Paul Celan – a grande poesia trágica (1)
O grande crítico judeu-francês George Steiner (1929-2020), morto no ano passado, em Cambridge (Inglaterra), contou a Ramin Jahanbegloo ter perdido o trem na estação Frankfurt por ter ido comprar um livro num quiosque. Ele leu, então, o verso: “A língua está ao norte do futuro” – e concluiu: “perdi meu trem por causa deste poema. Foi ali meu primeiro encontro com a sua obra. Celan tornou-se, portanto, por inteiro, o pão e a respiração de minh´alma”.
Descobri os versos de Celan em 1977, na saudosa Livraria Cultura Goiana, através de um pequeno volume de versos traduzidos por Flávio R. Kothe para a editora “Tempo Brasileiro” e, alguns anos depois, continuei a descoberta na continuação elaborada pelo mesmo tradutor, o vol II dos poemas de Celan, que saiu em edição comentada pelo tradutor, sob o título de “Hermetismo e hermenêutica”.
Não posso dizer que os versos de Celan tornar-se-iam meu pão, tampouco o ar que minha alma respirava, pois outras brisas e vendavais poéticos vieram inundar-me, a ponto de num dado momento quase ter-me esquecido do poeta judeu que propunha sua música para ser ouvido em baixo volume, ser entendida depois e só depois de muita reflexão e estudo. Daí o ter sido o segundo volume de suas traduções um alento para o leitor de vinte e dois anos de vida que eu fui…
Já na maturidade, pude compreender, lendo George Steiner, que os apelos do sagrado estavam presentes, como intuía o leitor jovem, na poesia de Celan, apesar de relembrar-me que “em se tratando de Celan, a noção de algo emblemático seja simplista demais”, mas por certo “a figura e as figurações da Sarça Ardente são interlineares na poesia de Paul Celan” (STEINER, 2018[i]).
A experiência da segunda guerra mundial e a violência indescritível do Holocausto (Shoá) ainda faz tremer os versos do poeta Celan, na expressão de Otto Maria Carpeaux que assim avaliou Celan, comparando-o em intensidade aos versos do poeta polonês Tadeusz Rozewicz, como “um dos maiores desses poetas herméticos e o mais hermético de todos eles, mais um que escolheu a morte pela mão própria.”
“[Celan] tornou-se famoso, inicialmente, pela poesia Todesfuge (Fuga da morte) que, como muitos outros poemas seus, recorda o extermínio dos judeus da Europa oriental pelos nazistas. Mas não é, nem de longe, um “especialista” dessa experiência terrível. Foi fortemente influenciado por Rimbaud, por Blok e outros “futuristas” russos, que ele traduziu para o alemão. Sua própria poesia, dificilmente traduzível e, às vezes, impenetrável é um grito de consciência, mas não se deve falar propriamente de grito, porque Celan fala sempre em pianíssimo; lembra a música de Webern. Mais tarde, seu hermetismo não será obstáculo ao reconhecimento da sua grande poesia trágica.[ii]”
Devo a Flávio Kothe o ter-me aproximado de Celan e vislumbrado algo dessa grande poesia trágica na “profundidade e na força sugestiva” das imagens de Celan, como ensina Steiner sobre este poeta.
Do poeta judeu Paul Pessakh Antschel (ou Ancel), romeno radicado na França – nasceu em Czernowitz (Bukowina) em 23 de novembro de 1920 – morto em Paris em 1970 (suicídio), alguns poemas foram traduzidos por Flávio Rene Kothe, e lançados pela editora Tempo Brasileiro. Esse trabalho que lhe consumiu quinze anos e vale a pena em cada linha, mesmo quando dela discordamos – foi minha iniciação em Celan.
Pela passagem do centenário de Celan (novembro de 2020), alguns sites preparam homenagens que nos recordam o poeta romeno e a editora Iluminuras lançou um novo volume de poemas na tradução de Cláudia Cavalcanti e, coincidentemente, uma tese sobre o autor romeno aparece com vigor no mestrado defendido por Hugo Simões, na Universidade Federal do Paraná (2018), sendo que esse traça um perfil do autor no YouTube e lê alguns poemas na companhia de ninguém menos do que Irene Giner-Reichl, embaixadora da Áustria no Brasil – ver link[iii].
