Notas sobre a civilização do espetáculo (2)

Adalberto De Queiroz

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Encerrei minha crônica anterior com uma afirmação e uma pergunta: a civilização criou uma miríade de coisas. “Por que você prefere a civilização à selvageria?” Essa multiplicidade de coisas e feitos é que devia fundamentar uma resposta esmagadora, e que às vezes se torna a resposta impossível – por que prefiro a civilização à selvageria, por que prefiro à Civilização clássica à do espetáculo?

Pouquíssimas foram as respostas dadas em público pelos meus poucos leitores.

Um amigo virtual achou explicação para o baixo índice de respostas: a falta de espontaneidade, o medo de incorrer em erro (ou o insucesso na resposta), enfim, uma espécie de não entendimento sobre a natureza da questão (pessoal), que se colocou mais na linha chestertoniana de gerar um chiste que fosse também uma síntese do que pensa o leitor sobre a civilização.

https://recortelirico.com.br/2020/04/civilizacao-do-espetaculo/

Outra amiga (também virtual) deu-nos uma resposta digna de uma capacidade de “riso bergsoniano”, ao afirmar que as coisas que mais preza na civilização são: “artes, bebidas, inseticida e liberdade para não se casar”.

De fato, eis-nos diante de um momento em que é preciso avançar. Quanto mais leio sobre a civilização do espetáculo, mais vontade me dá de dedicar o dobro de horas a compreender a civilização tout-court, aquela propriamente dita, que no caso judaico-cristão, vai se formando na Idade Média, com o húmus que lhe dá a cultura antiga.

Mas era preciso ler sobre o tema para dele se libertar. Continuei na companhia do meu Vargas Llosa, culpado pelo primeiro contato, que me levou a Guy Debord, o pioneiro – ou, como ele diz de si mesmo:

Quando uma pessoa só dispõe da fama que lhe foi atribuída como um favor pela benevolência de uma Corte espetacular, pode cair em desgraça instantaneamente. Uma notoriedade antiespetacular tornou-se algo raríssimo. Sou um dos últimos a possuir esse tipo de notoriedade, sem nunca ter tido outro. Isso tornou-se altamente suspeito. A sociedade proclamou-se oficialmente espetacular. Ser conhecido fora das relações espetaculares equivale a ser conhecido como inimigo da sociedade”.
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Guy Debord (1931-1994) foi autor de uma obra multifacetada que abarcou os domínios da teoria crítica, da literatura, do cinema e da arte de vanguarda. Escreveu “A sociedade do espetáculo”, sua obra-prima. (Foto: Reprodução)

E isso de fato foi o que aconteceu com Debord, que foi sistematicamente ignorado pela mídia francesa, desde que lançou, em 1967, seu já clássico “A sociedade do espetáculo” – um livro errado, mas espantosamente lúcido e demolidor, precursor de toda análise crítica da moderna sociedade do consumo.

Com um entusiasmo algo exagerado, seu editor no Brasil afirma que “quanto mais o tempo passa, mais atual se torna esse livro de Debord, pois, como avalia Jean-Jacques Pauvert, “ele não antecipou 1968, antecipou o século XXI”.

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Capa do “A sociedade do espetáculo”, do Debord.

E por que o livro de Debord se salva?

Vargas Llosa afirma que o livro contém “achados e intuições”, apesar de aceitar como “verdades canônicas a teoria [marxista] da história como luta de classes e a ´reificação` ou ´coisificação` do homem por obra do capitalismo”, colocando neste sistema a culpa “pela criação artificial de necessidades, modas e apetites, a fim de manter um mercado em expansão para os produtos manufaturados”.

A tese de Debord é mais sobre economia, filosofia política e histórica do que cultural, até porque, ainda segundo Llosa, porque “fiel também nisso ao marxismo clássico, [Debord] reduz a superestrutura das relações de produção que constituem os alicerces da vida social”.

As coincidências entre alguns achados e intuições de Debord e a argumentação conservadora de Llosa são:

i. a ideia de “substituir a vivência pela representação, fazer da vida uma espectadora de si mesma, implica em empobrecimento do humano”;
ii. “num meio em que a vida deixou de ser vivenciada para ser apenas representada, vive-se “por procuração”, como os atores vivem a vida fingida que encarnam num cenário ou numa tela;
iii. “O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões” – essa lúcida observação seria mais que confirmada nos anos posteriores à publicação do seu livro (1967);
iv. Consequência desse processo: a “futilização” domina a sociedade moderna.

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Este cronista levanta teorias convergentes e opostas entre Llosa e Debord. (Foto: Reprodução)

Aqui, começam as divergências entre Vargas Llosa e Debord, pois este defende que “a crítica à sociedade do espetáculo só será possível se for feita como parte de uma crítica prática ao meio que a possibilita, prática no sentido de ação revolucionária decidida a acabar com a referida sociedade”.

Nesse aspecto, sobretudo, o trabalho de Llosa se contrapõe frontalmente ao de Debord.

São valiosos esses aspectos que Vargas Llosa nos traz sobre a sociedade do espetáculo para confrontarmos com o mundo da civilização e da alta cultura.

Tomemos em bloco algumas observações de Vargas Llosa para nos livrarmos logo desse mal-estar que o Debord nos causa e podermos voltar a tratar da Civilização, mesmo estando convictos de que há da parte do escritor peruano um certo tom amargo em relação ao futuro da cultura (e por conseguinte da civilização).

A civilização do espetáculo, ao contrário do que pensa Debord, “está cingida ao âmbito da cultura, não entendida como mero epifenômeno da vida econômica e social, mas como realidade autônoma, feita de ideias, valores estéticos e éticos, de obras artísticas e literárias que interagem com o restante da vida social e muitas vezes são a fonte, e não o reflexo, dos fenômenos sociais, econômicos, políticos e até religiosos.

