Uma arte profética (Dostoiévski)

Adalberto De Queiroz

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Muitas vezes, quando lemos Dostoiévski, principalmente quando mais jovens e menos experientes como leitores, sentimos uma espécie de estranhamento diante de um personagem, de uma situação romanesca. No meu caso, muitas vezes senti um certo mal-estar que me forçava a afastar o livro e pensar muito sobre a cena.

Que Dostoiévski tenha inundado seus romances do mais puro espécime russo – homens e mulheres sentimentais, capazes de atos grandiosos e pequenas vilanias, isso ninguém tem dúvida, mas que estes sejam capazes de atos que nos causem uma empatia envergonhada, foi na juventude (e continua a ser hoje) o motivo de eu ter sempre procurado um apoio crítico após (e sempre após!) a leitura de um romance do autor russo.

Um crítico de minha terra, Donizete Fraga, numa tese sobre “Os irmãos Karamazov” acertou em dizer que “o leque de percepções provocado pelo objeto artístico situa-se em um espectro mais amplo das sensações humanas, aí abrangidos os sentimentos de prazer, fruição, desconforto, encantamento, incompletude e estranhamento” – são esses os sentimentos que vivenciamos lendo ou relendo Dostoiévski.

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Os Irmãos Karamázov, uma das obras primas de Dostoiévski. (Foto: Reprodução/Internet)

O crítico austro-brasileiro Otto Maria Carpeaux[1] confirma aquela característica que concluímos da leitura do próprio Dostoievski e que talvez esteja na origem do estranhamento a que me referi acima.

Permanece a certeza de que estamos diante de um escritor que nunca expõe com detalhes o exterior dos personagens, que não está interessado em descrever a paisagem russa, a não ser a paisagem urbana de São Petersburgo, como de uma “cidade visionária”. Está interessado na alma dos personagens, na sua paisagem interior.

Wilson Martins concorda com isso, ao afirmar que “a vida do homem dostoievskiano é uma vida sem paisagem” e, assim sendo, “é vida exclusivamente interior”.

Em tais críticos, confirmamos aquela característica fundante da obra de Dostoievski, a de um escritor para quem a alma é sua paisagem, pois ele “fixa – e com que segurança! – as paisagem da alma”, disse Carpeaux. Característica marcante que Henry Troyat sintetizou magnificamente assim:

Parece que é uma crise, quase um acesso de epilepsia, que o precipita ao coração mesmo do mundo que descreve. Penetra de um só golpe nas penumbras viscerais do universo interior. E seus olhos habituam-se rapidamente à noite. Vê, compreende. E, assim como uma vida inteira pode desfilar em alguns segundos de sonho, assim é toda uma aventura espiritual, com suas buscas, seus fracassos, suas esperanças que se apresentam em um lampejo a ele. (…) Trata-se de tornar inteligível um drama da vida profunda a leitores que não possuem o pensamento profundo…trata-se de fazer as pessoas interessarem-se pelo que verdadeiramente elas são.[2]

Essa “psicologia requintada” do autor de “O Idiota” já deu lugar a inúmeras interpretações, tornando-se até mesmo o assunto de predileção da psicanálise, tendo se prestado a um sem número de equívocos, a ponto de Carpeaux afirmar que “existem poucos escritores cuja obra tenha sido tão tenazmente mal compreendida como a de Dostoiévski”.

E como os leitores de Dostoiévski neste século XXI podem ler sua obra tentando bem compreendê-la? Primeiro, lendo Dostoiévski lentamente, sem a preocupação de estar diante (quase sempre) de romances longos. Segundo, sugiro recorrer aos recursos de interpretação de um crítico atual – o francês René Girard, de quem um bom começo poderia ser “Dostoiévski: do duplo à unidade” (2011).

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A leitura de Girard se diferencia daquela feita pelos críticos literários de ofício, pelo uso da antropologia como arma interpretativa. Ele a utilizou para a literatura deste autor russo bem como de vários outros consagrados autores da literatura ocidental[3] (Saint-John Perse, André Malraux, Marcel Proust, Valéry, Hölderlin, Stendhal etc.).

Girard vê muitas nuances que os críticos todos não viram, com esta mirada da antropologia histórica, sob o crivo da teoria mimética, que o celebrizou em todo o mundo.

