Além das palavras e das imagens de Lavoura Arcaica

Verônica Daniel Kobs

Publicada originalmente em 1975, Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, é uma obra densa e plena de significados. Ela foi escrita como um mosaico de símbolos de várias fontes determinantes para as culturas oriental e ocidental. Na narrativa, são frequentes os entrelaçamentos dos símbolos da Bíblia e do Alcorão, que também são associados a mitos da Antiguidade Clássica e a inúmeras metáforas, talvez as marcas mais intensas da linguagem, no romance. Desse modo, a simbologia transforma a leitura em um desafio instigante, já que qualquer palavra, a princípio insuspeitável, pode desempenhar uma função essencial na construção semântica da história.

Em 2001, o diretor Luiz Fernando Carvalho lançou a adaptação fílmica do livro, que recebeu o mesmo título. Entre prêmios e indicações, o filme obteve destaque em diversas categorias ao redor do mundo, tendo sido citado mais de cinquenta vezes (CARVALHO, 2021). O longa manteve a poeticidade e o teor imagético do texto literário, contribuindo ainda mais com a consolidação do valor simbólico da história, já que a concretude é inerente à mídia cinematográfica, predominantemente visual.

Portanto, neste ensaio, será apresentado o tema do incesto, a partir de algumas comparações entre passagens do romance e cenas do filme, no que se refere às diferentes simbologias que perpassam a relação dos irmãos André e Ana. Aliás, o nome de Ana pode ser facilmente associado ao sentido do incesto. A palavra Ana significa eu, ao passo que o incesto promove a união entre iguais. Chevalier e Gheerbrant definem esse termo como se fosse uma forma de autismo e como “a exaltação da própria essência, da descoberta e preservação do eu mais profundo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 504). Ana é a eleita de André para com ele representar outra cosmologia, assim como Adão e Eva. Naturalmente maculada, com seu lugar à mesa ao lado esquerdo (mesmo lado de André), Ana foi a escolhida para, com seu irmão, dar início a uma nova geração, como um modo claro de contradizer a rigidez implacável do pai — Iohána.

Nesse sentido, o clímax da relação entre os irmão tem como cenário um lugar bastante representativo: o atual celeiro, que, um dia, tinha sido a casa da família. Sem dúvida, essa referência aumenta o significado do incesto, que se estabelece como ato de rebeldia — contra o pai e contra a tradição.

Na casa velha, onde o incesto se realiza, tudo ganha vida: “percorri a madeira que gemia” (NASSAR, 1989, p. 93). Para fazer jus à importância e à ancestralidade do lugar, no filme o diretor também adota a mesma perspectiva, mostrando o espaço de modo lento e detalhado, em close up, de modo a acentuar as madeiras desgastadas, a tinta descascada e as paredes amarelecidas, de uma construção quase em ruínas.

A aproximação de Ana é também marcada pela lentidão e pelo cuidado. Desde o momento em que André pressente a chegada da irmã até o momento em que os dois finalmente se encontram, o espectador, ávido, acompanha uma sequência longuíssima, que dura mais de cinco minutos (de 1h36min até 1h41min). Ana hesita, esgueirando-se, sorrateiramente, enquanto André a observa pelas frestas da casa (Fig. 1). Nesse instante, o irmão compara Ana a uma pomba, “ressabiada e arisca que media com desconfiança os seus avanços […]” (NASSAR, 1989, p. 96-97).

Além das palavras e das imagens de Lavoura Arcaica
Figura 1: Ana aproximando-se da casa velha.
Imagem disponível em: http://luizfernandocarvalho.com/projeto/lavoura-arcaica/

