnicos, que complexificam a musicalidade e o sentido do texto.
A estética surrealista reagia principalmente à burguesia e, exatamente por isso, propunha a deselitização da arte. Para tentar cumprir essa meta, o Surrealismo dava lugar às “formas de associação até agora desprezadas” e ao “jogo desinteressado do pensamento” (Ades, 2000, p. 110). Na imagem a seguir, isso se concretiza pelo par de pernas dentro do gramofone (Fig. 7).
Fonte: https://arsmagazine.com/jamais-una-pieza-singular-de-oscar-dominguez-abre-la-temporada-del-picasso-barcelona/
No Surrealismo, uma nova proposta de realidade surgia, com a potencialização de alguns elementos e com a conjugação de objetos considerados díspares ou antagônicos. Nesse sentido, forjava-se uma suprarrealidade, propondo alterações significativas nos modos de representação.
black-out
Girafas tripulantes
Em pára-quedas
A mão do jaburu
Roda a mulher que chora
O leão dá trezentos mil rugidos
Por minuto
O tigre não é mais fera
[…](Andrade, 1974, p. 190)
Nesse poema, a escuridão parece justificar as combinações e situações estranhas que o eu-lírico apresenta, fazendo uso, sobretudo, da prosopopeia. Como resultado das sucessivas personificações, os versos aumentam sua proximidade com a atmosfera surrealista, associada ao sonho e à imaginação, mas sempre paralela à realidade.
a família do burrinho
— Vamos Joseph fugir
— Para onde Maria ir
Joseph (jocoso) — shall go to Jundi-aí ai!
— Depressa! Sela o Mangarito
Vamos com o vento Sul
Onde serei cesariada?
— No presepe
— Tenho medo da vaca
— Não chores darling! (terno) Sweepstake de Deus!
Maria — Caí na ilegalidade
Porque modéstía à parte
Trago uma trindade no ventre
Nesse tempo não havia ainda as irmãs Dione (Andrade, 1974, p. 198)
O trecho transcrito acima é apenas a primeira estrofe de um poema longuíssimo, que se faz surrealista em sua estrutura, por misturar elementos da poesia, da prosa e do teatro. No texto, o eu-lírico parodia a história religiosa de José e Maria, subvertendo não apenas o mito, mas também a linguagem, ao inserir a língua inglesa como abertura para um coloquialismo que contribui para a dessacralização da família de Jesus.
Além disso, há referência a notícias que fizeram alarde, na época, como o caso das irmãs Dione, que repercutiu no mundo inteiro. Coerente com essa ideia, no poema José e Maria fogem para Jundiaí, cidade que, no folclore popular, foi fundada no século XIX, por um personagem também relacionado à perseguição dos poderosos e à fuga de sua família.
Com esse exemplo, o ciclo se fecha e voltamos à primeira vanguarda, a dadaísta, já que, por meio da paródia, Oswald de Andrade relê e reescreve umas das histórias mais famosas da mitologia cristã, associando-a ao folclore e aos textos de cunho jornalístico. Esse processo, então, vincula-se ao ready-made, pelo fato de o poema reaproveitar discursos e também pelo fato de o poeta relacionar elementos que questionam conceitos há muito estabelecidos.
Como pontuou o crítico Haroldo de Campos, ao estudar a obra do escritor modernista: “Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva […] e a uma poética da concretude […] para comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de comunicação engendradas pela civilização técnica” (Campos, 1974, p. 50). Essa referência foi discutida anteriormente, quando foram analisados os versos de ênfase futurista, que registraram a transição do campo para a cidade e exaltaram as marcas do progresso.
Pelo fato de esse contexto também ter inspirado as vanguardas do início do século XX, a inovação poética precisava acompanhar a evolução que se fazia presente em outras partes da sociedade. Consequentemente, Oswald de Andrade, em seus manifestos, proclama uma nova fase: “Dividamos: poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação” (Andrade, 1924). Tanto no primeiro quanto no segundo manifesto, a menção às vanguardas europeias era clara, como evidenciam estes trechos:
E as novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e a fulgurações. (Andrade, 1924)
Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. (Andrade, 1928)
Já tínhamos a língua surrealista. (Andrade, 1928)
Isso demonstra a consolidação do projeto estético do autor, que se resume à transição da Poesia Pau-Brasil para o Antropofagismo. Nesse percurso, de apenas quatro anos, Oswald de Andrade estabeleceu um posicionamento cultural que mudou os rumos da arte brasileira e que se mantém atual, justificando as confluências, os empréstimos e as inter-relações que caracterizam todo tipo de comunicação e expressão artística, “porque somos fortes e vingativos como o Jabuti” (Andrade, 1928).
Referências
ADES, D. Dadá e surrealismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 97-120.
ANDRADE, O. de. Manifesto da poesia pau-brasil. Correio da manhã, 18 março 1924.
ANDRADE, O. de. Manifesto antropófago. Revista de antropofagia, São Paulo, ano I, n. I, [não paginado], mai. 1928.
ANDRADE, O. de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
CAMPOS, H. de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, O. de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. pp. 9-64.
CANDIDO, A. Literatura e sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965.
GOLDING, J. Cubismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 44-68.
LYNTON, N. Expressionismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 27-43.
LYNTON, N. Futurismo. In: STANGOS, N. (Org.). Conceitos da arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 85-92.
PRADO, P. Poesia pau-brasil. In: ANDRADE, O. de. Obras completas VII. Poesias reunidas. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. pp. 67-72.
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Trabalho apresentado no V Encontro Internacional promovido pela UNIANDRADE e pela Florida University of Science and Theology, em outubro de 2024. O evento homenageou o escritor modernista Oswald de Andrade.