Sob o império do medo

Adalberto De Queiroz

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O meu último artigo se inicia com uma pergunta nada retórica, pois a fizera a mim mesmo, diante da página à espera do artigo quinzenal.  “Será o fim dos tempos? –Será o apocalipse agora? E agora, volto a perguntar: estaremos “cantando o medo, que esteriliza os abraços”? como no famoso verso de Drummond?

Uma nota curta nesses dias marcados pelas restrições impostas pela pandemia do Coronavírus é a de que a Ciência parece estar ganhando a guerra contra o Covid-19[i] : países prontos para testar vacina contra o vírus – leia neste link, mas volte para esta crônica.

Se a nota é curta diante de tanta notícia que exaspera o medo, difunde o terror e compartilha a desinformação travestida de doce pletora de conhecimentos, ela é fundamental para não nos tornarmos vítimas do próprio medo.

Os números com que a imprensa nos bombardeia diariamente – diria mesmo, hora a hora, nos noticiários da TV e das mídias sociais (mais desagregadoras do que instrutoras) – é o reforço do caráter negativo das notícias.

Diz-se sempre tantos adoeceram, tantos estão hospitalizados, tantos morreram. Raramente, levantam-se os bons números dos que se curaram, dos que se recuperam lenta, mas esperançosamente. É como se as notícias fossem uma espécie de “sintoma da calamidade” (para usar a frase de André De Leones, em “Dentes negros”, história de uma calamidade).

Tudo isso trouxe à cabeça do cronista o antigo, mas sempre atual verso de Carlos Drummond de Andrade:

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços.

E como a quarentena a que somos obrigados (e que, voluntariamente devemos) a adotar nos põe em distância física, em isolamento, é mesmo como se o poema do vate mineiro fosse a fala de um profeta.

O notável escritor cubano-espanhol Emílio Mira Y López trata do medo com o conhecimento de um mestre em Psicologia, não como poeta. É cirúrgico.

Faz-nos entender que o medo, considerado um dos 4 gigantes da alma, tem suas origens na escala biológica. Tudo que é capaz de causar dor, que faz mal pode gerar a inatividade de um ser minúsculo – ou cessação de atividades – diante do possível ou provável dano.

A vida e a morte, do pintor austríaco Klimt mostra as forças atuantes no psiquismo humano frente às catástrofes. O medo está na gênese do ser humano e persiste em quadros de pânico como da pandemia do Coronavírus.
Mira Y López (1896-1964), nascido em Cuba, foi professor de psiquiatria na Universidade de Barcelona e é autor do best-seller “Quatro gigantes da alma”

A linguagem do Medo se aprende muito cedo, pois um feto de três meses, afiança Mira Y López é capaz de responder a estímulos elétricos, mecânicos e térmicos e a linguagem da reação é próxima do popular “se fazer de morto” para evitar o agente que lhe esteja provocando dor ou .

Nós, as crianças de Deus, temos lá nossas formas de nos fazermos de mortos diante das catástrofes, cataclismos naturais, terremotos, incêndios, inundações, avalanches, raios, pandemias etc.

O “gigante negro” de Mira Y López – o medo – bate à porta de nossa alma assim que soa o alarma. Em nosso “genoplasma” de seres humanos, o alarma é dado pelos “novíssimos” (ver meu artigo anterior) que causam pânico e terror – como na imagem da pintura do artista plástico Klimt, o artista austríaco que bem melhor simbolizou o abraço da vida à morte (ou vice-versa).

Tais eventos são ancestrais, têm enorme poder de destruição e são inevitáveis, mas ainda assim são para nós o maior rugido do leão na planície de nossa existência.

Steve Pinker, autor de um aclamado livro sobre a linguagem e os instintos, mostra que muitas vezes é o medo que gera a ação (ou inação) nos animais e que cabe ao homem tomar posse da linguagem pois esta não passaria de “uma adaptação biológica para transmitir informação” , que só os seres humanos a dominariam por estarem no topo do processo de seleção natural.

Dessa forma, a linguagem equivaleria aos sonares nos morcegos e à capacidade de fabricar e tecer teias nas aranhas.

O neo darwinista Pinker lança mão da “ciência cognitiva” – uma “disciplina recente que reúne ferramentas da psicologia, da ciência da computação, da linguística, da filosofia e neurobiologia para explicar o funcionamento da inteligência humana” para falar da apropriação da linguagem pelos humanos.

Seria razoável concluir que o “mais evoluído dos animais” lançasse mão da linguagem para solucionar os problemas advindos, por exemplo, do acesso de medo, pânico e derivados. Na prática, não é bem assim – como provam a avalanche de notícias em meio à pandemia da hora presente.

Voltemos a Mira Y López. “Tanto na escala filogênica como na ontogênica, temos visto que a raiz biológica do Medo penetra no mais profundo de sua gênese. Agora é necessário, entretanto, de seu desenvolvimento e maturidade, até considerá-lo em sua estrutura, seu aspecto e fisionomia atuais” – isto é, como nós, adultos civilizados reagimos ao Medo.

A corça que foge diante da presença do leão assim o faz não porque tem medo, mas sim porque “foge para livrar-se do medo”, passado de vítima propiciatória e indefesa a um ser animal que lança mão da habilidade de correr mais rápido do que seu perseguidor, libertando-se da situação sem (ou com menor) danos.

Portanto, fugir nem sempre deve ser considerado um sintoma sui generis de Medo. É isto sim “indício” – um sinal apenas de que o animal (racional ou irracional) entendeu o que está em jogo. E se previne, usando suas habilidades: correr, soltar tinta para dificultar que o agressor o alcance n´água etc.

