OUTRAS EXTRAVAGÂNCIAS DE JOANA VASCONCELOS
Verônica Daniel Kobs
Joana Vasconcelos (1971-) é uma artista plástica francesa, com cidadania
portuguesa, que conquistou fama internacional com seu estilo único. Suas criações,
como mostraremos aqui, exaltam a grandiosidade, a mistura de materiais, o uso de
elementos cotidianos e, em alguns casos, também os aspectos rústico e artesanal.
Em Cinderela (2008), a artista associa o ícone das histórias de fantasia e dos
contos de fada a panelas e tampas feitas de aço inox (Fig. 1).
À primeira vista, a combinação parece estranha e fora de contexto, mas é bom
lembrar que a Cinderela não tinha uma vida fácil. Ela fazia todo o trabalho de casa:
lavava, limpava, cozinhava, passava… Portanto, o fato de a artista apresentar o sapato de
salto alto inteiramente feito de panelas e tampas representa a dualidade da personagem:
o baile, o príncipe e o sapatinho de cristal de um lado; e a vida de trabalho, do outro.
Hoje, em pleno século XXI, é possível atribuir outro significado à obra: a Cinderela
moderna transita nos dois mundos diariamente, em uma jornada dupla, porque trabalha
e cuida da casa e dos filhos.
Também relacionada à questão dos gêneros está A noiva (2001-2005), um grande
lustre feito com centenas de absorvente internos (Fig. 2):
Nessa peça, a artista investe na glamourização da matéria-prima. O lustre tem
formato similar ao de uma vulva, mas remete ao brilho de cristais e revela imponência
em qualquer ambiente.
Fechando de modo exemplar a seção das obras que discutem as relações entre
homens e mulheres, Solitário (2018) usa, principalmente, rodas na base e copos de
uísque no topo, para dar forma a um dos objetos de consumo mais cobiçados pelas
mulheres (Fig. 3).
O solitário simboliza todas as joias, abrangendo, dessa forma, tudo o que está
relacionado à vaidade e à feminilidade. Nessa obra de Joana Vasconcelos, os elementos
usados na criação da peça têm uma importância salutar, afinal, eles representam a
bebida que tradicionalmente é relacionada ao universo masculino e à elite e, ao mesmo
tempo, os automóveis, que, por oposição às joias, estão no topo da lista de desejo da maioria dos homens. Além disso, vale ressaltar que o solitário é convencionalmente
dado pelo homem à mulher, no dia do noivado. Esse ritual antecede o casamento e
assinala o início de um relacionamento mais estável e duradouro. Portanto, o Solitário
de Joana Vasconcelos concretiza essa união, tanto no sentido quanto na forma.
Quanto aos segmentos de moda e beleza, podem ser apresentadas duas obras. A
primeira delas é J’adore miss Dior (2013), feita sob encomenda, pelos donos da marca
(Fig. 4):
A cor rosa e o laço são as características que apresentam Dior em todos os
lugares do mundo. Além disso, tonalidade e objeto realçam-se mutuamente, já que são
frequentemente usados para representar vaidade e feminilidade. Em J’adore miss Dior,
foram usadas dezenas de frascos de perfume, intercalados com pequenas lâmpadas de
led. Dessa forma, o dourado torna-se complementar, simbolizando o glamour da
indústria da moda e dos cosméticos.
Também problematizando a preocupação com a aparência, em I’ll be your mirror
(2018), Joana Vasconcelos utiliza espelhos com moldura dourada para criar uma
máscara (Fig. 5). Essa justaposição baseia-se na ironia de as pessoas apresentarem-se de
uma maneira, embora o espelho tenha o poder de revelar quem elas realmente são.
Considerando o título, que funciona como uma espécie de chave léxica, essa
obra é uma celebração da alteridade, evidenciando o papel do outro na construção de
nossa identidade. Afinal, o que de fato conta é como nos apresentamos para as pessoas.
Somos a soma das imagens que apresentamos, em casa, no trabalho, na academia…
A fim de consolidar a união entre natural e artificial, caseiro e industrializado,
ligando o espectador ao aconchego do lar e às memórias afetivas, em Pavillon de thé
(2012), a artista apresenta um bule de ferro, em uma estrutura tridimensional vazada
(Fig. 6).
Atualmente, essa peça está em exposição, nos jardins do Museu Oscar Niemeyer
(MON), em Curitiba, com o diferencial de que o entorno é um imenso gramado e, na
base do bule, foram plantados jasmins. Desse modo, como o bom e velho cafezinho, as
pessoas são logo conquistadas pelo cheiro inebriante!
Realçando a criticidade que já apareceu, nas esculturas anteriores, Call centre
(2014-2016) é bastante comentada por público e crítica (Fig. 7), por tratar de um
incômodo bem conhecido, afinal, quem nunca se estressou com os serviços de atendimento ao cliente?
A escultura usa aparelhos analógicos para formar uma pistola semiautomática
calibre 45. As bases dos aparelhos telefônicos criam o cano e o cabo da arma, enquanto
os fios e a unidade fixa dos telefones ficam pendentes, para simbolizar o caos
frequentemente experimentado, em um call centre.
Todos os exemplos apresentados aqui definem características do estilo das obras
de Joana Vasconcelos, que não se restringem aos museus. Suas peças são
constantemente expostas em jardins, outros espaços públicos e até em mansões. Diante
disso, e do agigantamento de objetos triviais e cotidianos, destaca-se o ready made,
técnica muito usada durante o Dadaísmo, demonstrando que as influências desse
movimento de vanguarda ainda permanecem. Na estética Dadá, Marcel Duchamp
referia-se ao “ready-made recíproco”, que consistia em usar “um Rembrandt como
tábua de passar ferro’” (Ades, 2000, p. 99). Joana Vasconcelos inverte essa fórmula e
transforma instrumentos do dia a dia em obras de arte, com o intuito de criticar e
incentivar a reflexão, a partir da “desorganização poética da realidade” (Ades, 2000, p.
88, grifo no original).
Até 22/9/24, no Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba, Joana Vasconcelos
expõe a mostra Extravagâncias, que tem como destaque a obra Valquíria miss Dior
(2023), combinando rendas, pedrarias, tecidos de diferentes texturas, lãs, fios e artefatos
de cortinas. A peça em questão é diferenciada, porque usa matérias-primas artesanais.
No entanto, o resultado é similar ao de Drag race (2020), obra criada durante a
pandemia de covid-19 (Fig. 8):
Nesse caso, a extravagância é clara e o contexto pandêmico motivou a
combinação de elementos antagônicos, que associam presente e passado: um Porsche
911 Targa Carrera e a primeira fase do estilo barroco, opulenta e repleta de detalhes e
arabescos. As plumas e o dourado sobre o fundo preto consolidam o exagero.
No entanto, esse tipo de extravagância não foi o que me conquistou, no MON. O
que me surpreendeu foi o que vi em uma pequena sala, quase imperceptível, ao lado da
escada de acesso ao Olho, e com uma tímida placa, na qual se lê: “Maquetes de Joana
Vasconcelos”. Foi lá que descobri preciosidades, muitas delas representadas aqui (Figs.
1, 3 e 5), as quais me incentivaram a escrever este texto, depois de conhecer outras
obras da artista.
REFERÊNCIAS
ADES, Dawn. Dadá e surrealismo. Em: STANGOS, Nikos (Org.). Conceitos de arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. pp. 81-99.
Texto originalmente publicado no Blog Interartes, em junho de 2024.