Música e videoclipe: a divergência da imagem

Anúncio

A música “Isso” (2001), dos Titãs, fala de amor e tem uma sonoridade agradável, ao estilo das baladas românticas. Composta por Tony Bellotto, a canção não representa o rock incisivo e questionador da banda, que, na década de 1980, ditava o comportamento de uma geração, a partir da crítica ao sistema e a certas tradições. 

Isso
Que acontece com a gente
Acontece sempre com qualquer casal
Isso
Ataca de repente
Não respeita cor, credo ou classe social
Isso, isso

Parecia que não ia acontecer com a gente
Nosso amor era tão firme, forte e diferente

Não vá dizer
Que eu não avisei você
Olha o que vai fazer
Não vá dizer

Não vá dizer
Que eu não avisei você
Olha o que vai fazer
Não vá dizer

Não adianta mesmo reclamar
Acreditar que basta apenas se deixar levar

Isso
Que atrapalha nossos planos
Derrubou o muro, invadiu nosso quintal
Isso
Passam-se os anos
Sempre foi assim e será sempre igual
Isso, isso (TITÃS, 2020)

Anúncio

Em 2001, os Titãs participaram do programa Luau MTV, “gravado em dezembro de 2001, na Costa do Sauípe (BA), e transmitido originalmente em 2002” (FREITAS, 2020), pela própria MTV — Music Television. Na ocasião, Tony Bellotto, autor da canção “Isso”, falou sobre sua composição:

É mais uma música que fala das dificuldades dos encontros de amor entre duas pessoas. O amor é muito inspirador quando ele dá errado. Músicas de fossa, de tristeza do amor rendem melhores músicas do que quando você fala do lado legal do amor. Quando tudo tá dando certo, parece que não tem por que falar do amor. (FREITAS, 2020)

Entretanto, no clipe da música, a banda reassume sua postura anticonvencional e decide propor um novo viés interpretativo para “Isso”, por meio de uma associação paródica. Teoricamente, esse procedimento encontra respaldo nos apontamentos de Linda Hutcheon, pois, segundo a autora: “Ironia e paródia tornam-se os meios mais importantes de criar novos níveis de sentido — e ilusão” (HUTCHEON, 1985, p. 46). Esse “novo nível de sentido” é dado pelo enredo do clipe, que mostra o vocalista Paulo Miklos contracenando com um elefante. Homem e animal formam o casal protagonista da história. Dessa forma, as imagens confrontam a letra, criando um tom cômico e jocoso, que altera por completo o romantismo proposto por Tony Bellotto, no texto original. “Desta forma, a paródia torna-se uma oposição ou contraste entre textos” (HUTCHEON, 1985, p. 48).

Evidentemente, a transformação da letra pelo clipe exige outras mudanças, para que o inusitado par romântico do vídeo não parecesse algo gratuito ou aleatório. Sendo assim, a banda criou uma vinheta introdutória, a exemplo do que já tinha feito no disco Õ blésq blom (1989), e no sucesso “Miséria”, que integrava o mesmo álbum. Na época, tanto o CD quanto a música se destacaram, por causa da participação da dupla de repentistas Mauro e Quitéria. Adotando o mesmo recurso, no clipe Isso, os Titãs acrescentaram à letra de Bellotto o texto transcrito a seguir: “Pior cego é aquele que não quer ver. Sem conservantes, cem por cento natural. Cada um é seu próprio animal. Você pode ser a namoradinha do Brasil. De novo pra você o que você nunca viu” (TITÃS, 2020b). Essas palavras abrem o vídeo, que é apresentado por Branco Mello (Fig. 1), em uma breve cena, que nos remete ao ambiente circense:

Anúncio
Música e videoclipe: a divergência da imagem 1
Figura 1: Início do clipe, com associação de três contextos diferentes.
Imagens disponíveis em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>

As três cenas mostradas acima correspondem à sequência inicial do clipe, demonstrando o caráter híbrido do vídeo, que envolve: um apresentador, em um picadeiro; um elefante-protagonista, em uma paisagem deserta; e o vocalista Paulo Miklos, em uma das muitas performances da banda. Nesse trio de imagens, destaca-se a figura do elefante, afinal esse é o único elemento estranho à história de amor em crise, proposta por Bellotto. Nesse sentido, o animal é responsável pelo distanciamento e pela inversão que estabelecem a paródia: “Conquanto a realização e a forma da paródia sejam os da incorporação, a sua função é de separação e contraste. Ao contrário da imitação, da citação ou até da alusão, a paródia exige essa distância irônica e crítica” (HUTCHEON, 1985, p. 50).

