Representações da glocalidade no cinema brasileiro: Cidade de Deus

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Fechando esta série sobre globalização e regionalismo em nosso cinema, vale a pena retomar o filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. Lançado em 2002, o longa pôs em evidência uma comunidade carioca, apresentada como um microcosmo sistematizado e organizado hierarquicamente. A partir disso, todo o enredo investe na urbanidade, destacando temas como a violência, as relações entre pessoas dos morros e de bairros nobres da cidade e, principalmente, o tráfico como motor dessas relações e, ao mesmo tempo, como instrumento de poder. Nesse contexto, o fato de Cidade de Deus privilegiar um cenário mais urbano e assuntos muito debatidos na época é um sinal claro da globalização.

Cidade de Deus, filme de Fernando Meirelles, com roteiro de Bráulio Mantovani, inspirado no romance de Paulo Lins, diferentemente de O auto da compadecida, amplia o cenário da metrópole que Walter Salles insere, na primeira parte de Central do Brasil, dando ênfase à periferia. Curioso, em Cidade de Deus, é o fato de tanto o livro quanto o filme contrariarem a tendência que Beatriz Resende (1999) identificou na literatura, a partir de 1980. Segundo a autora, com exceção de Cristovão Tezza, Rubem Fonseca, Valêncio Xavier e Dalton Trevisan, para citar apenas alguns nomes, os escritores em geral, atuantes na década de 1980, afastaram-se da representação da cidade em suas histórias, privilegiando, em seu lugar, o intimismo, e colocando, dessa forma, em primeiro plano, as crises e os conflitos que envolviam a identidade dos personagens. Para isso, porém, o espaço deixou de ser priorizado e delimitado e o aspecto psicológico dos personagens recebeu maior atenção. Na maioria das narrativas, os protagonistas pareciam perdidos, agindo como se fizessem parte de qualquer lugar, ao modo de um nowhere man.

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Tal tendência ainda permanece. Na literatura contemporânea, histórias que priorizam esse tipo de problemática podem ser vinculadas ao conceito de “modernidade líquida” (BAUMAN, 2001), em que o tempo é mais importante que o espaço. Revendo os autores que serviram de base a Zygmunt Bauman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, Marshall Berman, citando Marx, tenta sintetizar a atmosfera moderna, na qual o individual é reforçado pelo enfraquecimento das instituições estáveis do passado:

Todas as relações fixas, imobilizadas, com sua aura de ideias e opiniões veneráveis, são descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido desmancha no ar […]. (BERMAN, 1986, p. 93)

Com base nessa passagem, é certo que a individualização e a fluidez das relações sociais dão respaldo às narrativas que focalizam o sujeito e seus conflitos com o meio e as demais pessoas que o cercam, muitas vezes enveredando para o psicologismo.

Porém, na contramão da individualização, que diluiu as fronteiras, relativizando o que se entendia, até então, por comunidades, há a tendência que muitos consideram xenófoba, mas natural, cujo principal objetivo é reagir aos efeitos do global. Para tanto, livros e filmes, como é o caso de Cidade de Deus, tentam resgatar o espaço geográfico, como elemento que permite a identificação entre a obra e o leitor/espectador, ao mesmo tempo em que retratam questões universais, já que os temas que irão desencadear a história, que se passa em uma comunidade do Rio de Janeiro, soam como representativos não só para o Brasil, mas para outros países do mundo todo. A mudança significativa que o intervalo que Beatriz Resende (1999) apontou como tendo ocorrido na década de 1980 pode ter servido como transição no modo de tratar e representar o espaço. Antes, eram priorizados os espaços rurais ou interioranos. Hoje, de modo inverso, a narrativa precisa deter-se sobre o cenário urbano, das grandes cidades, para entrar no debate sobre as questões contemporâneas.

