O PASSADO E O FUTURO NO FILME UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA
Uma história de amor e fúria é um filme brasileiro de animação, dirigido por Luiz Bolognesi, que estreou em 2013. Nele, a História do Brasil é contada a partir de fatos históricos que construíram o país e que até hoje fazem parte da identidade nacional.
O filme teve boa repercussão e foi indicado para o Annecy, festival que, com Uma história de amor e fúria, contou, pela primeira vez, com um representante brasileiro na competição.
Mais de quinhentos anos de História são distribuídos em confrontos que constituem o eixo da narrativa. No Brasil Colônia, europeus e tribos indígenas encenam conquistas e derrotas que resultam de enfrentamentos sucessivos. O segundo momento remonta à época da escravatura, com destaque ao movimento da Balaiada. Posteriormente, destacam-se as décadas de 1960 e 1970. Finalmente, em tempos também diferentes (o passado remoto e o passado recente), o filme cria um mundo no futuro, mais especificamente no ano de 2096, com algumas grandes transformações possibilitadas pelo avanço tecnológico, como ocorre em qualquer filme de ficção científica. Nessa sociedade “provável”, água é ouro.
Boa parte da crítica reclamou da História longa e condensada demais e não viu com bons olhos o tratamento maniqueísta dado à trajetória do protagonista: “(…) o primeiro aspecto a ser discutido é a simplificação brutal da história do Brasil como uma sucessão de confrontos (…)” (COUTO, 2013). Essa percepção se justifica, porque o personagem principal é sempre o mesmo (pelo menos em essência). Ele morre e renasce, para participar de novas fases de nossa história. O personagem é um só, que se transmuta de índio tupinambá a líder da Balaiada. E assim o protagonista vai se transformando e assumindo diferentes papéis ao longo de nossa evolução histórica. O filme de animação tem, de fato, essa característica de suprarrealidade, em que é possível um personagem nascer e morrer diversas vezes, para completar seu destino de amor pela mesma mulher, Janaína. Além disso, não se pode desprezar o fato de que parte do enredo se passa em um futuro distante, o que ajuda a encarar grandes saltos no tempo e na História do Brasil e o atavismo do personagem principal como verossímeis, no contexto da animação e da ficção científica.
O destino do personagem é longo e se renova a cada vida, a cada sociedade e a cada ação que se estabelece. Nesse aspecto, trataremos especificamente da Balaiada, que, no filme, é mostrada sob perspectiva distinta. Em Uma história de amor e fúria, mostra-se a relação legítima que existe entre a Balaiada e o Cangaço:
Essa nossa guerra é apenas uma data nos livros de História. Ninguém conta que Caninana, Sete Estrelas e Raio escaparam e ficaram vagando pelos sertões e aí nasceu o Cangaço.(UMA HISTÓRIA, 2013)
A referência é rápida, mas uma cena consolida a relação entre os dois movimentos. Isso ocorre quando Manoel dos Anjos é morto, transformando-se em um pássaro. Sua imagem, após levar um tiro, de braços abertos e prestes a cair, já sugere isso. Seus braços parecem asas e se abrem como se ele fosse alçar voo. De fato, no lugar do corpo, vemos apenas uma ave, que voa sobre os campos. A cena, então, passa a focalizar o grupo de cangaceiros em primeiro plano.
Em entrevista à Revista de Cinema, o diretor do filme explicou por que escolheu a Balaiada como um dos episódios históricos que compõem a animação: “(…) ficamos em dúvida entre a Balaiada, a Revolta dos Malês e a Cabanagem. Escolhemos a Balaiada porque foi nesse momento que nasceu o cangaço (…)” (SCHENKER, 2013).
Apesar de breve, a associação entre balaios e cangaceiros é bastante salutar, porque demonstra uma história sem interrupções, que apenas se renova. Astolfo Serra (citado por SOUSA, 2013), em seus estudos sobre a Balaiada, também faz referência a nomes que, depois, voltariam a ser mencionados em textos sobre o Cangaço:
“Novos chefes se apresentam com suas comitivas de rebeldes. (…). Designam-se mutuamente por nomes simbólicos e são Relâmpago, Corisco, Raio, Caninana, Sete Estrelas, Teteu, Andorinha, Tigre, etc. – toda uma série de homens rudes e sequiosos de aventuras e de vinditas”. (SOUSA, 2013, grifo no original)
Muito mais do que o fato de a Balaiada ter sido o movimento precursor do Cangaço, é preciso pensar sobre as relações de diferenças e semelhanças que existem entre eles. A continuidade é inegável, mas a recontextualização garantiu as idiossincrasias responsáveis pela evolução.