O homem foge, muitas vezes, sem o saber, como a corça que dispara diante da presença leonina. Durante esta quarentena, notei que muitos dos amigos(a)s deste cronista disseram que iriam “fugir pra roça” – para dizer que se mudaram para a fazenda, como forma de se sentirem distantes da ameaça do vírus letal.

Para Aristóteles, “o medo é uma expectativa de um Mal que se avizinha”. É o medo não diante do dano, mas o medo diante do “indício” do dano, ou seja, o perigo!

Entre os motivos do medo o pior é o que Mira Y López define como “temor ao desconhecido”, que leva o homem a vacilar diante do nada, por pura presunção de que “algo vai dar errado”.

A imprensa atual parece apreciar o agravamento desta espécie de medo por lhe render leitores e espectadores ávidos em sempre buscar um lenitivo em mais e mais “informação”, quando na verdade recebem migalhas de informação e um coquetel bem montado de desinformação.

Sob o império do medo 1
Morte e Vida – uma pintura a óleo sobre tela do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt

No livro “Theodore Dalrymple: A ruína moral dos novos bárbaros[ii]”, Maurício Righi foi buscar no pensador norte-americano Thomas Sowell argumentos para compreender o que chama de Quarto Poder: “Sowell salienta o peso que os intelectuais – as suas ideias – exercem sobre a opinião pública e, consequentemente, sobre  as políticas públicas, pois são pessoas cujas palavras e ideias influenciaram largamente a criação de uma atmosfera geral de opinião, influenciando em muito as decisões de peso que afetam toda a sociedade.”

Portanto, ressalta Righi, “é possível identificar o quarto poder de nossa época como um imenso agregado intelectual-jornalístico-artístico cujos inúmeros canais de comunicação disseminam ideias, valores, comportamentos e sensibilidades, os quais mais cedo ou mais tarde compreenderão parte da cosmovisão de uma sociedade, ou mesmo de muitas sociedades. “A ideia que se tem hoje de cultura e de civilização foi largamente forjada no interior desses canais” – conclui Righi.

“No universo das sociedades livres, os diversos agentes do quarto poder, incluindo o meio editorial e jornalístico, operam conteúdos que fomentam ou obstruem, a depender do caso, a disseminação de determinadas ideias.” Boa parte do dito quarto poder está empenhado em entreter o leitor, dando especial atenção ao que Righi intitulou “dissolução da cultura”, i.e., a degradação dos valores, via foco no quadro de decadência cultural, de vulgaridade e abandono”.

O quarto poder, de modo genérico e substancial, preza enfatizar o quadro geral de uma Civilização em crise, pois faz parte do centro dos seus esforços, da formação acadêmica à prática em um órgão de mídia, de enfatizar “o relativismo, o niilismo e o multiculturalismo”.

O cronista se aventura a dizer que insuflar o medo, difundir a paranoia, reger o caos (dirigido) pode estar entre os rugidos do leão da mídia (do quarto poder) contra a corça representada pelo público fiel e cordato que se mostra viciado em noticiários.

Enfim, como sempre faço, deixo parcialmente inconcluso o que poderia ser dito, convidando o leitor a refletir, a partir de um poema que se mostra atualíssimo, embora escrito em 1940, pelo poeta Carlos Drummond de Andrade.

Sob o império do medo 2
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

CONGRESSO INTERNACIONAL DO MEDO

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.


[i] Link consultado em 19/03/2020, às 19:46 – https://bit.ly/2QtN9ao

[ii] Righi, Maurício G. A ruína mental dos novos bárbaros / Maurício G. Righi; org. Luiz Felipe Pondé. 1ª. ed. – S. Paulo : É Realizações, 2015. 192 p.

10 comentários em “Sob o império do medo”

  1. Belíssimo texto, amigo e confrade Adalberto Queiroz. O medo nasce conosco e nos persegue até a hora final. Ameniza-o, porém, a crença em Deus e na vida eterna, que nos dá alento e esperança a cada dia. Obrigada pelas reflexões tão belamente expostas. Abs.

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    • Sim, o medo está lá na cosmogonia judaico-cristã, diz Emilio MYLópez.
      “Terá Temor….” (Deut. 10:20).
      É uma honra ser lido e comentado pela Sra., Professora Lena.
      Abraço do Beto.

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  2. Adalberto,
    Li seu texto inteiro, na hora em que abri a página do Recorte Lírico. Você conseguiu traduzir o que eu sentia, mas não era capaz de expressar… Sim, vamos pensar nos números positivos!
    Obrigada pela leitura de meu texto, sobe o local de fala. E, por favor, “fale” algo, para continuarmos o debate, tão necessário…

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  3. Olá, Professora Verônica:
    Obrigado por seu comentário tão animador.
    Falo, sim, ontem estava maturando o conteúdo deste artigo.
    Hoje, em quarentena, mas mais disponível.
    Bom estar por perto.
    Abraço do Beto.

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  4. Adalberto
    Gostei muito de suas palavras. Funcionam como alerta. Eu sempre me senti com coragem de enfrentar problemas. As notícias alarmantes deixam- me com a consciência voltada á realidade pois faz parte da minha natureza a racionalidade. Mas isso não acontece com todos., Estamos caminhando a um colapso.. Eu preciso de um pouco mais de coragem. Um beijo.

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    • Obrigado, ALCIONE, pela leitura e gentil comentário.
      Todos nós precisamos de CORAGEM. Quem sabe futuramente volte aos 4 Gigantes da alma e verá quão importante é ter coragem.
      Abraço do Beto.

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