Em “Dostoiévski: do duplo à unidade”, Girard faz análises da vida e obra do autor russo. O historiador Maurício Righi escrevendo sobre este “insight histórico” nos mostra que neste segundo livro de Girard, lançado em 1963, a teoria do desejo mimético já estava plenamente desenvolvida – tarefa que Girard concluiu em seu primeiro livro “Mentira romântica e verdade romanesca”, de 1961, lançado no Brasil pela É Realizações em 2009.

O livro sobre Dostoiévski é uma espécie de “estudo-de-caso” da teoria mimética aplicada a um autor, e se tornou exemplar para os leitores (e estudiosos) de Girard, pois ali se tem “a confirmação de um crescimento intelectual/autoral e moral que se assemelhou a uma conversão” (Righi), na qual o autor russo teria vivido uma espécie de “despojamento da personalidade”, passando “da loucura à genialidade, da morte ao renascimento, do conflito à pacificação, do mito à história etc.”

Dostoiévski e sua obra são exemplares, não no sentido em que uma obra e uma existência sem falhas o seriam, mas em um sentido exatamente oposto. Quando vemos esse artista viver e escrever, aprendemos, talvez, que a paz da alma é a mais árdua de todas as conquistas e que o gênio não é um fenômeno natural. Da visão quase lendária do prisioneiro arrependido, devemos reter a ideia dessa dupla redenção, e nada mais, pois dez longos anos se passaram entre a Sibéria e a ruptura decisiva[4].

Essa ruptura foi um processo doloroso, similar aos apocalipses vividos por outros seres humanos, como é o caso do poeta alemão Friedrich Hölderlin. Girard debruça-se sobre este processo com um método de uma só vez “histórico e psicológico” (na expressão de Righi), aplicando “uma arqueologia do psiquismo em sua busca por antecedentes formadores”. É um investigador que faz uma espécie de “exumação forense” da vida e obra de Dostoiévski.

Girard é visto como “filósofo da suspeita, um farejador de subtextos e ocultamentos” que vai alcançar profundidades semelhantes àquelas alcanças pelo autor russo, através de “uma antropologia da alma, em que as explicações sobre o funcionamento de um mecanismo psicossocial – o fascínio pelos rivais – são concatenados por uma teoria do desejo, anunciando elucidações válidas tanto para a literatura quanto para a história[5].”

Dostoiévski nos é apresentado por Girard como “O Profeta da modernidade”, um autor em cuja obra “a literatura antecipa-se à história”. A crise da sociedade russa que o crítico George Steiner anuncia como “a aproximação do apocalipse” no âmbito sociocultural, paira sobre o autor de “O idiota” e de outros escritores como Gogol, Tolstói, Turguéniev como uma espécie de “certeza do desastre”.

Girard nota que três tentações perseguiram Dostoievski: “o messianismo social, a fé e o orgulho; e os únicos momentos da vida em que Dostoiévski não sucumbiu a uma ou a outra dessas tentações são aqueles em que sucumbiu às três ao mesmo tempo.”

Sou levado a pensar que a fina análise de Girard só me faz confirmar, na contracorrente do pensamento de alguns, que Carpeaux tinha razão. Dostoiévski é cristão, jamais revolucionário ou ateu… “O que nos une é o Cristo; e «tout le reste est littérature» (Carpeaux).

Uma curiosa e inventiva atividade do romancista russo Fiodor Dostoievski é citada por Carpeaux – ilustrava seus manuscritos com desenhos de próprio punho[6] . Isso ajudou-me a entender o processo criativo porque “quando Dostoievski escrevia um romance, via primeiramente os problemas e depois as personagens[7]“.

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Fiódor Dostoiévski desenha rabiscos elaborados em seus manuscritos. Imagens disponíveis em: https://bit.ly/2ZO218e

A vida ditava as tramas e enredos. O leitor atento de Dostoiévski há de concordar que “a criação dostoievskiana está sempre ligada a uma interrogação ardente sobre o próprio criador e sobre suas relações com os outros. Os personagens são sempre os X e os Y de equações que visam a definir essas relações” – afirma Girard.

Nesse sentido, o príncipe Mishkin de “O idiota” e o Stavróguin de “Os demônios” “são imagens opostas do romancista”. Parece um lugar-comum afirmar que há algo do autor em tal ou qual personagem, mas aqui se impõe pensar com Girard para quem “se a obra é profunda, não podemos mais falar de autobiografia nem de invenção ou de imaginação no sentido habitual desses termos”.

