Lembranças de um Natal antigo me transportam a uma crônica das “Farpas escolhidas[i]”, do velho lusitano Ramalho Ortigão (1836-1915), que se autointitulava pai-avô. Eis-me, pois,
Lembranças de um Natal antigo me transportam a uma crônica das “Farpas escolhidas[i]”, do velho lusitano Ramalho Ortigão (1836-1915), que se autointitulava pai-avô. Eis-me, pois, diante de “O Natal Minhoto”. Começo tentando estabelecer comparações entre o espírito natalino da Lisboa do início do século XX com o da minha amada Goiânia nesta segunda década do XXI, mas acabo comparando sentimentos que têm caráter universal, quando surgem da convivência com o Outro nesta que é mais importante festa da cristandade.
É dia de Natal. A cidade amanheceu alegre no céu fresco e azul. Os carrilhões das igrejas repicam festivamente. As salsicharias, os restaurantes, as pastelarias, ostentam em exposição os seus produtos mais apetitosos: os grandes porcos, de couro nitidamente barbeado, suspensos no teto com a cabeça para baixo; as salsichas e os chouriços de sangue pendentes em bambolim; as cabeças.de vitela, de uma palidez linfática, rodeadas de agriões; os perus gordos como ventres de Cônegos, com o papo recheado pela respectiva cabidela; as galantinas marmoreadas; as louras perdizes postas em pirâmide; as costeletas; as geleias de reflexos cor de topázio; as verduras de salsa picada; os grossos molhos opulentos dos espargos; os bolos do Natal: os fartes, os sonhos, os morgados, as filhós, as queijadas, os christmas-cakes, os pudins, os bombons glacés.
E a profusão estas exposições dá às ruas o aspecto culinário da abundância, da plenitude.
Os ramalhetes de violetas, com o seu colarinho feito de duas malvas, estendem-se de todos os lados para as casas dos paletós, e perfumam o ambiente com uma frescura orvalhada. Os cabazes das camélias cintilam como grandes esmaltes. As lojas de bijutarias armaram o grande pinheiro do Natal, cujas hastes desabrocham em cartuchos de amêndoas, em cartonagens douradas, em animais de quase todas as espécies recolhidas na Arca, em cabriolés de lata, em cavalos de cartão, em palhaços vermelhos que tocam pratos, e em lindas bonecas vestidas de cetim com os seus pufs, os seus chignons e os seus regalos.
Lisboa passeia na vasta alegria do sol. Os homens trazem os seus embrulhos, as mulheres levam os seus filhos pela mão.
As meninas, vestidas de novo, em grande toilette, frescas como lilases, com os seus narizinhos rosados pelo (vento) nordeste, dirigem-se ao baile infantil…
Ramalho Ortigão com o amigo (e co-autor de As Farpas) Eça de Queiroz.
Em primeiro lugar, fixo-me na expressão: “este aspecto culinário da abundância, da plenitude” que se pode encontrar hoje, aqui e ali, nos lares brasileiros não em todos. Não tive acesso a isso em minha infância no orfanato; e até hoje em muitos lares no Brasil falta tudo – até o gás para fazer a comida; só o benefício da Esperança pode salvar a noite de Natal para muitos, quando uma ou outra alma caridosa, alavancada por uma pastoral, uma associação beneficente, faz uma rifa ou uma coleta especial, e supre a família carente com o básico para que a alegria cristã reine naquele lar.
Se me volto para os hábitos daquela lembrança contida na crônica, encontro as danças, os folguedos, o baile infantil, organizado no salão do teatro por uma associação de senhoras, em favor de um estabelecimento de beneficência. O próprio autor encontra anacronismo em relembrar uma cena da infância dele passada na região do Minho, mas deixando a comida e as danças de lado, volta-se para o fundo da alma das pessoas e isso mantém-se atual nesta noite de Natal:
Anúncio
Tudo o que há de mais profundo no coração do homem, o amor, a religião, a pátria, a família, estava aí tudo reunido numa doce paz, não opulenta, mas risonhamente remediada e satisfeita. Não é tudo? … Só nós, as crianças, é que gozávamos nesta festa uma alegria imperturbável e perfeita, porque não tínhamos a compreensão amarga da saudade nem as preocupações incertas do futuro.
