My boyfriend came back from the war: Da fala ao grito, do uniplex ao multiplex

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Na net art My boyfriend came back from the war (1996), de Olia Lialina, as falas dos personagens parecem desvinculadas. Isso ocorre em todo o texto, que parece ser feito de fragmentos de memória ou flashes — de imagens, frases feitas e resgate de falas de outras pessoas. Além disso, não há a mediação de um narrador. Após cada fala sem resposta, sugerem-se novos assuntos, como se a personagem feminina tentasse achar um tema que fosse realmente interessante para seu interlocutor: “Minha mãe / me disse / que você / poderia mudar”; “Você não viu / tigres lá?”; “Eu guardo / sua foto aqui” (LIALINA, 1996, tradução nossa, grifo no original). A fragmentação acentua-se, então, pela quebra da simultaneidade (Fig. 1).

My boyfriend came back from the war: Da fala ao grito, do uniplex ao multiplex
Figura 1: Telas 5, 6 e 7 da net art My boyfriend came back from the war (LIALINA, 1996)
LEIA O PRIMEIRO TEXTO:IMAGEM, PALAVRA E QUADRINIZAÇÃO NA NET ART DE OLIA LIALINA

Considerando os frames do canto superior direito das telas 5, 6 e 7, lemos: “Então, / a última vez em que nos encontramos,/ quando… / E você prometeu.”; “Eu também. / VOCÊ”; “GOSTA / DO MEU / VESTIDO / NOVO?” (LIALINA, 1996, tradução nossa, grifo no original). A hesitação e a incompletude, marcadas pelo uso das reticências, também acentuam a fragmentação. Para completar essa dissociação, a fala destacada da tela 6 completa o enunciado da tela 5, assim como as palavras da tela 7 terminam a pergunta iniciada na tela 6. Nesse contexto, a divisão excessiva rompe com a fluidez da fala feminina, evidenciando falta de entrosamento. Coerente com essa perspectiva, as maiúsculas ganham destaque, simbolizando que a mulher passa da fala ao grito, em uma tentativa desesperada de ser ouvida e respondida. Ainda na parte gráfica, destacam-se o itálico, as palavras em letras de tamanhos distintos e as exclamações. Dessa forma, a net art aproxima-se das HQs, que utilizam letras para variar a entonação e mostrar sentimentos dos personagens.

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Até aqui, a análise da obra de Olia Lialina, que abrange as modalidades de cibertexto e hipertextualidade, demonstra que a literatura digital acabou corrigindo os problemas que Roland Barthes já apontava, desde 1970, quando lançou a obra S/Z, na qual mencionava o “impiedoso divórcio que a instituição literária mantém entre o fabricante e o utente do texto” e a “espécie de ociosidade, de intransitividade e, enfim, de seriedade” (BARTHES, 1999, p. 12, grifo no original), que cabia ao leitor. Na net art em análise, o panorama é outro, mais condizente com o que Barthes preconizava como “texto ideal”:

Interpretar um texto não é dar-lhe um sentido (mais ou menos fundamentado, mais ou menos livro, é, pelo contrário, apreciar o plural de que ele é feito. Suponhamos a imagem de um plural triunfante […]. Nesse texto ideal, as redes são múltiplas e jogam entre si sem que nenhuma delas possa encobrir as outras; esse texto é uma galáxia de significantes […]; não há um começo: ele é reversível; acedemos ao texto por várias entradas sem que nenhuma delas seja considerada principal; os códigos que ele mobiliza perfilam-se a perder de vista, são indecidíveis […]; os sistemas de sentido podem apoderar-se desse texto inteiramente plural, mas o seu número nunca é fechado, tendo por medida o infinito da linguagem. (BARTHES, 1999, p. 13, grifo no original)

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As características listadas pelo autor encaixam-se perfeitamente na categoria de hipermídia, “que rompe com a linearidade do discurso verbal e o isolamento entre as linguagens e mídias, para criar uma estrutura de nós e conexões (links) entre linguagens textuais, visuais, sonoras e todas as misturas entre elas” (SANTAELLA, 2019, p. 74). O computador propicia esse sistema em rede ou integrado, mas houve um longo caminho até que isso fosse possível. Passamos das mídias de massa aos gadgets e, finalmente, ao computador, que “assumiu o caráter de mídia interativa”, porque faz o usuário “interagir com aquilo que recebe e de buscar por si próprio a informação e o entretenimento que deseja” (SANTAELLA, 2019, p. 73). Desse modo, todos os usuários podem ser, simultaneamente, consumidores e produtores, alterando a hierarquia, esboçada em forma de pirâmide, e propondo um novo modelo organizacional, que Lucia Santaella chama de “sociedade reticular” (SANTAELLA, 2003, p. 82).

No cibertexto de Olia Lialina, feito com hiperlinks, é necessário que o leitor acione termos-chave, que desdobram e ampliam o texto. Apesar de a net art analisada neste artigo usar conexões internas, na maioria das vezes, há duas ocasiões em que aparecem relações com outros sites. Para ilustrarmos essa diferença, vale ressaltar a distinção defendida por Cynthia Stohl:

As relações uniplex permanecem em um domínio. […]. O termo multiplexidade refere-se à sobreposição de conteúdos, atividades e/ou funções nas relações. […]. A multiplexidade de conteúdo captura o grau em que o conteúdo da comunicação abrange mensagens associadas a mais de um domínio; […]. (STOHL, 1995, p. 83, tradução nossa, grifo no original)

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Mesmo com o fato de as relações uniplex estabelecerem-se em um único meio virtual, os hiperlinks garantem maior autonomia ao leitor e conferem novo ritmo à leitura, que passa a alternar os movimentos de suspensão e desdobramento do conteúdo. Quanto à multiplexidade, Olia Lialina apresenta estes exemplos, dividindo a tela em campos com duas informações distintas, como demonstrado a seguir: “OLIA LIALINA, 1996” e “(MBCBFTW museum)” (LIALINA, 1996, grifo no original). Enquanto o primeiro hiperlink, quando acionado, abre uma caixa do Outlook, incentivando o leitor a se corresponder com a autora, o segundo direciona o usuário para outro site (http://myboyfriendcamebackfromth.ewar.ru/), que apresenta o texto original (My boyfriend came back from the war) e 36 links diferentes, que dão acesso às inúmeras adaptações pelas quais o texto passou, envolvendo expressões artísticas e autores distintos, desde 1996 até 2018. A função desses hiperlinks multiplex é “fornecer ao indivíduo informações mais ricas do que aquelas disponibilizadas de outra forma” (STOHL, 1995, p. 83, tradução nossa). Por outro lado, as associações uniplex acentuam a fragmentação do texto, além de propiciarem trocas sígnicas e incentivarem um percurso de leitura mais livre.

Na próxima publicação da coluna “Há arte em toda parte”, continuaremos discutindo sobre a net art, mas abordando outros temas, como o hipertexto e a interatividade.

REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. S/Z. São Paulo: Edições 70, 1999.
LIALINA, Olia. My Boyfriend Came Back From the War. 1996. Disponível em: <http://www.teleportacia.org/war/war.html>. Acesso em: 26 ago. 2019.
SANTAELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-Humano: Da Cultura das Mídias à Cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
_____. Estética & Semiótica. Curitiba: InterSaberes, 2019.
STOHL, Cynthia.Organizational Communication: Connectedness in Action.Thousand Oaks; London; New Delhi: Sage Publications, 1995.


Este texto apresenta excertos do artigo “Fragmentação e simultaneidade na net art de Olia Lialina”, publicado na revista Scripta Uniandrade, v. 20, n. 3 (2022), p. 1-20.

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