VERTIGEM SURREALISTA

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O movimento surrealista teve seu auge no período de 1922 a 1925 e, em seu Manifesto, trazia a seguinte definição: “Puro automatismo psíquico, através do qual se pretende expressar, verbalmente ou por escrito, o verdadeiro funcionamento do pensamento. O pensamento ditado na ausência de todo o controle exercido pela razão (…).” (Ades, 2000, p. 91). A atmosfera surrealista enfatizava o non sense, o que contrariava por completo a representação mimética. O objeto desse tipo de arte caracterizava-se como um ponto de fuga em relação à representação tradicional, determinada pelo vínculo com o referente real. Admitia-se a figuratividade, mas privilegiavam-se a imaginação e o universo onírico, o que justificava o destaque a junções inusitadas:

 

A imagem surrealista nasce da justaposição fortuita de duas realidades diferentes, e é da centelha gerada por esse encontro que depende a beleza da imagem; quanto mais diferentes forem os dois termos da imagem, mais brilhante será a centelha. (Ades, 2000, p. 92)
 

Na pintura, pode ser ressaltada a arte de Salvador Dalí. Na capa da revista Minotaure número 8, por exemplo, há, em primeiro plano, a figura de um corpo feminino com cabeça de touro. Para enfatizar a artificialidade da figura, a imagem lembra mais um manequim, exposto em uma vitrine, do que uma mulher real. Mas o efeito insólito é causado por diversos elementos (Fig. 1).

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VERTIGEM SURREALISTA
Figura 1: Capa da revista Minotaure (Salvador Dalí, 1936).
Fonte: www.angel-art-house.com

Os elementos aparentemente desconexos evidenciam a montagem e, com ela, o estranhamento. Palavras como “montagem” e “justaposição” demonstram afinidades entre o Surrealismo e o Dadaísmo. André Breton é o principal responsável por essa associação, pois participou das duas vanguardas. Outra coisa que comprova a relação é esta afirmação, de Dawn Ades, que faz referência ao jogo do “cadáver delicioso”, muito usado também no período Dadá: “Faziam jogos infantis, como o ‘cadavre exquis’, em que cada jogador desenha uma cabeça, o corpo ou as pernas, dobrando o papel depois de sua vez, de modo que sua contribuição não possa ser vista.” (Ades, 2000, p. 93).
Descontextualização e fragmentação são pontos de partida para o non sense surrealista, que opta pela figuratividade, mas que, longe de serem verossímeis, ficam restritas ao plano simbólico. Porém, deve-se ressaltar que o Surrealismo utiliza a realidade como parte do processo criativo, mas a desconstrói e a desestrutura, no momento em que agrega vários elementos, sem nenhuma relação direta. Por isso, essa vanguarda liga-se mais ao inconsciente e ao devaneio. A mescla de elementos despersonifica-os, fazendo com que todos eles passem a desempenhar função totalmente distinta daquela que desempenhavam, quando ainda participavam de seu ambiente original (Fig. 2).

VERTIGEM SURREALISTA - A persistência da memória (Salvador Dalí, 1931).
Fonte: www.en.wikipedia.org
Figura 2: A persistência da memória (Salvador Dalí, 1931).
Fonte: www.en.wikipedia.org

Salvador Dalí, na tela reproduzida acima, potencializou os princípios surrealistas. Além de misturar a imensidão atemporal do deserto com a exatidão e a linearidade temporal dos relógios, derretidos, deformados, mas presentes na zona fronteiriça do sonho e da realidade, o artista usou a técnica ilusionista, que permite a inserção de elementos da realidade no espaço onírico. Isso retoma a visão-clichê do oásis no meio do deserto, que torna possível o que é impossível. As telas que se inserem nessa categoria são chamadas “pinturas oníricas”, que, conforme Freud, têm o “‘labor do sonho’, como, por exemplo, a existência de elementos contrários lado a lado, a condensação de dois ou mais objetos ou imagens, o uso de objetos que têm um valor simbólico (…).” (Ades, 2000, pp. 95-6). Tal antagonismo é o elemento responsável pela exacerbação do aspecto surrealista em A persistência da memória.
Outra característica de Dalí é a formação da “imagem paranoica”, que pode ser exemplificada com Retrato de Mae West (Fig. 3).