É que para Ramalho Ortigão como para este cronista “esta noite de alegria para as crianças será sempre de alguma saudade para os adultos”. Também eu, olho do meu ponto de observação do mundo, para um mundo mudado em shopping center e papai-noel, centrado em promoções e iluminação feérica, sem a lembrança do que realmente é o centro do Natal – a Encarnação do Menino Deus. O fato mais histórico fica em segundo plano, nem mesmo o presépio tem sua centralidade.
E quase não se celebra mais a Missa do Galo, aquela que de acordo com São Gregório Magno é a missa noturna que comemora o nascimento temporal de Jesus e que não é mais celebrada à meia-noite pela insegurança de nossas cidades – a missa do galo, «in galli cantu» deixou de ser o centro da celebração, quando dela se retornava para então, sim, reunirem-se as famílias em torno da Ceia de Natal.
Anúncio
Não desejo despedir-me do leitor com aquela nota triste da velha crônica do lusitano, mas não há como enxugar uma lágrima nestes tempos em que se esquece o Natal antigo, portanto, deixo-lhes com os versos de um poeta católico brasileiro – Augusto Frederico Schmidt, que tem a dor e a pureza do poeta, e feito sobre um acontecimento passado com o poeta italiano Giuseppe Ungaretti, que perdeu o filho ainda menino para uma doença mal-curada.
A ideia de escrever um poema de Natal Traz-me a lembrança o poeta Ungaretti Na sua casa em Roma, Via Remuria, 3.
Vejo-o impassível, O rosto difícil De florir um sorriso
Com seus olhos que parecem Cansados De contemplar o fundo do mar.
Ungaretti é um pássaro revoando, Volteando, girando e de súbito Molhando As largas asas duras nas águas Onde pousa e às vezes se move A imagem do seu filho perdido
Ungaretti tem — E é seu consolo — A certeza de que o filho Não tocou no mal Que não chegou a perceber Que os seres são sempre órfãos E caminham sozinhos
Ungaretti possui um Tesouro E este dia de Natal reabre-lhe Não só a ferida, mas também A vontade de viver Para que viva nele e com ele o seu fruto
Penso com inveja em Ungaretti Invejo a tristeza do poeta Quem tem uma tristeza assim Não está de todo abandonado Não perdeu os últimos sinais Que reconduzem a cidade da infância
Neste dia de Natal na sua casa em Roma Via Remuria, 3 O poeta Ungaretti está menos só do que eu Possui a sua própria dor a queimar-lhe O peito e acompanhá-lo
E enquanto sua lembrança esvoaça Em torno do filho pequeno que partiu Poupa lhe Deus miséria igual a minha Contemplar nesta hora festiva A face morta da criança que eu fui.
[i] ORTIGÃO, Ramalho. “Farpas escolhidas”, Introdução e seleção de Rodrigues Cavalheiro. – Lisboa: Editorial Verbo, 1971. 181 pp.
[ii] SCHMIDT, Augusto Frederico. “Poesia completa”, Introdução de Gilberto Mendonça Teles. – Rio de Janeiro: Topbooks/Faculdade da Cidade, 1995, pág. 510-12.
Adalberto De Queiroz
Adalberto de Queiroz, 66, natural de Goiânia, é empresário e jornalista por formação (UFG), Bacharel em Comunicação Social (URGS). Autor de "Os fios da escrita" (Ensaios literários), Edit. Mondrongo, 2020, entre outros títulos. É membro da Academia Goiana de Letras.
E-mail.: [email protected]
A literatura medieval difere da literatura da Antiguidade Clássica e se afirma no cânone ocidental com obras como Tristão e Isolda. A partir da poesia provençal, surgiram obras que chegam aos tempos atuais gerando forte interesse dos leitores