Aliada a isso, a fala de Branco Mello prepara o espectador para a oposição. Anunciando a preponderância daquilo que é natural e “sem conservantes”, o apresentador dá ênfase ao lado instintivo e animalesco do homem. Por consequência, esse perfil irracional anula a pureza e a ingenuidade, representadas, na vinheta, pela metáfora da “namoradinha do Brasil”. Do mesmo modo, ao dizer: “De novo pra você o que você nunca viu”, o apresentador desfaz o romantismo da letra da música e a expectativa do público, que, naturalmente, esperava um som agradável, regular e sem surpresas. Aliás, a formulação dessa fala introdutória investe na contradição que fundamenta a paródia, sem cair no paradoxo. Embora o texto oponha a expressão “De novo” a “o que você nunca viu”, a ação é perfeitamente possível, já que o clipe repetirá a letra da música, ipsis litteris, mas propondo uma situação amorosa bastante sui generis. Assim, o clipe atende muito bem à duplicidade paródica, marcada pela sobreposição e pela síntese, conforme o conceito dado por Linda Hutcheon:

A paródia é igualmente um gênero sofisticado nas exigências que faz aos seus praticantes e intérpretes. O codificador e, depois, o descodificador, têm de efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no novo. A paródia é uma síntese bitextual. (HUTCHEON, 1985, p. 50)

Depois da introdução, que combina três ambientes distintos, o clipe apresenta outras duas fases. Na primeira, predomina a alternância, mesclando imagens da banda com trechos da história de amor entre o elefante e o personagem de Paulo Miklos (Fig. 2):

Música e videoclipe: a divergência da imagem 2
Figura 2: Alternância entre performance da banda e cena da história, proposta como versão possível para a letra da música. Imagens disponíveis em:<https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>

Na segunda e última etapa, o clipe investe nos problemas de relacionamento entre os protagonistas, em uma sequência que mostra as brigas e as conversas infrutíferas do improvável casal (Figs. 3 e 4):

Música e videoclipe: a divergência da imagem 3
Figura3: Briga entre o casal protagonista do clipe
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>
Música e videoclipe: a divergência da imagem 4
Figura 4: O desânimo resultante do conflito, ainda sem solução
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>

Em meio às discussões, o homem tenta reconquistar sua amada, mas sem sucesso (Figs. 5, 6 e 7).  Considerando que o clipe reescreve a letra da música, fica claro que a imagem passa a ser um elemento “superior ao texto e, portanto, o domina, já que ela é mais informativa do que ele” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 54). Isso significa que, “sem a imagem, uma concepção do objeto é muito difícil de ser obtida” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 54). As cenas são, portanto, determinantes para o novo sentido dado à composição de Bellotto.

Música e videoclipe: a divergência da imagem 5
Figura 5: O homem tenta reconquistar a amada com um anel
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>
Música e videoclipe: a divergência da imagem 6
Figura 6: U m tempo sozinha, para pensar na proposta…
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>
Música e videoclipe: a divergência da imagem 7
Figura 7: Dando uma resposta ao parceiro
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>

Pela análise das cenas do clipe, observamos que a paisagem deserta dá destaque ao casal, o que exige uma atuação razoável, tanto de Paulo Miklos quanto do elefante. Sem dúvida, os atores respondem muito bem a esse desafio. Há proximidade e coerência nas ações dos dois personagens, os quais, aliás, sempre aparecem no mesmo plano, inclusive no fim irremediável.

Apesar de ter vivido um amor “tão firme, forte e diferente” (TITÃS, 2020a), o casal desiste de tentar a reconciliação e segue caminhos separados (Fig. 8):

Música e videoclipe: a divergência da imagem 8
Figura 8: A separação, na cena final do clipe
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>

No que diz respeito à relação entre palavra e imagem, no clipe, convém mencionar a “referência indexical”, que, nesse caso, trata especificamente do “relais”. De acordo com Lúcia Santaella e Winfried Nöth, nesse tipo de combinação, “a atenção do observador é dirigida, evidentemente na mesma medida, da imagem à palavra e da palavra à imagem” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 55). Claro que a imagem comanda esse procedimento. O estranhamento causado pela paixão entre um homem e um elefante obriga o espectador a retomar a letra, para confirmar a associação peculiar. Portanto, a música, sozinha, não merece crédito. É o clipe que reestabelece a identidade da banda, rompendo a relação tradicional de “complementaridade” ou “determinação recíproca” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 55).

Se houvesse essa reciprocidade, o vídeo deveria privilegiar a “redundância” ou “equivalência” (SANTAELLA; NÖTH, 2009, p. 54), processo que resultaria no papel secundário da imagem, fadada apenas a traduzir a letra. Em outras palavras, um videoclipe padrão apresentaria ao público um enredo trivial, o qual serviria de mero reforço à palavra. Felizmente, em vez disso, a banda escolhe a paródia, arriscando-se na complexa divergência causada pela presença de um elefante, em uma história de (des)amor.

