O metal-ópera do Sepultura
Na edição de 2022 do Rock in Rio, a banda Sepultura dividiu o palco com a Orquestra Sinfônica Brasileira e, em vez do longo solo de guitarra, o público foi presenteado com uma percussão de triângulo e tambores. A surpresa foi proposital, para acentuar a diferença, usando uma sonoridade totalmente oposta ao peso do metal.
No show, predominou o gênero que batizei de metal-ópera (Figs. 1 e 2), com “canções que uniam os dois mundos: ‘Riot at the Rite’, de Igor Stravinsky, e a clássica ‘Roots Bloody Roots’, um dos principais hinos do Sepultura” (AIEX, 2022). Em resumo, foi “um êxtase completo, com direito até a violinista arrebentar a corda de seu arco” (BRASIL, 2022).
O caráter híbrido gerou um estilo peculiar, no qual a “música letrada […] adiciona um elemento figurativo junto à abstração do som” (ANDRÉS, 2016). Diante disso, banda e orquestra reencenaram, no palco, a diversidade que caracteriza nossa sociedade.
Conforme Stefan Sonvilla-Weis, o remix, naturalmente híbrido, compõe a “mashup culture”, relacionando-se a colagens e montagens, para criar uma nova obra, a partir da “alteração” e da “re-combinação” (SONVILLA-WEIS, 2010, p. 9, tradução nossa). No Brasil, um exemplo claro desse processo é a ópera-rock Doze flores amarelas (2018), dos Titãs. Aliás, essa banda, em 2020, durante a pandemia de covid-19, fez uma parceria com músicos do Instituto Anelo. Nessa ocasião, “Flores”, “Comida” e “Epitáfio” ganharam novas roupagens. O mesmo ocorreu com a música “Enquanto houver sol”, que trouxe o protagonimso de instrumentos de sopro − flauta e saxofone. A hibridização correspondeu à proposta da live, já que o espetáculo privilegiou o formato acústico. Um ano depois, em julho de 2021, os Titãs repetiram a parceria com a música clássica, apresentando-se com a Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo.
A partir desses exemplos anteriores da hibridização, é necessário fazer outras conexões, com conceitos que justificam a ideia de um metal-ópera. Aliás, é preciso esclarecer que, nesse novo termo, ópera e orquestra associam-se metonimicamente, já que a orquestra faz parte da complexa estrutura da ópera. Além disso, os instrumentos que compõem uma orquestra realçam seu caráter plural – que também caracteriza a ópera.
Potencializando a multiplicidade, todos os elementos se entrecortam, complementando-se. Isso vai ao encontro do fato de que: “[…] em matéria de temporalidade, o tempo não é mais inteiro, mas indefinidamente fracionado em quantos instantes, instantaneidades, quanto permitem as técnicas de comunicação e de telecomunicação” (VIRILIO, 1999, p. 57).
A mesma posição aparece na obra de Italo Calvino, que definiu o século XXI como a “época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda a comunicação a uma crosta uniforme e homogênea” (CALVINO, 1998, p. 58). Levando em conta que o formato da ópera é naturalmente híbrido, percebe-se que esse gênero, aqui representado pela fusão do heavy metal com a orquestra, é bastante adequado. O múltiplo nos define de forma intensa, segundo Calvino:
Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior. A descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (CALVINO, 1998, p. 138, grifo no original)
No que diz respeito à intertextualidade, o híbrido também ganha relevância, afinal: “O texto é sempre, sob modalidades várias, um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros textos, outras vozes e outras consciências” (SILVA, 2011, p. 625). De acordo com Mikhail Bakhtin, na literatura, principalmente o romance admite “na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros)” (BAKHTIN, 2014, p. 124). Esse conceito foi desenvolvido posteriormente por Julia Kristeva, que o tratou como “cruzamento de superfícies textuais” ou “diálogo de diversas escrituras” (KRISTEVA, 2005, p. 66, grifo no original). Continuando esse percurso evolutivo, o híbrido tornou-se inerente ao ciberespaço, assinalando a “interdependência dos elementos dentro de um ambiente em constante fluxo” (SANTAELLA, 2006).
Sob outro viés, que focaliza a intermidialidade, vale ressaltar o processo de remidiação: “O que há de novo nas novas mídias vem das formas específicas em que elas remodelam as mídias mais antigas e as maneiras pelas quais as mídias mais antigas se remodelam para responder aos desafios das novas mídias” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 15, tradução nossa). Dessa forma, a fusão proposta pela banda Sepultura ampliou os alcances – tanto do heavy metal quanto da orquestra.
Outro conceito pertinente à nova proposta do Sepultura é o crossover, vinculado a obras que “[…] frequentemente transgridem ou transcendem limites genéricos […]. A hibridização […] caracteriza grande parte da ficção crossover contemporânea” (BECKETT, 2010, p. 67, tradução nossa).
De fato, ao se apresentar com a Orquestra Sinfônica Brasileira, o Sepultura diversificou o perfil do público, afinal o crossover não obedece a limitações. Esse gênero independe de época, estilo ou filiação artística. As únicas características que ele de fato exige são criatividade e repertório cultural, por parte do autor e do público; e uma disposição incessante ao diálogo.
Nesse panorama conceitual, que celebra a hibridização, pode-se compreender a reação extremamente positiva − dos fãs e da crítica. Com esse show, no palco Mundo, o Sepultura resgatou o poder das combinações inesperadas.
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REFERÊNCIAS
AIEX, T. Sepultura ressignifica o metal com a Orquestra Sinfônica Brasileira em show no Rock in Rio. 2 set. 2022. Disponível em: <https://www.tenhomaisdiscosqueamigos.com/2022/09/02/resenha-sepultura-orquestra-sinfonica-rock-in-rio/>. Acesso em: 4 set. 2022.
ANDRÉS, P. O abstrato e o figurativo na música. 10 jul. 2016. Disponível em: https://pt.slideshare.net/pauloandres54/o-abstrato-e-o-figurativo-na-msica. Acesso em: 5 out. 2018.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 2014.
BECKETT, S. Crossover fiction: creating readers with stories that adress the big questions. In: TEIXEIRA, A. J. et al. Formar leitores para ler o mundo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. p. 65-76.
BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT, 2000.
BRASIL, U. Rock in Rio: Sepultura faz história em show com Orquestra Sinfônica Brasileira. 2 set. 2022. Disponível em: <https://www.terra.com.br/diversao/musica/rock-in-rio/rock-in-rio-sepultura-faz-historia-em-show-com-orquestra-sinfonica-brasileira,e89df708fbc34c00fdcea1be1b0b3b9fdr3mzovk.html>. Acesso em: 4 set. 2022.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005.
SANTAELLA, L. A poesia concreta como precursora da ciberpoesia. Out. 2006.Disponível em: <http://issuu.com/mimacarfer/docs/outubro>. Acesso em: 28 abr. 2015.
SONVILLA-WEISS, S. Introduction: mashups, remix, practices and the recombination of existing digital content. In: SONVILLA-WEISS, S. (Ed.). Mashup cultures. New York: Springer, 2010. p. 8-23.
SILVA, V. M. de. A. e. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2011.
VIRILIO, P. O resto do tempo. Famecos, Porto Alegre, n. 10, p. 57-61, jun. 1999.
Texto publicado originalmente no Blog Interartes: Artes & Mídias, em outubro de 2022.