Ao analisar o livro “Mainstream”, do sociólogo francês Frédéric Martel, (2010), Llosa diz: que “a diferença entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente”, ao passo que os produtos da civilização do espetáculo são “fabricados para serem consumidos e desaparecer, como biscoitos ou pipocas”.


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Um livro de Tolstoi, Thomas Mann ou ainda Joyce ou Faulkner estão no polo oposto ao das novelas brasileiras ou de um show de Shakira, diz o escritor peruano.

A mudança no quadro de valores é uma mudança traumática que atinge até a boa-intenção. A facilitação formal do acesso ao conteúdo dos produtos culturais tido como propósito cívico de atingir a maioria da população levou à quantidade em detrimento da qualidade.

As piores demagogias políticas beneficiam-se disso, como agora o vemos executando nas milhares de “lives” pelo planeta afora, muitas delas manifestação de interesses políticos passageiros e demagogia barata.

Nem o ilustre prêmio Nobel nem este cronista estão contra “uma maneira agradável de passar o tempo” em meio à quarentena do tempo atual, mas, é inaceitável que se equipare e se uniformize tudo, ao extremo, ao ponto de “que se tornem equivalentes” uma ópera de Verdi, a filosofia de Kant, um show dos Rolling Stones e uma apresentação do Cirque du Soleil.

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A ausência da “crítica” em nossos meios de informação está, segundo Llosa, entre as causas deste tipo de equívoco. Antes, tínhamos como certo e fundamental o papel da crítica e dos analistas sérios, como um Edmund Wilson ou, entre nós, um Carpeaux ou Álvaro Lins, Temístocles Linhares e Franklin de Oliveira.

Hoje, ao contrário, temos os “publicitários” e o poder dos “legisladores invisíveis” (os membro da mídia, vista como 4º. Poder, cf. o conceito de Dalrymple) – jornalistas e relações públicas engajados em promover, “youtubizar”(se), vender.

Massificação e frivolidade andam juntas, é que nos prova a realidade atual, até mesmo nos agentes públicos. Assim surgem os presidentes que ou foram “celebridades” e conquistam o poder ou tentam influenciá-lo com suas opiniões, do que podem ser exemplos Trump, presidente dos EUA de um lado, e Roger Waters, no outro espectro.

E o que deve fazer o intelectual nesse conflito? “Consta que a denominação `intelectual´ só nasceu no século XIX, durante o caso Dreyfus, na França, e as polêmicas desencadeadas por Émile Zola, com seu célebre “Eu acuso”, escrito em defesa do oficial judeu acusado falsamente de traição.

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“(…) os produtos da civilização do espetáculo são ‘fabricados para serem consumidos e desaparecer, como biscoitos ou pipocas’”.

E se o termo tornou-se popular a partir de então, a função do “intelectual” vem de antanho, dos tempos da Grécia de Platão, da Roma de Cícero, do Renascimento de Montaigne e Maquiavel, no Romantismo de Lamartine e Victor Hugo e em todos os períodos históricos que conduziram à modernidade”.

A presença de Vargas Llosa prova que esse papel ainda não está obsoleto, mesmo que este ironize dizendo que “na civilização do espetáculo, o intelectual só interessará se entrar no jogo da moda e se tornar bufão”. Sem querer entrar nesse jogo e antes de poder voltar a tratar da cultura da Civilização do Ocidente, minha próxima investida nesta série de artigos, permita-me o leitor transcrever um trecho mais animador de Vargas Llosa, alvíssaras para que possamos tirar o foco neste “mudo-tela”, em que o poder da literatura se vai esvaindo:

“Não está em poder do jornalismo por si só mudar a civilização do espetáculo, que ele contribui a forjar. Essa é uma realidade enraizada em nosso tempo, a certidão de nascimento das novas gerações, uma maneira de ser, de viver e talvez de morrer do mundo que nos coube, a nós, felizes cidadãos destes países, a quem a democracia, a liberdade, as ideias, os valores, os livros, a arte e a literatura do Ocidente ofereceram o privilégio de transformar o entretenimento passageiro na aspiração suprema da vida humana e o direito de contemplar com cinismo e desdém tudo o que aborreça, preocupe e lembre que a vida não é diversão, mas também drama, dor, mistério e frustração”.

Ah, ao finalizar esta crônica, cabe-me dizer que as três ou quatro coisas que tenho como favoritas na Civilização e que dela me fazem um devoto contra a barbárie são: as catedrais, o ar-condicionado e os livros, esperando poder explanar aos meus seis leitores sobre os porquês da escolha em outros artigos.

À suivre!


Minibio de um Prêmio Nobel sul-americano:

MARIO VARGAS LLOSA – Jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, é um dos mais importantes escritores da atualidade. Nascido em Arequipa, no Peru, em 1936, viveu em Paris na década de 1960 e lecionou em diversas universidades norte-americanas e europeias. Autor de uma extensa obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios Cervantes, Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov e Grinzane Cavour. Em 2010, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre outros livros, o leitor encontra em boas traduções recentes, os títulos “Conversa no Catedral”, “A guerra do fim do mundo” (sobre a Guerra de Canudos), “A Festa do Bode”, “Travessuras da menina má”, “O herói discreto” e sobre o fazer literário o já clássico “A orgia perpétua”. A sua mais longa e interessante entrevista foi dada ao jornalista brasileiro (e amigo) Ricardo Setti “Conversas com Vargas Llosa”. Os artigos de Llosa são publicados regularmente pelo jornal “El País” – https://elpais.com/autor/mario-vargas-llosa/ O autor divide seu tempo atualmente entre Londres, Paris, Madri e Lima. 

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