Figura 3: Retrato de Mae West (Salvador Dalí, 1935).
Fonte: www.artesdoispontos.com
Figura 3: Retrato de Mae West (Salvador Dalí, 1935).
Fonte: www.artesdoispontos.com

Nesse tipo de obra, duas imagens convivem, para demonstrar que uma sugere a outra, pela similaridade de formas:

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Com base num processo claramente paranoico, foi possível obter uma imagem dupla, isto é, a representação de um objeto que, sem a mínima modificação figurativa ou anatômica, seja, ao mesmo tempo, a representação de um outro objeto absolutamente diferente, também despojado de todo tipo de deformação ou anormalidade que qualquer arranjo poderia ocultar. O resultado de uma imagem assim é possível graças à violência de pensamento paranoico, que se serviu, com astúcia e destreza, da quantidade necessária de pretextos, coincidências, etc., aproveitando-se delas para fazer aparecer a segunda imagem; neste caso, ela toma o lugar da ideia obsessiva. (Micheli, 1991, p. 164)

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Diante disso, conclui-se que a projeção do rosto de Mae West sobre uma sala de estar revela a importância da mulher, que assume o papel de imagem “obsessiva”. Por essa razão, cabelo, olhos e nariz assumem o primeiro plano, escondendo o cenário.
Dentre as obras de Salvador Dalí aqui reproduzidas, a que é mais típica da vanguarda surrealista é a capa da revista Minotaure. Portanto, voltemos a ela, para fazer a associação da pintura com a literatura. No poema “Cartão postal”, de Murilo Mendes, o escritor parte de uma paisagem comum, um “jardim público”, mas se detém sobre aspectos bastante peculiares do cenário. O inusitado das imagens deve muito ao uso de metáforas, tanto de metonímias como de sinédoques, como pode ser percebido nos versos: “consciências corando ao sol nos bancos,/ bebês arquivados em carrinhos alemães/ esperam pacientemente o dia em que poderão ler O guarani” (Mendes, 1959, p. 106). O fato de trocar “pessoas” por “consciências” e de fazer referência a “bebês arquivados” possibilita a visualização da paisagem de um modo incomum. Claro que o Surrealismo do texto não é tão intenso quanto o das imagens de um quadro, mas a duplicidade da metáfora propicia a justaposição e a inserção de um cenário circunscrito no limiar de sonho e realidade.
Também chamam atenção os detalhes sobre os elementos e as pessoas que compõem a cena descrita. Contrariando a postura clichê, os bebês do texto “esperam pacientemente o dia em que poderão ler O guarani”. Desestabiliza-se o horizonte de expectativas do leitor, oferecendo-se a ele uma informação inusitada, resultante da vazão dada à imaginação e ao universo onírico, e que se contrapõe àquilo que habitualmente aparece associado aos bebês. O mesmo efeito é causado pela particularização da “almofada de ramagens bordadas”. Esse objeto é ligado ao nome de Dona Cocota Pereira, uma desconhecida que singulariza a descrição do objeto, pois o eu lírico confere importância a elementos que são considerados apenas acessórios, em uma descrição habitual. Some-se a isso a comparação entre o por-do-sol e a imagem da “cabeça daquela menina sardenta” afundando “na almofada de ramagens bordadas”. A comparação se sustenta pela semelhança de tons e forma (o amarelo do sol e o alaranjado dos cabelos da menina/ o arredondado do sol e da cabeça), mas investe na aproximação de elementos recortados de espaços diferentes. Uma paisagem clássica é relacionada a um instante flagrado no cotidiano. A julgar pelo termo “cotidiano”, espera-se algo comum e banal, mas ocorre justamente o contrário. É como se o Surrealismo abrisse outro leque de possibilidades, tiradas da realidade, mas que, por serem incomuns, tangem o mundo da imaginação, emprestando autenticidade e beleza à cena poética. Por essa razão, essa vanguarda é um verdadeiro convite ― à vertigem, ao desvario e à fantasia.

REFERÊNCIAS
ADES, D. Dadá e Surrealismo. In: STANGOS, N. Conceitos de arte moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 81-99.
MENDES, M. Poesias — 1925/1955. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959.
MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 1991.


Excerto do artigo “Dadaísmo e Surrealismo: zonas fronteiriças da relação interartes”, publicado na revista Todas as musas, ano 1, n. 2, jan.-jul. 2010.

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