Cultura e mídia televisiva
Nos últimos tempos, tenho estranhado a ideologia que se esconde atrás de alguns produtos que se destinam ao público infantil. O que surpreende não é a ideia em si, mas a objetividade. Se, nas décadas de 1980 e 1990, líamos e ouvíamos a respeito da sexualidade latente nos programas infantis, hoje é flagrante a reorientação no que diz respeito às relações sociais e às questões dos gêneros, em conformidade com tudo aquilo que se considera politicamente correto. Dito isso, quem nunca parou para ouvir a avalanche discursiva (e formativa) dos comerciais da emissora Tooncast?
Sem dúvida, antigamente, esse tipo de propaganda seria inadmissível, pelo tom incisivo e certeiro com que as palavras atingem os espectadores-mirins. Entretanto, temos de reconhecer a qualidade dessa estratégia, afinal todos nós, da geração X e de suas predecessoras, já tínhamos percebido — ainda que por um breve momento — que, nos desenhos do Scooby-Doo, por exemplo, várias questões relacionadas aos gêneros eram apresentadas sub-repticiamente, entre uma cena e outra. Pois bem… É exatamente com uma personagem dessa turma que a Tooncast apresenta uma série de comportamentos desejáveis, hoje em dia. Na primeira sequência do comercial, Freddie faz uma parada com a Máquina do Mistério, olha para a câmera e dá início a um discurso inflamado (Fig. 1):
Durante todos esses anos, muita gente já me parou pra perguntar: “Fred, e esse cachecol, hein?” E eu sempre respondo a mesma coisa: “Vá [palavrão censurado], meu chapa. Seu monte de [palavrão censurado]. Preocupe-se com sua própria vida, [palavrão censurado] . Eu visto o que eu quero e ninguém tem nada a ver com [palavrão censurado] nenhuma. Deu pra entender?” Então, não tenha medo de se expressar. E lembre-se: estilo em primeiro lugar! (TOONCAST, 2020)
Há quarenta anos, por falta de melhor definição, ou por falta de uma criticidade mais aguçada (afinal, eu era apenas uma criança, na época), pensava que Freddie era apenas um garoto bonito, do estilo galã e bom moço. Posteriormente (e recentemente), com a popularização do termo metrossexual, vejo a personagem com outros olhos, sobretudo se ela for comparada com Salsicha (Fig. 2), seu extremo oposto. Apesar disso, Freddie continua sendo o estereótipo de garoto exemplar. O fato é que o discurso dele, no comercial da Tooncast, surpreende muitos espectadores. Evidentemente, mesmo tendo apenas 6 anos, nos idos de 1980, eu percebia a diferença entre Velma e Daphne (Fig. 2) e, instintivamente, combinava os pares, na minha imaginação infantil: a Velma estava para o Salsicha, assim como a Daphne correspondia ao Freddie (claro!). Só agora percebi, vendo a figura abaixo, mas desconfio que os lenços verde e alaranjado, usados pelo “casal”, podem ter alguma coisa a ver com isso. É como se esse acessório identificasse e aproximasse as personagens.
Ainda no que se refere aos gêneros, a Tooncast retoma a personagem Penélope Charmosa (Fig. 3), da inesquecível Corrida maluca. Para compensar o excesso de cor-de-rosa, que hoje é considerado totalmente out como marcação do gênero feminino, a emissora afina o discurso, do qual destaco apenas um fragmento: “Ainda hoje, nesta sociedade machista, nós, mulheres, fazemos todo o possível para igualarmos nossos direitos. Muitas vezes, não nos dão as mesmas oportunidades que dão aos homens” (TOONCAST, 2020).
Desde a criação da personagem, era impossível não notar a força de Penélope, em meio ao mundo automobilístico, que sempre foi acentuadamente masculino. Obviamente, esse traço justifica a escolha da fala e das cenas protagonizadas, hoje em dia, pela personagem, no comercial da emissora infantil. Aliás, o discurso de Penélope e a imagem dela cruzando a linha de chegada fazem uma espécie de reforço mútuo, a fim de influenciar mais diretamente os pequenos e desavisados espectadores.