Como o ninho de amor de André e Ana já foi a casa, mas hoje é o celeiro da família, a simbologia do lugar está intimamente ligada à colheita. O celeiro, como espaço usado para armazenar alimentos, é onde frequentemente se guarda um dos grãos sagrados, o trigo, separado do joio. Na família de Iohána, entretanto, joio e trigo se confundem, divididos apenas por uma linha praticamente invisível, a mesma que determina a distribuição da família à mesa. Na colheita, só o trigo, um dos sete frutos e grãos enfatizados na Torá, será guardado, depois de separado do joio. Myriam Rebuzzi, em um artigo sobre religião, cita Mateus 13:30: “Deixai-os crescer juntos até a colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: Ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para serem queimados; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro” (REBUZZI, 2006). O celeiro é, então, considerado uma espécie de local sagrado, apesar de, no livro, esse espaço servir de cenário para uma relação profana, gerando um antagonismo.  André, sozinho, e, depois, com Ana, profana o espaço sagrado da casa velha:

fazendo do quarto maior da casa o celeiro dos meus testículos (que terra mais fecunda, que vagidos, que rebento mais inquieto irrompendo destas sementes!), vertendo todo meu sangue nesta senda atávica, descansando em palha o meu feto renascido, embalando-o na palma, espalhando as pétalas prematuras de uma rosa branca […]. (NASSAR, 1989, p. 94)

Ao perceber que Ana está chegando ao celeiro, André a descreve como uma pomba, símbolo feminino que representa, simultaneamente, simplicidade, pureza, realização amorosa e alma:

ela estava lá, […] branco branco o rosto branco e eu me lembrei das pombas, as pombas da minha infância, […] ressabiada e arisca que media com desconfiança os seus avanços, o bico minucioso e preciso bicando e recuando ponto por ponto, mas avançando sempre no caminho tramado dos grãos de milho, e eu espreitava e aguardava, […]. (NASSAR, 1989, p. 96-97)

A ênfase à cor branca remete à pureza e à inocência. No que se refere ao tempo, o jogo da sedução foi iniciado, e prossegue, por páginas (o que justifica a sequência de mais de cinco minutos, tal como citado anteriormente), fazendo uso da metáfora, do suspense, assim como dos movimentos de avanço e de recuo. As repetições também são muitas. André está à espera e seu objetivo requer paciência: “existia a medida sagaz, precisa, capaz de reter a pomba confiante no centro da armadilha; […] nenhum arroubo, nenhum solavanco na hora de puxar a linha […]” (NASSAR, 1989, p. 100-101).

Por essa razão, André espera até o último momento. Pelo mesmo motivo, o tempo escoa lentamente, acompanhando a narrativa, até que Ana, finalmente, cedendo aos desejos do irmão, surge à porta da casa velha (Fig. 2):

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Figura 2: Ana chega à porta da casa velha.
Imagem disponível em: https://cinemaedebate.files.wordpress.com/2010/03/lavoura-arcaica-foto-5.jpg

Na narrativa, em três passagens distintas, André fala do momento em que Ana, a pomba, iria, enfim, “transpor a soleira” (NASSAR, 1989, p. 98). Esse detalhe dá espaço à outra simbologia dessa ave: o destino. Portanto, no momento em que Ana atravessa a soleira, ela cruza uma linha e se insere em um território livre e selvagem, dominado pelo instinto. Simbolicamente, essa travessia tem grande significado, se relacionada ao mito de Jasão e os argonautas. Junito Brandão, recontando a busca pelo velocino de ouro, menciona: “Era necessário, aconselhou-lhes o mântico, fazer-se preceder por uma pomba: se esta cruzasse os terríveis Rochedos Azuis, era sinal de que a Moira lhes permitiria igualmente transpô-los; caso contrário, que desistissem da empresa” (BRANDÃO, 2001, p. 181). Ana foi, para André, a pomba, ou a guia. Dependia dela a decisão. Caso ela avançasse, André avançaria; se ela recuasse, assim ele também o faria.

Portanto, no momento em que Ana deu o passo decisivo — e finalmente cruzou a soleira da porta —, André teve a certeza de que a irmã seria sua mulher. Essa passagem, no romance e no filme, alterna as imagens dos personagens: André aparece ora como adolescente, ora como criança; do mesmo modo, Ana aparece como ela mesma e também como pomba (Figs. 3 e 4):  

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Figura 3: As metáforas da pomba e da arapuca, nas cenas do filme.
Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=yuGXFeuRzSI
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Figura 4: André (criança), depois de capturar a pomba.
Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yuGXFeuRzSI

