Os Haicais e a Natureza

Levados a observar atentamente os sinais da natureza, em cada estação do ano, os leitores da produção poética de Sigrid Renaux deparam-se com um estilo simples na forma, sintético na ideia, mas profundamente contemplativo no que se relaciona ao conteúdo. Aliás, essas três características resgatam os princípios seguidos na escrita dos haicais − textos brevíssimos, escritos em versos brancos de 5, 7 e 5 sílabas, respectivamente. Segundo Paulo Franchetti: “Foi Guilherme de Almeida quem tornou o haicai conhecido no Brasil, nas décadas de 1930 e 1940” (FRANCHETTI, 2008, p. 261). Dando continuidade à evolução do haicai na literatura brasileira, Franchetti menciona os papéis de Erza Pound e do trio concretista nessa trajetória: “[…] Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, […] a partir de 1955, difundiram no Brasil as ideias de Pound e fize­ram da reflexão sobre o ‘princípio ideogramático de composição’ […]” (FRANCHETTI, 2008, p. 262, grifo no original).

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Posteriormente, outros autores criaram versões muito próprias de haicais, com adaptações que se relacionavam ao estilo literário de cada escritor. Entre eles, destacaram-se Pedro Xisto, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Helena Kolody, Mário Quintana e Dalton Trevisan. Para Paulo Franchetti, a produção leminskiana representou um importante salto qualitativo, “[…] combinando a ênfase na técnica da mon­tagem ideogramática […] com o apelo […] de trazer a poesia para dentro do cotidiano […]” (FRANCHETTI, 2008, p. 266). Já, quanto aos haicais do também curitibano Dalton Trevisan, a estrutura que prevaleceu foi a prosa, mantendo a síntese, mas transitando por temas bastante distintos – líricos, grotescos e até cômicos.

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Após várias décadas, as experiências poéticas que utilizam os haicais como matéria-prima permanecem, sobretudo no século XXI, caracterizado pela síntese e pela rapidez, ambas resultantes do avanço tecnológico nos veículos de comunicação, que privilegiam textos cada vez mais curtos. Alguns, inclusive, enfatizam a imagem em detrimento das palavras, quando não são totalmente imagéticos, o que justifica a proximidade desses gêneros com os haicais. Conforme Paulo Franchetti: “No momento, no Brasil, coexistem e estão ativas as várias ver­tentes do haicai brasileiro: a tradicionalista, a de inspiração zen, a fi­liada a Guilherme de Almeida, a epigramática e a de matriz concre­tista” (FRANCHETTI, 2008, p. 266).

Nesse contexto, a produção poética de Sigrid Renaux contribui para a repercussão e para a evolução dos haicais na literatura brasileira. Segundo a autora, o despojamento desse tipo de texto é uma vantagem e, por esse motivo, as características dele influenciaram fortemente sua produção literária: “Além de  terem me atraído pelo formato simples, os haicais me fazem transmitir com facilidade as ideias que me inspiram” (RENAUX, 2022).

Nos versos da escritora, predomina o uso de árvores e flores como metáforas. Embora às vezes sejam associadas a outros elementos naturais, as plantas dominam a paisagem (Fig. 1).

Figura 1: A natureza na tela de Johann Moritz Rugendas e na capa de um dos livros de Sigrid Renaux. Imagem disponível em: https://www.martinsfontespaulista.com.br/luzes-na-selva-880637/p

Assim, a natureza ganha duplo destaque, porque o eu lírico, além de descrever um cenário natural, utiliza animais e corpos celestes para criar as metáforas: “serpentes ao vento / os ramos dos salgueiros / ondulam nas águas do verão” (RENAUX, 2019, p. 13). Nesse poema − que combina terra, água e ar −, os ramos do salgueiro (Salix) tornam-se serpentes. Adotando o mesmo artifício, nos versos “magnólia luminosa / a lua renasce entre as folhas da noite” (RENAUX, 2011, s. p.),  a magnólia (Magnolia), associada a terra, transforma-se em lua e remete o leitor a uma imagem celeste, justificada pelo contraste da cor branca da flor, em meio às folhas de coloração muito escura. Neste outro exemplo, mais uma vez o eu lírico combina elementos distintos: “atentos ao vento / os sóis e as sombras dos cedros / varrem a terra com seus aromas” (RENAUX, 2011, s. p.). Embora os versos focalizem principalmente os cedros (Cedrela fissilis), a paisagem é apresentada com toda a sua moldura natural, sugerindo o entorno e consolidando as inter-relações necessárias a qualquer tipo de vida.

