A Revolução dos Bichos — Apontamentos de Leitura
1. Sempre li o discurso do porco Major, de A Revolução dos Bichos, sem a interferência da Revolução de Outubro. Pareceu-me uma utopia ecológica radical em que a questão econômica era secundária diante da necropolítica. A ligação direta com o abolicionismo vegano não permitia dúvida.
2. O desaparecimento do gênero humano é a ambição descrita em um dos capítulos de A Revolução dos Bichos. A chave ecológica: sem o homem no planeta nasceria uma nova ordem sem maltrato animal e destruição dos recursos naturais. Algumas correntes de preservacionistas pensam assim.
3. Uma pergunta despertada pelo livro de Orwell é a seguinte: os animais participaram da queda? O estabelecimento do animalismo não é livre de contradições em si mesmo ou nos indivíduos participantes do projeto utópico. A égua Mimosa – e não só ela – é o exemplo direto da questão.
4. A hegemonia interpretativa acerca de um livro não desautoriza outra abordagem sobre o universo tratado. O romancista Cornélio Penna sofre bastante com o fenômeno, o Modernismo é visto como movimento unívoco e a tributação de A Revolução dos Bichos sob o stalinismo é castrativa.
5. A canção Bichos da Inglaterra, resgatada da memória pelo porco Major, adotada como hino pelos animais, difundida pelas aves pela região, infunde um tremor secreto nos homens pela mensagem de desgraça. Pode ter paralelo no incidente de Hamelin, inspirador da lenda do flautista.
6. O leitor Diego Mendonça descobriu minha intenção com a mudança de perspectiva acerca da obra de Orwell:
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“Estou impressionado com as chaves (ou não-chaves?) de leitura que o @marielreis está nos oferecendo. Qualquer menção à obra “Revolução dos Bichos” me transportava para alguma resenha política anti-totalitária e histórica. Os prefácios pareciam aqueles guias de leitura do ginásio. E assim, a aventura da literatura se transformava numa entrada num beco que me jogaria num sistema bem organizado e iria dirigir toda a minha imaginação. Como se de repente uma boa narrativa fosse como um filme pipoca que exige pouco da criatividade de quem assiste.”
7. Na Batalha do Estábulo, Bola de Neve diz: “Ser humano bom é ser humano morto.” Mais à frente, os antigos moradores da granja são chamados de esbanjadores pelo desperdício – consumo excessivo – de víveres. Os hábitos alimentares humanos contribuem para o ódio dos animais.
8. Os presuntos recolhidos na cozinha depois enterrados pelos animais vitoriosos com a expulsão de Jones da granja estão no discurso – assim como todo o livro – de Major: “Vós, jovens leitões que estais sentados à minha frente, não escapareis de guinchar no cepo dentro de um ano.”
9. O Sr. Whymper é o representante comercial da Granja dos Bichos com o mundo exterior. Além da denominação pejorativa – chorão – percebe-se o reforço de sua inferioridade na narrativa “ver Napoleão, de quatro, dando ordens a Whymper, que permanecia de pé, lhes acariciava o orgulho.”
10. O esforço de George Orwell para a condução política da narrativa sem a intromissão da moral é grande. Os porcos moram na ex-casa de Jones, utilizam as camas e são acordados uma hora depois dos outros animais. A preguiça está sugerida no texto, além de outros pecados capitais.
11. O moinho em construção pelos animais, sempre distante da concretização pelos artifícios de Napoleão, está erguido invisivelmente na granja. Os ideais de Major esmigalhados, Bola de Neve esmagado, os espíritos moídos, tudo é macerado até o fim de qualquer identidade possível.
12. Num trecho de A Revolução dos Bichos, a reconstrução do moinho e a criptografia: “Deliberaram construir as paredes com noventa centímetros de largura, ao invés de quarenta e cinco, o que exigia mais pedra.” O número 9 e a alusão à pedra. O homem novenário é o triplo do ternário.
13. O capítulo VII, de A Revolução dos Bichos, trata da fome na granja, além de ter em si o número nove. A fantasmagoria está representada semanticamente: gelo, vento, finas, neve, espectro, vazia, farinha, etc. É uma construção literária impressionante e ambiguamente esotérica.
14. As imolações do antigo proprietário, Jones, surgem em um trecho: “Nos velhos tempos eram frequentes as cenas sangrentas.” O novo tempo prometia o fim dos holocaustos, elegeu um bode expiatório – Bola de Neve – porém ele saiu, convenientemente, com vida, sem o sacrifício redentor.
15. A crueldade animal retorna ao cenário de A Revolução dos Bichos. Um cavalo chicoteado até a morte, vacas mortas de fome, cachorro morto em uma fornalha, briga de galos com lâminas de barbear nas esporas. O sangue dos demais animais fervia de ódio contra os malvados humanos.
16. A queda da nova ordem prevista pelo porco Major estava inscrita em sua visão. Suas advertências transformadas nos sete mandamentos, lentamente alterados, antecipavam a corrupção dos bichos. Os porcos e os homens, de fisionomias divergentes, convergiram para o mesmo Mal interior.
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