Abaixo a entrevista que me concedeu o professor, tradutor e poeta Flávio René Kothe, talvez o pioneiro na tradução de um número significativo de poemas de Celan em nosso idioma:
AQ: O que podemos afirmar sobre o poeta Paul Celan, cujo centenário foi comemorado em novembro do ano passado, em relação ao cânone da poesia universal, à perenidade? Celan tem seu lugar garantido e por quê?
Kothe: Celan é muito estudado e comentado nos melhores centros universitários mundiais e há muitas publicações em torno dele, mas quase nada nos cursos de Letras do Brasil. Com o correr do tempo, é preciso distinguir entre o uso que possa ter sido feito dele para a causa sionista e o que dele vai se preservar por ser um poeta de excepcional qualidade. Foi um gênio, mas o temor diante do mártir inibe a percepção alemã da delimitação e limitação de seus horizontes. Peter Szondi, Beda Allemann, Hans-Georg Gadamer e Werner Hamacher, para citar intelectuais com os quais convivi e que já faleceram, fizeram ótimos estudos sobre ele. Essa discussão se trava num nível que não existe nos cursos de Letras e meios acadêmicos no Brasil, mas circula há mais de meio século em Berlim, Bonn, Heidelberg, Londres, Paris, Copenhagen, New Haven e assim por diante.
Celan é maior que a leitura que tem sido feita dele só em função do holocausto. Adorno disse que depois de Auschwitz não se poderia mais escrever poesia. Celan respondeu escrevendo sobre Auschwitz. Szondi radicalizou isso, dizendo que só se poderia ainda escrever sobre Auschwitz. Isso é estreito demais. Não se trata de diminuir a barbárie lá ocorrida, mas ela não foi a única que tem sido feita na história. Os judeus não têm o monopólio da tragédia na história. O funil da história não passa por um único lugar ou evento. Há muitos problemas graves em outros lugares. Até Israel se tornou uma tragédia para milhões de palestinos.
Szondi foi meu professor em 1970-71 – quando falei para ele de grandes professores eliminados das universidades brasileiras pela ditadura, inclusive Ângelo Ricci que ele conhecera, ele me indicou uma escritora judia alemã, Hilde Domin, com a qual eu deveria conversar. Ela teve de fugir da Alemanha e depois da Itália na década de 1930, organizou então em 1970 um programa de rádio com outros escritores berlinenses sobre a liberdade de pensamento e expressão.
O que vai levar Celan a perdurar na história é complexo, envolve a essência mesmo da linguagem e da poesia. De modo geral, não estamos preparados no Brasil para enfrentar isso, pois não temos boa formação humanística, nossos ginásios não estudam grego e latim, não sabemos ler no original suas literaturas, não conhecemos bem os grandes poetas de línguas como inglês, francês, alemão e russo, não estudamos as obras clássicas da filosofia, não conhecemos retórica nem filosofia da linguagem.
O que está em jogo é saber se temos condições de vislumbrar por onde caminha o pensamento de ponta, se vamos aceitar o nada como ponto de partida ou chegada, se vamos aceitar o ser como nada. A maioria não quer nem saber disso, não está habituada ao texto mais denso, que gera um descompasso entre o que diz e o que ele sugere, como que um vazio, que é uma negação do que nele se diz e, ao mesmo tempo, impede que se tenha uma assertiva primeira, simples, à qual se possa contrapor uma negação. A negação da negação não gera então uma afirmação, exceto o poema em que isso acontece. Ele nega a si mesmo ao se fazer.
AQ: Sobre o discurso pronunciado por Celan, em 1960, na cerimônia de entrega do Prêmio Büchner, o sr. concorda (ou discorda) da afirmação de Luís da Costa Lima que teria sido “a poética que ele (Celan) jamais compôs”?