A imagem de André menino pode ser associada à perspectiva junguiana do incesto, já que: “A base mesma do desejo incestuoso tem sua origem no anelo de regredir à infância, ou seja, de retornar ao aconchego da proteção paterna e confundir-se com o organismo materno para voltar a nascer” (BRANDÃO, 2001, p. 253). Indubitavelmente, essa informação assume maior relevância, quando combinada ao fato de que o encontro dos irmãos ocorre na antiga casa da família (Fig. 5):

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Figura 5: Ana se deita sobre a palha, à espera de André. No momento em que André toca a irmã, sua pele assume o aspecto das asas de uma pomba.
Imagens disponíveis em: https://cinema10.com.br/upload/filmes/filmes_3637_Lavoura%20Arcaica04.jpg e https://www.youtube.com/watch?v=yuGXFeuRzSI

Durante a consumação do ato, o tema do incesto liga-se fortemente à simbologia da lavoura, palavra que compõe o título da obra de Raduan Nassar. O significado desse substantivo, simplificadamente, é a “fecundação da terra”: “A festa do traçado do primeiro sulco, na antiga China, na Índia […], ainda hoje em dia na Tailândia e no Kampuchea […], é, dizem os sociólogos, um ato de desconsagração do solo” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1999, p. 537, ênfase acrescentada).

A terra, elemento tão importante para o homem do campo, é, então, profanada. Comumente, “a desconsagraçãodo solo”, com o “traçado do primeiro sulco”, é associada à defloração, relação que, aliás, é bem usada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho. No filme, quando André e Ana encontram-se na casa velha, e têm seu primeiro momento juntos, concretizando o incesto, há a alternância das cenas de amor com o arado traçando o sulco na terra (Fig. 6). Conforme Chevalier e Gheerbrant (1999), a terra é um elemento feminino e passivo, enquanto o céu representa a atividade e a força masculina:

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Figura 6: Cena que mostra o arado fazendo o primeiro sulco na terra.
Imagem disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yuGXFeuRzSI

Na relação sexual entre os irmãos, ecoam símbolos que reforçam o amor carnal. No romance, merece destaque esta passagem: “corri sem pressa seu ventre humoso, tombei a terra, tracei canteiros, sulquei o chão, semeei petúnias no seu umbigo” (NASSAR, 1989, p. 115). No filme, esse aspecto é realçado por meio do zoomorfismo, que, por sua vez, retoma um trecho do livro, especificamente aquele que diz respeito à relação de André com a cabra Schuda, um caso explícito de zooerastia. Na produção fílmica, enquanto se deita com Ana, André é tomado pelo instinto, descrevendo-se como um cavalo selvagem, com as crinas ao vento, além de perceber o suor e os sebos dos corpos nus.

Depois do incesto, no filme, algumas imagens repercutem o peso do ato praticado pelos irmãos (Fig. 7):

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Figura 7: O céu torna-se escuro, anunciando o fim do dia, e uma orquídea é focalizada pela câmera, na mata que cerca a casa velha. Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=yuGXFeuRzSI

A escolha da orquídea representa a feminilidade, a beleza e a sexualidade, símbolos universais dessa flor. Detalhes como o vento intenso e outras orquídeas nos troncos das árvores, no momento em que André sai para procurar Ana, logo após a concretização do incesto, conferem grande valor simbólico ao filme. Por causa disso, Claudinei Vieira, em artigo intitulado E a palavra se torna imagem, destaca a visualidade como principal vínculo entre o filme e o livro:

Luiz Fernando transmuda a palavra em imagem, transforma a narração falada em ação visual, a torrente de pensamentos abstratos em cenas concretas, o impacto do raciocínio abstrato no choque dos fotogramas. […] a imagem é absoluta. É ela quem comanda. Ela transforma, critica, se contrapõe, relativiza o poder da Palavra. (VIEIRA, 2006, ênfase no original)

Nesse ponto, Vieira prossegue sua análise citando a mudez de Ana, o que, para ele, significa uma forma de se opor ao pai, contestando suas leis e seu poder, assim como fazia o irmão, embora este usasse outros meios, mais agressivos. A imagem, tanto na obra escrita como na fílmica, é fundamental, porque “amplia a dimensão conceitual” (VIEIRA, 2006), reforçando a palavra e comprovando-a. Por essa razão, os símbolos presentes no romance são de grande importância. Todos eles são ancestrais, carregando o peso da religião, que está inserida em uma tradição — e é associando tais símbolos às cenas certas que Raduan Nassar e, depois, Luiz Fernando Carvalho enfatizam o conflito entre pai e os filhos, ou entre o antigo e o novo.