No campo das diferenças, deve-se ressaltar, fundamentalmente, que o Cangaço não foi um movimento pontual, tal como a Balaiada. O Cangaço foi um movimento de maior amplitude geográfica, de maior duração e mais complexo. Por esses motivos, compreende inúmeros aspectos, até mesmo divergentes, em algumas situações. Prova disso era a o comportamento oscilante de Lampião. Os interesses mudavam e exigiam novos acordos. Alguns fazendeiros e proprietários de terra davam guarida aos cangaceiros em troca da proteção. Esse poder de negociação de Lampião, aliado à necessidade de adaptação constante, foi considerado o principal estratagema para a sobrevivência dos homens e para a longevidade do movimento. Fazia-se uso da política do favor, que “ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa […]” (SCHWARZ, 2000, p. 17). Em se tratando de dependência, é imperativo que exista uma hierarquia, como explica Roberto Schwarz: “O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm” (SCHWARZ, 2000, p. 16). Estabelecia-se, assim, uma relação de equilíbrio, que previa troca e negociação constantes. Além disso, muitos estudiosos mencionam a importância da mobilidade do bando, impedindo que fosse alvo fácil durante as diligências.
Se a Balaiada é uma espécie de movimento precursor do Cangaço, a análise que se faz de um episódio histórico também vale para o outro. Nesse aspecto, importa, sobremaneira, a revisão que se faz dos protagonistas do movimento. No final do século XX, às vésperas de o Brasil completar 500 anos, vários momentos e personagens fundamentais de nossa História foram revisados, em um processo longo e determinante para a reconstrução da identidade nacional, baseado em uma leitura mais crítica e questionadora dos fatos e no apagamento das divisas entre Ficção e História. Os filmes Carlota Joaquina, princesa do Brazil; Desmundo; e Baile perfumado são alguns exemplos dessa reavaliação histórica, cujo principal objetivo era, a partir do distanciamento e da objetividade, apresentar os dois lados de cada questão, permitindo reflexão, crítica e propiciando até mesmo a invalidação dos mitos construídos pelo discurso histórico ao longo do tempo.
Dessa forma, a nova análise que pode ser feita do movimento da Balaiada enfatiza mais as causas do movimento, destacando seu aspecto humano. No Cangaço, as ações de Jesuíno Brilhante e de Lampião são em parte justificadas pela sede de vingança. De fato, os papéis de herói e vilão não eram bem delineados, de modo que contradição e ambivalência atingiam todas as esferas sociais. Aliás, esse tipo de conflito é comum a todos os movimentos, em qualquer época. Coloca-se em evidência, ainda, o perfil de coragem e tenacidade daqueles que exerciam a liderança. Negro Cosme, por exemplo, que foi um dos líderes da Balaiada, “no período, foi visto por muitos como um bandido sanguinário, um facínora sem escrúpulos e até como feiticeiro chegou a ser tratado. Muitos desconhecem suas qualidades de grande líder” (SOUSA, 2013). Com Lampião não foi diferente. Hobsbawn analisa esse tipo de duplicidade fazendo uso do conceito de “bandido social” para se referir àqueles que são “encarados como criminosos (…), mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e são considerados por sua gente como heróis, como campeões, (…)” (HOBSBAWN, 1969, p. 73).
Também relacionadas à causa de muitos sertanejos terem decidido entrar para o Cangaço estavam as tentativas de ascender social e economicamente e de garantir a proteção da família e de suas propriedades. A certeza do poder extraoficial e o mito da justiça social eram consequências da vida no Cangaço e, para muitos, significavam uma possibilidade real de atingir suas metas. Essa é mais uma semelhança entre os balaios e os cangaceiros. Evidente que isso não se relaciona apenas ao aspecto antropológico que o diretor de Uma história de amor e fúria quis enfatizar, como afirmou nas entrevistas em que falou sobre o filme, mas associa-se também à hierarquia social. Como na Balaiada e nos demais episódios representados no filme de Bolognesi, a história de qualquer civilização se faz de modo cíclico. Em razão disso, enfatiza-se o atavismo, que é mostrado na trajetória do protagonista do longa-metragem. Mudam os nomes, muda o tempo, mas a história se repete.