Além da questão dos gêneros, o canal também reserva espaço à ideologia pet friendly, quando dá destaque à outra personagem bem conhecida do público (infantil e adulto também, como nos dois casos anteriores). Falo de Astor, o cachorro da família Jetson (Fig. 4):
Infelizmente, não temos como saber o conteúdo do discurso do cachorro dos Jetsons, mas isso não é o que importa! Importante mesmo é o fato de ele ficar latindo e rosnando na tela, durante 20 segundos ininterruptos. O que podemos fazer é tentar adivinhar o teor de sua fala. Cada um tem sua própria opinião sobre esse enigma, mas eu aposto em uma versão muito próxima do discurso proferido pela Penélope, mas com as devidas adaptações: “Ainda hoje, nesta sociedade [humana], nós, [cães], fazemos todo o possível para igualarmos nossos direitos. Muitas vezes, não nos dão as mesmas oportunidades que dão aos [humanos]” (TOONCAST, 2020). Quem sabe…
Em outra frente, o mesmo comercial aproveita a personagem Dexter, em clara referência à cultura geek, ao bullying e, mais objetivamente, às brigas entre irmãos (Fig. 5):
Contudo, nessa sequência, o comercial perde a linha, pois parece estimular uma espécie de vingança premeditada, quando Dexter fala aos espectadores: “Esta cena lhe parece familiar? Esse tipo de comportamento é muito comum entre irmãos. Em casos como este é bom manter as coisas em perspectiva. Você simplesmente caiu da bicicleta, e ela está descendo morro abaixo, em alta velocidade, sem freio” (TOONCAST, 2020, grifo nosso). O discurso da personagem deixa claro que Dexter tinha usado usa inteligência para o mal, quando confessa seu feito: sabendo que Didi faria algo ruim para ele, Dexter se adiantou e sabotou o freio da bicicleta da irmã. Acredito que, nesse caso específico, importa refletirmos sobre as perguntas “Por quem?” e “Para quem?”. O esquete pode parecer uma piada, se considerarmos que foi criado por adultos, sem levar em conta que o público-alvo do canal é formado principalmente pelas crianças. Entretanto, reajustando o curso, a conclusão é uma só: na sequência de Dexter, o comercial da Tooncast falha redondamente, extrapolando as questões que predominam, nos discursos das outras personagens, que falam sobre direitos, liberdade e igualdade.
Sendo assim, excetuando o exemplo dado por Dexter, percebemos o intuito da emissora televisiva. Trata-se de consolidar os padrões de comportamento atuais, influenciando decisivamente na formação dos espectadores. Nesse projeto, a TV desempenha um papel fundamental (como sempre fez, aliás), por ser um meio de comunicação de massa. Nas palavras de Manuel Castells, que se baseou nos estudos sobre mídias e visibilidade, de autoria do colega sociólogo John Brookshire Thompson: “O que não existe na mídia não existe na mente do público, ainda que possa haver uma presença fragmentada nas mentes individuais” (CASTELLS, 2020, tradução nossa). De modo mais enfático, essa correspondência entre TV e formação cultural é debatida e explicada por Douglas Kellner:
[…] uma vez que as chamadas cultura e comunicações de massa ocupam posição central entre as atividades de lazer, são importantes agentes de socialização, mediadoras da realidade política e devem, por isso, ser vistas como importantes instituições das sociedades contemporâneas, com vários efeitos econômicos, políticos, culturais e sociais. (KELLNER, 2001, p. 44)
Na minha infância, posso afirmar, com toda a certeza, que os desenhos dos Flintstones talvez tenham feito um bom trabalho como agentes e mediadores, em minha formação. Todas as manhãs, assistia às anedotas de Bedrock e sempre ficava muito atenta às artimanhas de Wilma e Betty. O enredo era praticamente o mesmo: Fred e Barney aprontavam algo, tentavam esconder das mulheres, achavam que estavam tendo sucesso e eram, enfim, surpreendidos por Wilma e Betty, que invariavelmente descobriam a mentira dos maridos e o que eles tinham feito. Por essa razão, para mim as mulheres, nesse desenho em particular, eram superiores e nunca tinham medo de enfrentar os homens e fazer valer as opiniões delas (Fig. 6 e Fig. 7):