Considerando a atmosfera romântica e os protagonistas, o clipe Isso pode ser comparado ao vídeo da música “Mexican fender” (2017), do grupo californiano Weezer. A única diferença é o gênero dos personagens, pois, no clipe norte-americano, o protagonista humano é mulher. Ela é cortejada, na praia, por uma gaivota. O pássaro se apaixona pela garota e lhe dá vários presentes, como sinal de seu apreço: um picolé, uma flor, as chaves de um carro… Porém, depois de algum tempo, a mulher percebe o cortejo e impede que a gaivota roube uma bolsa, pois esse seria mais um presente para sua amada. Nesse momento, a humana retribui a afeição da ave com um beijo (Fig. 9):

Música e videoclipe: a divergência da imagem 9
Figura 9: Cena do clipe Mexican fender, de Weezer: a mulher agradece a gaivota pelos presentes que recebeu na praia. Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xBqFoyXXs3E>

Entretanto, a felicidade do casal dura pouco. Na cena final do clipe, fica claro que a magia do encontro rapidamente se desfez (Fig. 10):

Música e videoclipe: a divergência da imagem 10
Figura 10: Cena final do clipe, que mostra a mulher assando e comendo a gaivota.
Imagem disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xBqFoyXXs3E>

Apesar das coincidências, em linhas gerais, o clipe da banda brasileira é muito superior ao da banda Weezer. A gaivota de Mexican fender não é real e isso resulta em movimentos artificiais e na falta de similaridade entre o pássaro falso e a imagem de uma gaivota real, que é inserida vez ou outra, ao longo do vídeo. Além disso, a performance da atriz é fraca, chegando a ser caricata, e a única cena que mostra a ave e a mulher no mesmo plano é a do beijo (Fig. 9). 

Como se não bastassem essas fragilidades, o clipe Mexican fender ainda apresenta falta de coerência entre as imagens e alguns trechos da letra da música:

[…]
My summer love
Oh she loves me, she loves me, she loves me not
Oh she loves me, she loves me, she loves me not
 
Gonna fly so high
To a place that we have never seen
Ever since you came ’round
In a green CT and faded jeans
I a cozy pad around the corner
Slide a little closer” (WEEZER, 2020a) [1]

O texto escrito é marcado pela obviedade e, em vários trechos, não se encaixa na narrativa proposta pelo clipe. Por causa dessa deficiência coesiva, o projeto de Weezer fracassa[2]. É certo que o objetivo era o tom cômico e inusitado, mas, sem dúvida, faltou à banda californiana a maestria dos Titãs.

A qualidade do clipe dos Titãs vai além da divergência ditada pela imagem. Ao optar pela desconstrução do romantismo tradicional, que caracteriza a composição de Tony Bellotto, é como se a banda recusasse a própria música. Nessa hipótese, a paródia ganha uma nova aliada, a metalinguagem, permitindo não apenas a crítica — ao senso comum e ao establishment —, mas também a autocrítica. Aliás, nesse caso, a inversão do sentido original da letra volta a realçar o estilo ácido do grupo Titãs, que, antes ou depois do sucesso “Isso”, sempre foi (e é) sinônimo de rebeldia. Em um brevíssimo revival, podemos citar dois bons exemplos: o lançamento do disco Cabeça dinossauro (1986), que marcou época, ao som de hits como “Igreja”, “Polícia”, “Família” e “Bichos escrotos”; e a canção “Vossa excelência” (2005), que tratou dos escândalos do Mensalão e que, por isso, não foi tocada por diversas rádios do país, principalmente pelas de Brasília, claro, e pelas grandes, do eixo Rio-São Paulo.

Salve, Titãs!

Notas de fim:
[1] “[…] / Meu amor de verão / Oh, ela me ama, ela me ama, ela não me ama  / Oh, ela me ama, ela me ama, ela não me ama  // Eu voarei bem alto / Para um lugar que nós nunca vimos / Desde que você apareceu / Vestindo jeans verde e desbotado / Eu tenho um aconchego, na esquina / Chegue um pouco mais perto.” (Tradução livre, feita pela autora deste artigo). [2] O clipe Mexican fender é similar a outro da mesma banda. Em 2001, Weezer lançou o vídeo Island in the sun, que mostra pessoas contracenando com gato, cachorro, leão, macaco e urso. Porém, a qualidade desse trabalho é muito superior à produção de 2017, porque todos os animais são de verdade, e aparecem no mesmo enquadramento, junto com os humanos, em interações marcadas pela espontaneidade.

REFERÊNCIAS
FREITAS, G. Titãs − Isso (Luau MTV 2002). 5 mar. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VraSVgYM9SI>. Acesso em: 20 mai. 2020.
HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Lisboa: Edições 70, 1985.
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem. Cognição, semiótica, mídia. 4 ed. São Paulo: Iluminuras, 2009.
TITÃS. Isso. In: _____. A melhor banda de todos os tempos da última semana. 1 CD, faixa 10. São Paulo: Abril Music, 2001.
TITÃS. Isso. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/titas/issosem-cifras.html>. Acesso em: 20 mai. 2020a.
TITÃS. Isso. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=81MvpI7hVEg>. Acesso em: 20 mai. 2020b.
WEEZER. Mexican fender. In: _____. Pacific daydream. 1 CD, faixa 1.Nova Iorque; Los Angeles: Crush Music, 2017.
WEEZER. Mexican fender. Disponível em: <https://www.vagalume.com.br/weezer/mexican-fender.html>. Acesso em: 20 mai. 2020a.
WEEZER. Mexican fender. 17 ago. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xBqFoyXXs3E>. Acesso em: 20 mai. 2020b.

One thought on “Música e videoclipe: a divergência da imagem

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.