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SOBRE PASSADO, PRESENTE E FUTURO:A ESCRITA LITERÁRIA E O PODER DAS MULHERES

Anúncio Verônica Daniel Kobs Todo ano é a mesma coisa e, em março, o Dia Internacional da Mulher

SOBRE PASSADO, PRESENTE E FUTURO:A ESCRITA LITERÁRIA E O PODER DAS MULHERES
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Verônica Daniel Kobs

Todo ano é a mesma coisa e, em março, o Dia Internacional da Mulher reacende
debates. No entanto, as mudanças na forma de abordar os temas relacionados a essa data
não cessam. Já faz tempo que se convencionou que a cor rosa não representa mais as
mulheres e incentiva o binarismo. Porém, este ano, percebi uma nova tendência de que
discordo totalmente. Muitas pessoas estão defendendo que o Dia Internacional da
Mulher não deve ser comemorado.
Como assim? Devemos comemorar todas as conquistas que marcam a diferença
entre o presente e o passado — quando as mulheres não podiam estudar, nem votar, nem
se divorciar, nem ter um espaço que fosse apenas seu, nem construir uma carreira…
Diante disso, resolvi resgatar a poesia de Adélia Prado (Fig. 1), que, com talento e
resiliência, faz eco a outras mulheres que, em épocas distintas, também lutaram para
terem suas vozes ouvidas, e a arte é um dos meios de garantir isso.

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SOBRE PASSADO, PRESENTE E FUTURO:A ESCRITA LITERÁRIA E O PODER DAS MULHERES
 Figura 1: Adélia Prado (1935-). Crédito da imagem: https://www.youtube.com/watch?v=aGT4PCN5ZNc

A literatura escrita por mulheres garantiu não só direito de expressão às escritoras, mas também o direito à criação intelectual e artística. De criaturas elas passaram a ser criadoras. As mulheres sempre foram personagens de romances e estudos diversos, mas trilharam um caminho longo, enfrentando o preconceito, ainda hoje presente na sociedade. Prova disso é o fato lembrado por Marcelo Spalding, em seu artigo “A literatura feminina de Adélia Prado”: a escritora Amélia de Freitas Beviláqua, candidata a uma cadeira na ABL, em 1930, teria sido recusada “com a justificativa de que no estatuto constava que a Academia era apenas para os brasileiros, não para as brasileiras” (Spalding, 2016). O autor cita também escritoras de renome na literatura brasileira e que foram deixadas de lado pela instituição, como, por exemplo, Cecília Meireles e Clarice Lispector. Outro fator que exemplifica o preconceito que, mesmo hoje, no século XXI, acompanha a produção artística de mulheres é o adjetivo “feminina”, que rotula a literatura produzida por escritoras, “enquanto um livro como Memórias de minhas putas tristes, de autor masculino, narrador masculino e conflito masculino é tido por literatura, sem o adjetivo ‘masculina’” (Spalding, 2016).  

Igualmente interessante para demonstrar o preconceito foi a resposta que Adélia Prado recebeu, depois de enviar um de seus poemas ao Pasquim. O periódico respondeu publicando que ela escrevia “parecendo lavadeira nanica que perdeu o sabão na beira do rio” (Franceschi, 2000, p. 72). Adélia, porém, não deixou por menos e escreveu o texto “Pasquilixo”, publicado com a ajuda de um amigo.   

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Norma Telles, em estudo sobre as escritoras brasileiras do século XIX, relaciona expressão, inconstância e liberdade, levando em conta essa resistência que existe em relação à literatura feita por mulheres. “A inconstância é força criativa, na medida em que significa a recusa, por parte da mulher, em se deixar fixar ou silenciar e significa sua insistência numa maneira própria de ser” (Telles, 1999, p. 328-329, grifo no original). Esse processo revela-se complexo, pelo fato de a mulher ter sido “gendrada” (Lauretis, 1994, p. 211), ou seja, forçada a perpetuar os estereótipos criados pelo patriarcalismo, para definir e diferenciar masculino e feminino. Assim, para representar seu papel convenientemente (sob a ótica patriarcal, claro), teve de reprimir atitudes e pensamentos. Porém, ao decidir criar, passando de criatura a criadora, ela teve de resgatar o que deixou à margem, tentando encontrar-se ou descobrir como era de fato, para, dessa forma, reagir às expectativas da sociedade patriarcal em relação ao seu comportamento, sobretudo no que dizia respeito ao casamento e aos filhos. A autora sistematiza esse percurso, imposto à mulher, pela atividade artística, da seguinte maneira: 

Sendo assim, quando se contempla no espelho ela enxerga as sombras que foram sobre si projetadas, imagens que a apagaram, pois escondem sua possibilidade de ser. […] antes de atingir autonomia, ela deve repassar e repensar as imagens do espelho, isto é, as “máscaras míticas” que lhe foram colocadas. Isto quer dizer que a mulher para poder escrever terá que matar, como disse Virginia Woolf, o anjo do lar, os ideais femininos estéticos que a deixaram fora da arte.