Kothe: Eu traduzi esse discurso. Foi reeditado no livro que publiquei em 2016 na Editora da Universidade de Brasília, “A poesia hermética de Paul Celan”, uma edição bilíngue com curtos comentários sobre os poemas. Há, sim, uma poética nesse discurso, proferido quando Celan recebeu o prêmio Büchner, mas há uma poética presente em vários poemas em que ele tematiza a própria poesia. Pensadores como Gadamer, Szondi, Gadamer, Derrida e Hamacher trataram de desvendar aspectos relevantes dessa poética. Todos trataram Celan como um non plus ultra, um horizonte que se deveria alcançar, mas que não se poderia ultrapassar. Ele está na linha da poesia hermética de Hölderlin, Mallarmé, Trakl, Rilke, Mandelstam e mais alguns poucos. Em língua portuguesa, talvez apenas Fernando Pessoa esteja perto desse patamar, em que se trava o diálogo mais avançado entre poesia e filosofia. O problema é que toda criação que não souber desse patamar e não tiver um bom percurso por ele será um atraso, algo subdesenvolvido, anêmico. O texto fácil, próximo ao jornalismo, é mais cômodo que o difícil, denso, do poema hermético. De um patamar mais elevado se pode discernir o simplório do texto fácil, mas quem está preso ao horizonte do cânone simples não consegue captar o que está fora do seu alcance de percepção. Fica até despeitado.
A escola brasileira só estuda o cânone nacional. Esse erro foi fomentado por Antônio Cândido, pois achava que somente ele nos expressaria. Eu disse em 1969 a Cândido que as grandes obras mundiais também nos expressam e que esse cânone não expressava a perspectiva do imigrante, do índio, do negro. Discípulos dele só queriam o nacional e popular, o que era uma forma de conservadorismo, deixando o povo na debilidade em que já vivia. Não me quiseram nas universidades estaduais paulistas. Lênin disse que a revolução russa tinha de ser feita também contra o proletariado, não só contra a burguesia, no sentido de acarretar uma tal mudança no povo que ele se tornaria outro. O PT no poder não entendeu isso. No fim, Cândido até assumiu que todos deveriam ter o direito de ler um Dostoiévski na escola. Não é esse, no entanto, o perfil dos cursos de Letras no Brasil, embora já existisse na UFRGS como projeto na década de 1960, na equipe liderada por Ângelo Ricci, que foi toda cassada pelo AI-5 em 1969. Tentei implantar essa abertura para os clássicos mundiais da literatura e da filosofia na UnB quando criamos o pós-graduação em 1974-5, mas esse projeto foi destruído pela ditadura no final de 1977. Traduzir Celan foi um modo de sobreviver em meio à inversão total de valores no mundo acadêmico pela ditadura, mas que volta a querer se impor, para que não se desenvolvam as metas do ensino público, gratuito e de qualidade como parte dos direitos sociais do cidadão, de uma política de Estado no sentido de igualdade de oportunidades.
AQ: Fale-nos um pouco do seu método de tradução, especificamente para a poesia hermética de Celan, como se concretizou nos dois volumes da Ed. Tempo Brasileiro em meados da década de 80.