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Flora Süssekind chama atenção para a mescla que se faz, contemporaneamente, “entre o etnográfico e o ficcional” (SÜSSEKIND, 2007), a partir de outra combinação − jornalismo e literatura:

[…] uma materialização literária da trama citadina ganha sentido distinto quando se observa que a operação fundamental […] é justamente a colocação entre parênteses dos recursos narrativos, como possibilidade de ampliação, reforçada pelos cadernos de fotos e por uma escrita parajornalística, do campo de visibilidade contextual. (SÜSSEKIND, 2007)

Percebendo, ainda, o deslocamento do rural para o urbano, o que prefigura a substituição das cidades pequenas pelos grandes centros, a autora menciona: “[…] é predominantemente urbana a imaginação literária brasileira nas últimas décadas” (SÜSSEKIND, 2007). O título do artigo em que a autora insere os trechos aqui transcritos, “Desterritorialização e forma literária”, embora pareça paradoxal, porque fala de urbanização e delimitação do espaço, apenas apresenta o mesmo processo utilizado por Ariano Suassuna, em O auto da compadecida, obra em que o autor, a partir de uma cidade do interior, debate questões universais.

Cidade de Deus elege como espaço uma comunidade carioca e situa as ações na década de 1970. No entanto, a história não reflete só a realidade da sociedade carioca, mas de todas as sociedades, devido à universalidade dos temas explorados. Mariza Leão refere-se a isso, em artigo publicado no Jornal do Brasil: “[…] da experiência inovadora do cinema novo aos dias de hoje, 40 anos se passaram. Saímos da mais valia regional para a ‘mais valia universal’, como explica Milton Santos em seu livro Por uma globalização” (LEÃO, 2001, grifo no original). Miguel do Rosário, compartilhando a mesma concepção, afirma:

Trata-se, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título bíblico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama épico. (ROSÁRIO, 2006)

Naturalmente, com a escolha de um cenário urbano, a temática teve de se adaptar a ele. Por isso, em Cidade de Deus, encontram-se discussões acerca dos excluídos, do preconceito, da violência e da organização das quadrilhas que comandam o tráfico de drogas. Apesar de boa parte da crítica reclamar a ausência do conflito entre as classes no filme, é justamente o tráfico que serve de mote a isso, já que há uma turma de brancos burgueses, da cidade, que vai ao morro, em busca da droga. A polarização brancos/classe alta/consumidores versus negros/classe média baixa/fornecedores pode ser encarada, em lugar de redutora e estereotipada, como maneira de refletir sobre os vários tipos de preconceitos, pois a sociedade em geral (sobretudo aqueles que detêm o poder, brancos, na maioria esmagadora, e, por consequência, responsáveis pelo discurso hegemônico) tende a marginalizar os negros, assim como fazem com as classes inferiores, como se a necessidade ou a cor da pele fossem determinantes para uma vida fora da lei. Também a relação entre o branco/rico e Bené, parceiro de Zé Pequeno, embora não seja muito comentada pela crítica, é responsável por demonstrar a influência de um elemento sobre o outro, a ponto de, a partir da flutuação da identidade de Bené, o personagem negro se transformar, aos poucos, até o ponto em que decide ir embora e mudar de vida. A mudança começa a ocorrer quando Bené dá dinheiro a Tiago, o garoto rico, e pede que ele lhe compre roupas de marca. Primeiro as roupas e depois a cor do cabelo (que ele pinta de loiro) sinalizam a tentativa de o personagem alcançar um status diferenciado e que permitisse a ele não ser mais visto pela sociedade de modo preconceituoso (Fig. 1).

Nesse sentido, para Bauman, é intenso o vínculo ente o ato de comprar e a questão identitária:

Em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase todas as identidades, é a capacidade de “ir às compras” no supermercado das identidades, o grau de liberdade genuína ou supostamente genuína de selecionar a própria identidade e de mantê-la enquanto desejado que se torna o verdadeiro caminho para a realização das fantasias de identidade. Com essa capacidade, somos livres para fazer e desfazer identidades à vontade. (BAUMAN, 2001, p. 98, grifo no original)

Comparando esse trecho com o episódio citado anteriormente, vê-se que Bené, optando por mudar radicalmente, não só exemplifica e comprova a mobilidade e flexibilidade do conceito de identidade, mas também responde àqueles que têm a visão unilateral e redutora de que qualquer comunidade é um reduto de criminalidade. Junto com Buscapé, Bené relativiza o conceito de determinismo, afinal, mesmo tendo sido criado no mesmo ambiente que Zé Pequeno e de ter sido seu amigo por anos, desde a infância, consegue seguir um caminho diferente (Fig. 2). Além disso, a mudança de Bené representa forte crítica ao preconceito social que existe em relação aos negros, já que, para que o personagem conseguisse a transformação desejada, deixando a vida de crimes que levava junto a Zé Pequeno, precisou enquadrar-se no modelo hegemônico do branco. 