(Telles, 1999, p. 327, grifo no original)

A escritora Adélia Prado aceitou o desafio da desconstrução do que lhe foi dado/imposto, fazendo de sua arte um espaço de resposta ao sistema. Claro que essa reação não é feita em tom panfletário. É mais correto dizer que o eu lírico criado pela autora refrata, nos poemas, a duplicidade ou a inconstância feminina, delineando, simultaneamente, o aspecto que segue a convenção e aquele que reage a ela:

[…] Adélia Prado parecia ultrapassada porque aparentava dar um passo atrás na luta das mulheres por seu próprio discurso e espaço. Por outro lado, o machismo, sempre presente nos processos culturais vigentes em nosso país, desgostava desse mesmo discurso pelo excesso de sacristia que parecia nele interferir.

(Franceschi, 2000, p. 73, grifo no original)

Com essas palavras, Antonio Hohlfeldt dimensiona a repercussão da literatura da escritora mineira no discurso hegemônico, o masculino. Além disso, reforça-se a posição dual da mulher, como se essa estivesse na fronteira do que deve ser e do que é realmente. Um dos mais famosos poemas de Adélia Prado, “Com licença poética”, feito a partir de “Poema de sete faces”, de Carlos Drummond de Andrade, traz o verso “Mulher é desdobrável. Eu sou” (Prado, 1991, p. 11). Nesse fragmento, a autora aponta para a multiplicidade de papéis, que, aqui, representa a extrema versatilidade feminina, também imposta pela sociedade. Afirmações como as encontradas nos versos acima dão respaldo para que a escritora apresente e discuta o feminino ligado a seus papéis “convencionais”. Parte da crítica considera isso um antifeminismo. Porém, há que se considerar o fato de a autora promover uma espécie de deslindamento (tanto de assuntos considerados tabus quanto daqueles assumidos e perpetuados pelas mulheres), evidenciando um ponto de equilíbrio e, consequentemente, situando a produção poética da autora em uma zona limítrofe, entre o feminino e o feminismo (Fig. 2).

SOBRE PASSADO, PRESENTE E FUTURO:A ESCRITA LITERÁRIA E O PODER DAS MULHERES
Figura 2: Símbolo do poder feminino. Crédito da imagem: americanas.com

Moral da história: a desconstrução dos estereótipos de gênero inverte as qualidades que a sociedade patriarcal associa ao feminino e ao masculino. Essa posição “inconstante”, volúvel e, aparentemente, contraditória da mulher, em sua produção artística, é inevitável, para Elaine Showalter, que considera a escrita das mulheres “um ‘discurso de duas vozes’, que personifica sempre as heranças social, literária e cultural tanto do silenciado quanto do dominante” (Showalter, 1994, p. 50, grifo no original). Não é possível apagar o passado, mas o presente serve para corrigir os erros e requisitar um futuro diferente. Escrita é poder e é preciso continuar gritando! 

Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.

Quando não pude mais fiquei rígida,

as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,

eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,

as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.

Desde então faço milagres. (Prado, 1991, p. 97)

Então, ano após ano, eu comemoro o que as mulheres que vieram antes de mim fizeram, para tentar mudar a vida que tinham. Por causa delas, sou quem sou hoje, e serei ainda mais empoderada amanhã. E você?

REFERÊNCIAS 

FRANCESCHI, A. F. de. (Org.). Cadernos de literatura brasileira n. 9. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000.

LAURETIS, T. de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, H. B. de. (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 211-234.

PRADO, A. Poesia reunida. São Paulo: Siciliano, 1991. 

SHOWALTER, E. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, H. B. de. (Org.). Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 32-54.

SPALDING, M. A literatura feminina de Adélia Prado.  Disponível em: <http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=1968>. Acesso em: 08 dez. 2016. 

TELLES, N. A mulher e a literatura. In: AUAD, S. V. (Org.). Mulher: Cinco séculos de desenvolvimento na América — Capítulo Brasil. Belo Horizonte: O Lutador, 1999. p. 325-331.

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Atualização de um excerto do artigo “Revisão dos estereótipos do gênero feminino nos

textos de Adélia Prado”, escrito por Verônica Daniel Kobs e publicado na revista Todas as letras v. 18, n. 3, set./dez. 2016.

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