Kothe: Tive meu primeiro contato com Celan em 1970 quando fui estudar em Berlim. Trabalhei sobre textos dele com Szondi, Hamacher, Beese. Traduzir foi um modo de entender melhor seus poemas. Como eram textos que não se consegue entender bem, constituíam o desafio de traduzir o ininteligível, repassando a intelecção de sua ininteligibilidade para uma língua bem diferente. A partir de 1973 eu já estava publicando traduções de poemas de Celan nos principais suplementos literários brasileiros. Quando trabalhei em 1975 na UnB sobre essas e outras traduções com um leitor alemão, Bernhard Jankowsky, ele me disse que tinha passado a entender melhor o original com ajuda das traduções. Ele recomendou uma ajuda da Embaixada da Alemanha Federal para que o primeiro volume sobre Celan aparecesse na Editora Tempo Brasileiro, o que aconteceu em 1977. Pouco depois fui demitido da UnB: tendo proposto a criação da Associação dos Docentes e sendo denunciado por gente que queria minha vaga, eu não servia para a ditadura. Tendo ido para a PUC-SP, dei um curso sobre Celan, o que parece não ter agradado aos concretistas e peirceanos que dominavam o programa de pós em Semiótica no qual eu estava. Fui demitido, não sei por quê. Para sobreviver, trabalhei no Instituto Hans Staden e, entre outras coisas, propus uma coedição de Celan com a Tempo Brasileiro. Isso foi aprovado, mas, quando apareceu o livro, fui criticado por membros da Diretoria porque havia divulgado um autor que falava mal da Alemanha. Pouco depois fui demitido. Esse livro de 1985, “Hermetismo e hermenêutica”, recebeu o prêmio de tradução do Instituto Nacional do Livro. De nada me adiantou. Eu nunca fui chamado por qualquer universidade para falar sobre Celan. Aliás, eu nem conseguia passar nos concursos. Só no fim da ditadura fui para Goiânia, onde trabalhei por dois anos. Em 1988, fui anistiado, mas a UnB demorou mais cinco anos para me admitir de volta, com forte movimento de professores de Letras contra meu retorno, sendo que eu nem conhecia a maioria deles.
AQ: Ainda sobre este trabalho que representou esforços pessoais de quinze anos, qual a recepção dada aos dois volumes e como o sr. reagiu como tradutor e poeta – autor de “Pássaro de papel”?
Kothe : Eu não ganhei um tostão com as traduções que fiz de Celan. Tive de desistir dos direitos autorais para que a edição bilíngue aparecesse na editora da UnB em 2016. Dois volumes que eu traduzira não apareceram nela porque duas editoras alemãs não responderam à proposta de 50 dólares por poema original. Foi um diretor da Editora, Norberto Abreu e Silva, já falecido, que por volta de 2009 me propôs fazer o livro: ele havia estudado na Áustria e lá aprendera a admirar Celan. Eu tinha ainda a ilusão de achar que deveria fazer algo pela cultura literária no Brasil. Desde 2018 eu poderia ter perdido essa ilusão, mas não me surpreende o afloramento de tendências regressivas, reacionárias, medíocres. Não espero muito do povo e do país que temos. O sistema escolar não conseguiu preparar o povo para a cidadania, as pessoas não sabem ler bem os acontecimentos políticos.
Se Celan tivesse escrito aqui, não se tornaria Celan, não seria conhecido nem reconhecido, não chegaria até onde chegou. Os parâmetros do gosto e da formação cultural vigentes no país impedem que possa ressoar algo mais refinado e profundo. Um berimbau não tem a caixa de ressonância de um piano de cauda. Na capoeira se finge que se luta e se finge que se dança. A mim isso logo cansa, não é minha praia, embora respeite etnias que os cultivam. Sei, no entanto, que todos nós que crescemos na escola brasileira acabamos subnutridos mentais, somos débeis, sem capacidade de concorrer com a formação nas grandes escolas que há em países como Áustria, Suíça, Canadá, França. A ditadura militar destruiu as melhores escolas que então havia, eliminou da universidade os professores mais competentes. Foi uma perversão de valores, da qual o país até hoje não se recuperou. A regressão no poder não deve, no entanto, ditar o nosso percurso.
Na ditadura, fui posto para fora da universidade e impedido de lecionar. Havia barreiras por toda parte. Eu não era relevante nem perigoso. Tive a sorte de conseguir traduzir autores como Kafka, Benjamin, Adorno, Marx, Süsskind, Heinrich Mann. Eu como que transferia a eles o que eu mesmo não podia dizer, enquanto ia aprendendo com eles. A fraca formação humanística que temos nas escolas nos deixa sem condições de competir com as pessoas que se formam nas culturas mais desenvolvidas. Só quando reconhecermos que somos fracos é que poderemos nos tornar melhores. O Brasil não tem preparado bem as elites para a boa governança. A falta de senso crítico permite que se digam bobagens na esfera pública e elas sejam engolidas como aceitáveis. Estou terminando este ano a minha vida como professor com uma enorme sensação de fracasso. Escolhi a profissão errada, no país errado. Fiz, porém, o que me foi possível, mas foi insuficiente.