Nos casos demonstrados anteriormente, a ecomimese dá vazão ao ambiente natural, potencializado a partir da focalização das plantas:

[…] invoco “onde estou” […]. O leitor vislumbra o ambiente e não a pessoa. Mas o efeito é praticamente o mesmo. Ecomimese é um dispositivo de autenticação. A ecomimese fraca opera sempre que a escrita evoca um ambiente. (MORTON, 2009, p. 33, grifo no original, tradução nossa)

A natureza deixa, então, de ser a paisagem circundante para ser o espaço em si, sujeito e protagonista dos versos. Isso caracteriza uma ecomimese forte, já que a flora não é tratada como mero acessório. Nesse sentido, apesar de a literatura não ser uma arte essencialmente imagética, a cena descrita dá destaque não às pessoas, mas às plantas. Nesse processo, os versos elegem um novo eixo, que passa a ser mostrado, detalhado e metaforizado, em prol da concretude: “A ecomimese envolve […] algo material e físico, embora um tanto intangível, como se o próprio espaço tivesse um aspecto material […]” (MORTON, 2009, p. 33, tradução nossa).

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Sem dúvida, esse deslocamento do olhar para o ambiente circundante ganhou mais ênfase com a pandemia de covid-19. Em razão disso, a 19ª edição da FLIP − Festa Literária Internacional de Paraty −, realizada em 2021, associou o novo vírus às discussões sobre o meio ambiente e “[…] outras maneiras de estar no mundo […], sem a centralidade no ‘humano’” (FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY, 2021, grifo no original). Diante disso, o evento propôs:

[…] a colaboração em vez da competição, a capacidade regenerativa, a rede de comunicação estabelecida no ar e na terra entre as raízes das árvores e as hifas dos fungos, as alianças formadas por águas, pedras, plantas, ventos, insetos, pássaros e todos os viventes. (FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY, 2021)

Embora a pandemia de 2020 tenha tornado imperativa a retomada de pensamentos e hábitos cotidianos, tanto na esfera pessoal como no âmbito social, a arte literária de Sigrid Renaux sempre sinalizou essa necessidade de integração e de mudança de perspectiva. Seus poemas são quase todos sem título, evitando, assim, qualquer direcionamento temático ou temporal. Essa estratégia dá ênfase ao kigo, espécie de recurso que tenta estabelecer determinada estação do ano, por meio do que é descrito no poema. Trata-se, portanto, de oferecer ao leitor uma sensação sazonal, relativa às belezas de cada uma das estações. No outono, a atração é o tapete de folhas. No inverno, florescem as cerejeiras. Na primavera, chega a vez dos ipês. E, no verão, brilham as hortênsias. Qual é a sua estação preferida?

Excerto do artigo “Versos florais de Sigrid Renaux”, de Verônica Daniel Kobs, publicado na Revista Cerrados (UnB), v. 31, n. 60, dez. 2022, p. 103-113.

REFERÊNCIAS:

FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PARATY. Nhe’éry, plantas e literatura. Nov. 2021. Disponível em: <https://flip.org.br/2021/principal/nheery-plantas-e-literatura/>. Acesso em: 12 dez. 2021.

FRANCHETTI, Paulo.  O haicai no Brasil. Alea, v. 10, n. 2, p. 256-269, jul.-dez. 2008.

MORTON, Timothy. Ecology Without Nature: Rethinking Environmental Aesthetics. Cambridge: Harvard University Press, 2009.

RENAUX, Sigrid. De sons e silêncios. Ponta Grossa: Toda Palavra, 2011.

_____. Luzes na selva. Curitiba: Appris, 2019.

_____. [Sem título]. Comunicação via e-mail entre Sigrid Renaux e Verônica Daniel Kobs, no período de 11 a 15 fev. 2022.

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