Além disso, depois do incesto, a claridade — “essa claridade que mais tarde passou a me perturbar, me pondo estranho e mudo […]” (NASSAR, 1989, p. 28) — , que sempre estava associada a André, deu lugar ao ocaso e à escuridão. Entretanto, o que parece ser um antagonismo, revela-se como um reforço da falta de consciência dos irmãos, no que se referia ao ato que eles tinham acabado de praticar: “pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão de nos cegar; […]” (NASSAR, 1989, p. 169). Portanto, o ocaso, somado ao vento forte e ao desespero (tanto de Ana, que vai buscar refúgio na capela; quanto de André, que sai para procurá-la), reflete o peso do ato e o efeito avassalador daquele sacrilégio, sobre a vida dos irmãos e sobre a família (Fig. 8):

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Figura 8: André sai em busca de Ana, até encontrá-la, na capela da fazenda.
Imagens disponíveis em: https://www.youtube.com/watch?v=yuGXFeuRzSI
e https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcSPPt7uOEt5toTy4UhJP3ImWVlqby9PjihXUA&usqp=CAU

As duas cenas mostradas na figura 8 apresentam outros dois símbolos fundamentais na história: o fogo e a água, ambos purificadores. Ana retira-se para a capela e acende velas, que representam luz e vida, daí ser possível a relação desse símbolo também com a fecundação e a criação de uma nova ordem ou de um novo mundo. Chevalier e Gheerbrant (1999), no entanto, vão além desse significado universal e associam à vela a solidão, o individualismo e a interioridade. Quanto à água, ela aparece no riacho em que André se joga, em desespero, para cortar caminho e tentar descobrir o paradeiro da irmã.

Em uníssono, os elementos naturais repercutem o incesto, simbolizando a mácula indelével que mudará a vida de todos para sempre:

[…] cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis […]. (NASSAR, 1989, p. 195-196, ênfase acrescentada)

Essas palavras ecoam, durante um dos sermões de Iohána para a família, e podem ser associadas à pose representada na obra O pensador, de Rodin (Fig. 9). A atitude que o pai prega exige contemplação, delineando uma postura mais filosófica diante da vida:

O tempo, o destino e o rio estão intrinsecamente ligados, na história. O que os une é, justamente, o fato de todos seguirem seu curso, ininterrupto e impossível de ser detido pelo homem: “O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não se cansa de correr, lento e sinuoso, […], não cabendo contudo competir com ele o leito em que há de fluir, cabendo menos ainda a cada um correr contra a corrente […]” (NASSAR, 1989, p. 184-185). Ana e André apenas cumpriram um fado muito maior do que qualquer um poderia suportar, porque assim estava escrito.

REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Vol. III. Petrópolis: Vozes, 2001.
CARVALHO, Luiz Fernando. Prêmios: Lavoura Arcaica. Disponível em: http://luizfernandocarvalho.com/premios/?pid=439. Acesso em: 29 mai. 2021.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
LAVOURA ARCAICA. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Brasil: VideoFilmes; Europa Filmes, 2001. 1 DVD (171 min); son.
NASSAR, Raduan. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
REBUZZI, Myrian. Celeiro. Disponível em: http://aleluia.uol.com.br/2002/?section=art icles&id=2640. Acesso em: 26 out. 2006.
VIEIRA, Claudinei. E a palavra se torna imagem. Disponível em: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=resumos/docs/lavouraarcaica. Acesso em: 18 abr. 2006.

Este texto adapta um fragmento do capítulo “Per omnia saecula saeculorum — sob o peso da tradição e das simbologias ancestrais”, de Verônica Daniel Kobs, publicado em 2007, na coletânea Relendo Lavoura arcaica.


LEIA TAMBÉM: As idiossincrasias do gênero feminino na obra de Clarice Lispector [1]

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