Dois mistérios da literatura paranaense
Nos contos Um mistério no trem-fantasma e O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de Curitiba, de Valêncio Xavier, a utilização de notícias de jornal não é o único recurso a reforçar a verossimilhança do texto literário. Outra estratégia que provoca o efeito de realidade sobre o leitor é o uso de Curitiba, um espaço real, como cenário. Muitos leitores, com base nesses elementos, transferem a realidade dos referentes para a história, chegando, às vezes, a desconsiderarem a natureza ficcional, inerente ao texto literário.
Um mistério no trem-fantasma, no melhor estilo kitsch, conta a história de dois personagens que se conhecem no Passeio Público, um dos cartões postais da cidade, e terminam a tarde no extinto Parque de Diversões Alvorada. Essa especificação dos espaços aumenta ainda mais a impressão de que a história é verídica. Como o autor opta, desde o início da história, pela dissolução da fronteira entre realidade e ficção, ele, de fato, não poupa esforços para confundir o leitor. O narrador cita dia, mês e ano do desaparecimento da protagonista, Jucélia Ramos, cujo retrato falado também é reproduzido / inventado, no conto (Fig. 1):
O sumiço da moça ocorreu no dia 19 de julho de 1969, mesma data da chegada do homem à Lua. Aliás, esse detalhe também ajuda a convencer o leitor de que a história realmente aconteceu.
E o conto vai se fazendo a partir dos depoimentos de testemunhas, do parecer do delegado do caso (o autor, inclusive, estiliza o discurso policial, para tornar o texto mais verossímil) e das hipóteses formuladas pelos diferentes jornais da época. As versões, bastante divergentes, vão desde a abdução da jovem por extraterrestres, passando pela hipótese da fuga espontânea e premeditada, até a associação do desaparecimento a mais uma ação do MR-8 no Paraná.
Apesar de, nesse conto, a função do jornal ser reduzida, se comparada ao papel do texto jornalístico, na novela O mez da grippe, os inúmeros elementos aqui citados suprem essa ausência e pode-se afirmar que até chegam a alcançar maior efeito, no que diz respeito à verossimilhança do texto. Recurso também poderoso é a ilustração do texto, que não compreende desenhos simplesmente, mas fotos (Fig. 2):
A intenção é tornar a protagonista mais real ao olhar do leitor. Jucélia Ramos (que tem até sobrenome e cujo rosto aparece estampado em um retrato falado) não é tratada como personagem construída. Ela ganha status de pessoal real, curitibana e frequentadora habitual dos espaços de lazer da cidade, assim como as pessoas mostradas nas fotos, nos carrinhos do trem-fantasma.
Embora utilize menos recursos para conferir realidade à história, o conto O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de Curitiba também utiliza a fotografia e trechos de jornais para confundir o leitor. A notícia do assassinato de uma prostituta por um engraxate, que usou uma estaca de madeira e, provavelmente, tenha sido possuído pelo demônio, na hora do crime, parece mais uma lenda urbana.
Entretanto, dados precisos são informados. O assassinato aconteceu em 29 de maio de 1986 e, de acordo com o narrador, chamou a atenção da imprensa: “O revoltante crime teve muita repercussão na época e a Folha de Curitiba publicou fotos do cadáver na primeira página, o que provocou protestos generalizados. A Tribuna do Paraná, do doutor Paulo Pimentel, também publicou as fotos na primeira página (…)” (XAVIER, 2002a, p. 319). No trecho citado, é de suma importância o tom de testemunho da narração. Esse recurso é similar ao usado em O mez da grippe, nos trechos que registram o depoimento de Dona Lúcia. No entanto, é fundamental perceber que, na novela, o que a personagem afirma contradiz as fontes oficiais e, no conto, o narrador respalda seu testemunho no que os jornais da época noticiaram. Não importa se o crime ocorreu ou não ou se foi, de fato, publicado nos jornais citados pelo narrador. O que é primordial é o fato de o narrador sustentar seu testemunho, citando suas fontes.