Celan insistiu no silêncio que persiste no poema. A linguagem surge como que do intervalo que há entre as palavras, o espaço em branco entre elas na escrita, o silêncio de quem escuta para que o outro possa falar. Ao contrário do que ocorre nos discursos jurídicos feitos em versos por muitos que acham que são poetas, o poema hermético vem do silêncio, ao silêncio retorna, encena e acena o silêncio. O que mais temos entre nós são versos enfáticos, nas imagens e nas palavras, que querem exibir que dizem mais do que conseguem. São engano e engodo. Só que os leitores médios do país não percebem essa mediania. O poema hermético tende a ser curto, breve, elíptico, mas diz mais do que o discurso jurídico ou jornalístico ou professoral. Ele também não é um máximo de informação num mínimo de espaço, pois ele não está preocupado em transmitir notícias.
Depois do “Pássaro de papel”, publiquei alguns livros de poemas, entre eles “Quarteto de Rostock” e “Sem deuses mais”. Publiquei também dois romances, “O Muro” e “Botucaraí”, e alguns livros de contos, como “Casos do acaso” e “Segredos da concha”. Tenho editado a Revista de Estética e Semiótica nos últimos dez anos e fiz quatro números da Revista da Academia de Letras do Brasil [ver links para os dois sites em notas abaixo].
AQ: Como você poderia resumir para o leitor da Recorte Lírico seu esforço ao examinar os tópicos hermetismo e hermenêutica, aplicados à poesia alemã do século XX?
Kothe : A hermenêutica aflorou da exegese de textos considerados sacros e tendeu a manter sua atitude básica: não só o respeito pelo texto, no sentido de olhar mais de uma vez com cuidado, mas ter um temor reverencial diante dele, como se fosse a mensagem de uma divindade. Isso é anterior à exegese cristã. Já estava no modo como Platão, Sócrates e os sofistas citavam Homero. Não foram capazes de ler nele o caráter ideológico da crença em divindades, que serviam para sustentar os privilégios da aristocracia e manter a escravidão. No Olimpo não havia espaço para um Cristo. Os professores europeus não gostam de “desconstruir” os fundamentos dos seus grandes autores, pois vivem deles. A “análise imanente” foi um modo de servilismo ao que o autor dizia. Aí não se questiona o que o poeta propõe, não se supõe que se possa encarar de outra perspectiva, mesmo antitética, ao que ele propõe e dispõe no seu texto. No diálogo entre pensamento e poesia, o pensador tem de se submeter aí ao poeta, não pode ver as limitações dele. A grande poesia é aquela que vai além do nosso horizonte. Há um esforço hermenêutico radical no sentido de forçar os conceitos a alcançarem o que está indiciado na grande poesia hermética. Isso é difícil.
Nos meus quatro volumes sobre o cânone brasileiro, dos quais “O cânone colonial” foi reeditado pela editora Cajuína há poucos meses, eu tive de desenvolver o conceito de exegese canonizante, como aquela leitura que serve para mais uma vez canonizar o que já foi sacralizado no cânone. Não adiantou publicar duas mil páginas em quatro volumes relativos sobre o cânone e o que se costuma ensinar como literatura nas escolas do país. O mesmo sistema continua. Hoje eu nem conseguiria publicar esses livros aqui. Não adiantou haver PSDB, PT, PMDB no poder: há uma estrutura mais profunda que persiste e da qual o atual governo é uma expressão. Ela é estrutural na formação do país, na mentalidade do povo, no perfil médios dos professores, na estrutura profunda do intelecto. As pessoas não costumam perceber as prisões mentais em que estão confinadas.