A literatura teria funcionado para Dostoiévski como “fuga criativa”, diz Maurício Righi, ecoando Girard:

Em sua gênese, na vida do escritor, a literatura teria funcionado como ‘fuga criativa’, como forma de exceder as tristes realidades de sua vida familiar e social, principalmente dos sofrimentos que o acometeram na dura Escola de Engenharia, em São Petersburgo, quando Dostoiévski, um homem sensível e intelectualizado, viu-se submetido a um ambiente militar indiferente, brutal e carreirista. Ao longo de sua existência, o russo seria confrontado por crises terríveis: o assassinato de seu pai pelos servos, o sucesso efêmero no círculo de literatos [Bielínski], humilhações sofridas nas mãos dos dândis, o abandono de Bielínski e, finalmente, o ingresso no círculo Pietrachévski, do qual se seguiram prisão e exílio [Sibéria]. Com efeito, alguém poderia dizer que Dostoiévski sofreu verdadeiros apocalipses.”

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O filósofo britânico John Gray também falou sobre Dostoiévski, e tomou a passagem do Grande Inquisidor (A lenda) para suas considerações. Não alcança o mesmo ápice de Righi, em “Sou o primeiro e o último”, nem a argúcia girardiana de ver n´A lenda um apocalipse — o apocalipse individual do autor russo.

O texto de Gray se apoia nas considerações de D. H. Lawrence sobre a parábola dostoievskiana. O título da passagem de Gray é inusitado, como quase tudo em “Cachorros de palha” – “O grande inquisidor e peixes voadores”.

O cerne do ensaio de Gray é a liberdade, valor fundamental para Dostoiévski e ele conclui com uma nota pessimista, repercutindo um pensamento de Joseph De Maistre, acerca de uma afirmação de Rousseau: “pensar que porque, às vezes, umas poucas pessoas buscam a liberdade, então todos os seres humanos também a queiram, é como pensar que porque há peixes voadores seja da natureza dos peixes voar…”

Com o crítico Wilson Martins confirmamos que mais que a liberdade é “a ideia religiosa [que] está na origem de todos os livros de Dostoiévski. Ele repercute Berdiaev, para quem “toda ideia, em Dostoiévski, está ligada ao destino do homem, ao destino do mundo, ao destino de Deus”.

Dostoiévski produz o melhor de sua obra em alguns anos daquele período de quarenta quatro anos – entre 1861 e 1905 – que George Steiner tem como os mais criativos e produtivos na literatura russa. “Esses quarenta e quatro anos de domínio da criação e suprimento de genialidade podem ser comparados aos períodos dourados de criatividade na Atenas de Péricles e na Inglaterra elisabetana e jacobina. Estão entre os melhores do espírito humano”.

O romance russo produzido neste período teria sido concebido sob o signo do zodíaco histórico e, justapondo dois títulos da época “Almas Mortas” (Gogol) e “Ressurreição” (Tolstói) Steiner conclui que “a literatura russa espelha a aproximação do apocalipse”. Isso só reforça que Girard tem razão.


[1] CARPEAUX, Otto Maria. “Ensaios reunidos (1942-1978)”. Rio de Janeiro: Ed. UniverCidade/Topbooks, 1999. Org., introdução e notas Olavo de Carvalho.

[2] Henri Troyat citado por Girard em “Dostoiévski: do duplo à unidade”, pág. 152, ver nota 3, abaixo.

[3] GIRARD, René. “A conversão da arte”, trad. Lília Ledon da Silva. – S. Paulo: É Realizações, 2011.

[4] GIRARD, René. “Dostoiévski: do duplo à unidade”; trad. Roberto Mallet. – S. Paulo: É Realizações, 2011.

[5] RIGHI, Maurício. “Sou o primeiro e o último: estudo em teoria mimética”. São Paulo: É Realizações, 2019, pág. 73.

[6] Collin Marshal inclui alguns desses desenhos em seu site. Ver link consultado em 06/09/2020 https://tinyurl.com/y6r9823p

[7]  CARPEAUX, Otto Maria. “Ensaios reunidos (1942-1978)”. Rio de Janeiro: Ed. UniverCidade/Topbooks, 1999. Org., introdução e notas Olavo de Carvalho.

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