Seguindo o mesmo padrão do conto analisado anteriormente, O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de Curitiba traz uma foto (Fig. 3) que mostra fezes e pegadas humanas em um terreno baldio, palitos de fósforo e pedaços de uma edição do jornal A Tribuna, mais precisamente a publicação de “segunda-feira 2 de novembro de 1987 Ano XXXII n 9.062/24 páginas” (XAVIER, 2002a, p. 320).
Esse detalhamento, na apresentação do jornal que aparece na foto, cria a impressão de realidade, além de brincar com a (im)possibilidade do fato. A história considera a ideia de que o assassinato da prostituta e as pegadas no terreno baldio sejam obras do demônio. Para alguns, é inconcebível que uma narrativa fantasiosa como essa pudesse ganhar espaço nos jornais. Contudo, hoje, vivemos a época da pós-verdade e das fake news. Claro que esse contexto é anacrônico, se levarmos em conta o tempo de Valêncio Xavier, mas, já naquela época, havia jornais que publicavam inverdades. Na década de 1970, por exemplo, o jornal Notícias populares (agora extinto) repercutiu o nascimento de um bebê diabo (Fig. 4), história que alavancou as vendas por mais de um mês: “O dia 11 de maio de 1975, dia das mães, seria um domingo sem grandes novidades, como qualquer outro dia das mães naquela época. Mas, a edição daquele dia de um jornal mudaria tudo. […]. Todo mundo queria saber a história do bebê que tinha nascido num hospital de São Bernardo do Campo, com chifres, rabo e ameaçando todo mundo assim que nasceu” (GARCIA, 2020). No total, foram “37 dias de notícias sobre o acontecimento” (GARCIA, 2020).
Sendo assim, com base nesse antecedente e na autoridade atribuída pelo senso comum ao discurso jornalístico, o pedaço de jornal mostrado na foto que ilustra o conto de Valêncio Xavier passa a ser uma prova incontestável do que, antes, parecia ser apenas fruto de uma imaginação muito fértil.
Nesse mistério, Valêncio mostra-se ardiloso e eficaz, ao comprovar, mais uma vez, que o discurso jornalístico não investe apenas na construção narrativa (e, portanto, não factual); ele também é capaz de fabricar notícias e, ao fazer isso, demonstra a frágil e relativa separação entre o fato e a fantasia. Nesse processo, o texto jornalístico pode ser criado e manipulado, transformando-se em matéria-prima para a literatura, que tem a criatividade como característica inerente. De acordo com Linda Hutcheon, “a questão que com isso se relaciona é a de saber como se desenvolvem essas fontes documentais: será que podem ser narradas com objetividade e neutralidade? Ou será que a interpretação começa inevitavelmente ao mesmo tempo que a narrativização?” (HUTCHEON, 1991, p. 161).
Evidentemente, Valêncio Xavier não precisa responder a essa pergunta. Em vez disso, ele sugere ainda mais questionamentos. O escritor desmistifica a autoridade dos discursos histórico e jornalístico e trata de substituir o conceito de Verdade por verdades, substantivo plural e com v minúsculo. Uma variedade de textos invade todas as mídias, diariamente. Entretanto, diante de tantas opções, não devemos utilizar um critério excludente. Em vez de excluir, devemos somar. A multiplicidade é importante, já que qualquer texto é parcial e marcado pela subjetividade. Dessa forma, o leitor torna-se coautor e pode construir sua própria verdade, a partir das verdades (ou mentiras) dos outros, afinal o fato em si é irrecuperável. A rigor, um fato só existe na realidade. Cada texto, então, não passa de mera versão… Fato? Que fato?
REFERÊNCIAS
GARCIA, R. A manchete que mexeu com São Paulo nos anos 70 — o bebê-diabo. Disponível em: <https://vejasp.abril.com.br/blog/memoria/a-manchete-que-mexeu-com-sao-paulo-nos-anos-70-o-bebe-diabo/>. Acesso em: 19 jun. 2020.
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
XAVIER, V. O mistério dos sinais da passagem dEle pela cidade de Curitiba. In: _____. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2002a. pp. 317-322.
_____. Um mistério no trem-fantasma. In: _____. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2002b. pp. 293-304.
Fragmento do artigo originalmente publicado na revista Miscelânea (UNESP / Assis), v. 8, jul.-dez. 2010.