Estou há vinte anos fora dos cursos de Letras e não fui aceito na Germanística da USP quando tentei, de maneira que não tenho podido me dedicar como gostaria à poesia alemã do século XX. Retrabalhei Brecht, ao reescrever há pouco a minha tese de doutorado, “Benjamin e Adorno: confrontos”, que foi reeditada em 2020. Tenho lido Baudelaire, Rilke, Celan e estudos sobre eles. Sou há quase vinte anos professor titular de Estética na Faculdade de Arquitetura da UnB, por concurso público, e tenho me voltado mais para questões estéticas e semióticas. Fiz um trabalho longo de tradução ao trazer para a língua portuguesa metade do espólio de Nietzsche. Aprendi muito com ele. Meus projetos de pesquisa não são aprovados pelos órgãos de fomento, pois são considerados inviáveis e absurdos. Meus livros nos últimos vinte anos têm sido fruto de projetos rejeitados. Meus “pares” não me amam…
AQ: Quais são seus projetos atuais e futuros. Sabemos que lançou quatro livros no saudoso ano 2019, pré-pandemia:
Kothe : Sim, quatro livros apareceram em 2019: “Fundamentos da teoria literária”, que é a reedição de aulas que dei na Universidade Federal de Goiás em 1986-7 e que foram gravadas pelos alunos; “Literatura e sistemas intersemióticos”, que é uma edição revista e ampliada de minha tese de livre-docência, que estava esgotada há muitos anos; um livro de poemas, “Sem deuses mais”, e um de contos, “Segredos da concha”. Em 2020, apareceu uma edição revista e ampliada de um livro também esgotado há anos, “O cânone colonial”. Foi como se eu passasse um passado a limpo. Colaborei também em revistas e jornais, mas hoje me pergunto se tem sentido querermos insistir em fazer cultura num país que optou pela barbárie. Talvez exatamente por isso tenhamos de fazer algo, mas não podemos deixar que nos dite o destino e o horizonte quem não é melhor que nós.
Como despedida do ensino, estou fazendo a revisão de algumas centenas de páginas sobre estética e história da arte, que tenho usado para dar aulas virtuais desde a pandemia. Tenho guardado um livro de contos e várias centenas de haicais, mas nada encaminhei para editoras. Na semana passada, assinei um contrato para a reedição da tradução que fiz com o Régis Barbosa de três volumes de “O capital”.
Por mais um ano deverei ainda estar na presidência da Academia de Letras do Brasil. Estamos voltando a editar uma revista que havia sido criada há mais de vinte anos, da qual apareceram nos dois últimos anos os números 2, 3, 4 e 5. Estamos começando a preparar o próximo número. Acabamos de criar o site que abriga os dados da Academia[iv]. Até novembro deverei continuar na coordenação do Núcleo de Estética e Semiótica da Faculdade de Arquitetura da UnB, pelo qual publicamos há dez anos a RES – Revista de Estética e Semiótica[v], no que está tendo há dois anos apenas uma versão eletrônica por falta de apoio financeiro. Mesmo sendo ela em português, vi que tem artigos lidos em diversos continentes.
Flávio R. Kothe é mestre (FU-Berlin), doutor (USP) e livre-docente (PUCCAMP) em Teoria Literária e Literatura Comparada. Foi professor convidado nas Universidades de Rostock, UFRGS e no Instituto de Estudos Avançados da USP, sendo atualmente professor titular de Estética na Universidade de Brasília, coordenador do Núcleo de Estética, Hermenêutica e Semiótica na FAU/UnB, presidente da Academia de Letras do Brasil. É autor de mais de 40 livros e 450 publicações como ensaísta, tradutor, ficcionista e poeta.
[i] STEINER, George. “Nenhuma paixão desperdiçada”. Tradução de Maria Alice Máximo, 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Record, 2018, pág. 421-435 (ensaio A grande tautologia).
[ii] CARPEAUX, Otto Maria. “História de literatura ocidental”, Rio de Janeiro: Editorial Alhambra, 1984 vol. VIII, pág. 2205.
[iii] Link do YouTube, consultado em 05/07/2021 https://youtu.be/UavOIDP4k5I
[iv] Site da Academia, link consultado em 06/07/2021: www.academiadeletrasdobrasil.com.br
[v] Link internet para a revista RES, consultado em 06/07/2021: https://periodicos.unb.br/index.php/esteticaesemiotica
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