Aliás, uma reclamação frequente dos críticos diz respeito ao perfil atribuído aos moradores das comunidades. Os mais radicais afirmam que o filme trata todos como marginais, o que não é verdade. Basta pensar em Zé Pequeno e opor seu caráter ao de Bené e ao de Buscapé, principalmente. O final dos personagens confirma a ideia de que não há generalizações na obra. Enquanto Zé Pequeno acaba morto pelos garotos da Caixa Baixa, que usurpam o seu poder, Buscapé opta, como anuncia a música que encerra o filme, pelo “caminho do bem”, escolhendo, para publicar, uma foto que acabou lhe garantindo um emprego, como fotógrafo, em um jornal de grande circulação na cidade (Fig. 3).

Comparando o filme de Meirelles a Central do Brasil, é fácil observar que Cidade de Deus supera este nas denúncias que faz, pois essas são mais plausíveis e amplas que a do tráfico de órgãos, por exemplo, tema explorado por Walter Salles, mas que parece fazer parte do conjunto de lendas urbanas, e não da realidade brasileira propriamente dita, tal é o grau de mitificação que já alcançou. Além disso, o microcosmo das comunidades impulsiona a universalidade, na medida em que a organização do tráfico serve de metáfora para qualquer tipo de organização social, com cargos hierárquicos e funções bem definidas. Claro que o elemento universal está presente também no filme de Walter Salles, mas de modo mais simbólico, no tocante à religiosidade, e de modo mais individual e menos social, no que se refere à transformação do sujeito, como ocorre com Josué e com Dora, em maior escala.

Pelo fato de Cidade de Deus enfatizar a urbanidade, é visível o reflexo da globalização, no que diz respeito à inter-relação das classes, consequência do atenuamento das fronteiras que delimitavam rigidamente territórios tão distintos. Os temas têm alcance universal, mas pode-se explicar a escolha pela representação da cidade pelo argumento de que os grandes centros passam a ser as principais vítimas do multiculturalismo, que embaralha as identidades, margeando a despersonalização do sujeito e da sociedade em geral. As metrópoles, permitindo a evolução tecnológica, favorecem a globalização, para, no momento seguinte, reagirem a ela, de modo paradoxal e quase incompreensível, por perceberem a descaracterização de sua cultura pelo contato intenso e frequente com as culturas dos outros países. Nesse aspecto, Cidade de Deus consegue chegar a um ponto de equilíbrio, ao misturar o espaço nacional com questões universais, associação que representa um dos principais conflitos da contemporaneidade.

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia da Letras, 1986.

CIDADE de Deus. Direção de Fernando Meirelles. Brasil: Walter Salles; Lumière/ Miramax Films, 2002. 1 DVD (135 min); son.

LEÃO, M. Condenados em nome de Glauber? Jornal do Brasil, 10 jul. de 2001.

RESENDE, B. O súbito desaparecimento da cidade na ficção brasileira dos anos 90. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/eSem_11.html. Acesso em: 14 jun. 1999.

ROSÁRIO, M. do. A volta do marginal. Disponível em: http://www.arteepolitica.com.br/criticas/cinema/cidade_Deus.htm. Acesso em: 08 abr. 2006.

SÜSSEKIND, F. Desterritorialização e forma literária — Literatura brasileira contemporânea e experiência urbana. Disponível em: http://www.infoamerica.org/articulos/s/sussekind.htm. Acesso em: 14 fev. 2007.

 

 

Texto originalmente publicado na revista Travessias Interativas n. 14 (jul-dez/2017), promovida pela Universidade Federal de Sergipe.

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