Um porco

Se os demônios transferidos para os porcos pretendiam fazer com que o mundo desistisse do bacon, pode ter certeza que Nosso Senhor se equivocou. O mundo era outro, sem ativistas e ninguém discutia o direito animal. Em nossos dias, a parábola seria interrompida pelo resgate dos animais feito pela Luísa Mell, ainda que Jesus Cristo prometesse um processo indolor de transporte dos espíritos imundos. Poderíamos vê-la diante do Salvador, perplexa, esbravejando contra a missão do Messias, os porqueiros indignados com a requisição e os bichinhos atrás de todos em busca de uma rota de fuga.

Em meu bairro, próximo ao rio, uma grande família de porcos percorria as ruas, revirava montanhas de lixo, invadia quintais, estragava as oferendas das encruzilhadas, além de violarem cadáveres. Não pareciam simpáticos ao contato humano, com histórico de perseguições de pessoas, ataques a veículos e vandalismo dos canteiros das praças. Alguns moleques com estilingues procuravam afastá-los quando estavam pertos das casas ou acuavam cães. Poderiam substituir sem prejuízo seus irmãos da alegoria bíblica, com a vantagem de não possuírem reclamantes e tampouco ecologistas. Dificilmente, via-se os porcos separados e um dia o maior deles se desgarrou sem protesto dos demais.


Um porco

A primeira modificação notada foi a mudança de comportamento. A agressividade do animal diminuía enquanto ele assumia um temperamento meditativo percebido pelos habitantes do novo território escolhido pelo eremita suíno. Abandonou os antigos hábitos, principalmente os criminosos. Seus olhos profundos comoviam, as pessoas o alimentavam em tigelas enfeitadas, passavam a mão em seu dorso e atiravam perfumes em seus pêlos ásperos. O porco não tinha uma afeição especial por ninguém, embora parecesse agradecido a todos. Se uma ambientalista aparecesse, talvez sua ferocidade voltasse, impedindo sua descoberta do mundo espiritual destinado aos seres de sua espécie e toda a sua saga perdesse o sentido. Também discutiria seu fado com o homem-deus sem impertinência.

Imaginou-se protegendo o corpo de uma jovem em um matagal de um ataque dos antigos companheiros, sendo, ao final do combate, também morto e devorado. Não conseguia passar desse ponto, repetido à exaustão, transmitindo-lhe um contentamento inexplicável. De repente, sentiu um laço, foi arrastado para uma camioneta e levado para um lugar desconhecido. Lá, em um chiqueiro, conviveu com seus iguais sem qualquer exigência. Em um domingo, foi levado para o cepo. A morte não compensou sua vida espiritual incipiente ou esclareceu mistério algum. Nenhum sonho atravessou seus olhos.


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