No mesmo período em que assistia aos Flintstones, alguns preferiam Os Jetsons, mas estes, para mim, não geravam nenhum tipo de identificação, pois eram ricos e futuristas. Na perspectiva de Juan Díaz Bordenave, essa espécie de pacto, que se estabelece tácita ou explicitamente, entre o espectador e o programa de TV, é o primeiro passo para o processo formativo descrito a seguir:
A comunicação foi o canal pelo qual os padrões de vida de sua cultura foram-lhe transmitidos, pelo qual aprendeu a ser “membro” de sua sociedade – de sua família, de seu grupo de amigos, de sua vizinhança, de sua nação. Foi assim que adotou a sua “cultura”, isto é, os modos de pensamento e de ação, suas crenças e valores, seus hábitos e tabus. (BORDENAVE, 1982, p. 17, grifo no original)
Assim como as personagens Wilma e Betty participaram de minha “formação” cultural, o desenho protagonizado pela família Simpson ilustra essa relação em um episódio imperdível, no qual Lisa contesta a influência que a boneca Malibu Stacy pode desempenhar na formação das meninas de sua época. Quando um botão é acionado, o brinquedo reproduz algumas falas, das quais destaco apenas duas: “Não me pergunte. Sou apenas uma garota” e “Vamos comprar maquiagem para os meninos gostarem de nós” (OS SIMPSONS, 2020). Rebelando-se contra essas e outras falas da boneca, Lisa dá um basta e discursa para o irmão, Bart, expondo o problema que, aparentemente, os adultos e os próprios fabricantes do brinquedo não enxergavam:
Milhões de meninas vão crescer pensando que esta é a forma correta de agir; que elas nunca poderão ser nada além de tolas e fúteis, com o único objetivo de ficarem bonitas e agarrar um marido rico e passar um dia inteiro no telefone com as amigas igualmente fúteis, dizendo como é bárbaro ser bonita e ter um marido rico. (OS SIMPSONS, 2020)
Depois de reclamar ao irmão, Lisa comenta o assunto com a família, na hora do jantar, e todos reprovam a atitude dela, criticando seu radicalismo. Porém, a garota continua argumentando e se dirige à mãe, Marge (Fig. 8):
LISA: — Eu não posso acreditar que vai ficar parada, enquanto sua filha cresce num mundo em que este… Este é o exemplo pra ela.
[Nesse momento, Lisa mostra para Marge a boneca Malibu Stacy.]
MARGE: — Eu tive uma Malibu Stacy quando era pequena e me dei muito bem. Agora vamos esquecer nossos problemas com uma grande taça de sorvete de morango.
[Lisa aciona a boneca e Malibu Stacy começa a falar.]
MALIBU STACY: — Agora vamos esquecer nossos problemas com uma grande taça de sorvete de morango. (OS SIMPSONS, 2020)
Quando observamos a boneca de Lisa, a comparação com a boneca Barbie é simplesmente inevitável. É sempre assim… Nos desenhos animados, nos comerciais, nos produtos fabricados para adultos e para as crianças — e em outras coisas de nosso cotidiano — encontramos sugestões e, às vezes, até imposições, sobre modos de ser e agir. Famosa mundialmente, a boneca Barbie atravessa décadas definindo padrões para o gênero feminino e influenciando meninas, desde a mais tenra idade. Podemos visualizar alguns exemplos disso nas cenas a seguir, todas protagonizadas por Barbie (Fig. 9):
Tal como Malibu Stacy, a boneca Barbie reforça comportamentos que representam certa alienação, porque sugerem um mundo perfeito, sempre feliz e cor-de-rosa. O exagero é tanto, que a realidade, nesse universo infantil, é completamente distorcida, delineando um ambiente artificial e asséptico. Segundo Walter Lippmann, “a mídia constrói e apresenta ao público um pseudo ambiente que significativamente condiciona como o público vê o mundo” (LIPPMANN, 2008, p. 47, grifo nosso). Portanto, não é à toa que os produtos recentes associados à boneca Barbie fazem parte de uma linha denominada Dreamtopia. Isso é no mínimo irônico, se levarmos em conta que, atualmente, estamos revisitando as distopias. Diante disso, cabe a nós refletirmos sobre o que representa, então, esse desajuste que diagnosticamos na ideologia barbieana e em outras coisas que habitualmente vemos na TV (Fig. 10): Ignorância da realidade? Simples negação da realidade, de modo consciente? Conhecimento pleno do real e desejo de fuga? Ou um modo de recusar, sistematicamente, as mudanças e as evoluções sociais, na tentativa de anulá-las?
Apesar da tecnologia, algumas coisas mudam. Outras, nem tanto…