Multiespaço e alteridade na série Sense8
Atenção: O texto contém spoilers.
A série Sense8 leva a marca Wachowskis, que se tornou bastante conhecida com os filmes da trilogia Matrix, e conta com a colaboração de J. Michael Straczynski, que domina a linguagem visual das HQs (área, aliás, também conhecida pelas irmãs Wachowskis). Com duas temporadas, a atração, da Netflix, abrange 24 episódios. A história traz 8 protagonistas, cada qual em uma cidade diferente do globo (Fig. 1): Will, em Chicago; Nomi, em São Francisco; Riley, em Londres; Wolfgang, em Berlim; Sun, em Seul; Lito, na Cidade do México; Capheus, em Nairóbi; e Kala, em Mumbai. Seguindo o mesmo padrão de GOT (Game of Thrones), as gravações de Sense8 não privilegiam os estúdios. Por isso, as locações envolveram vários espaços. Evidentemente, os episódios da série (gravados em partes) mostram as 8 cidades dos personagens principais. Porém, o multiespaço de Sense8 vai além, trazendo cenas gravadas ao ar livre em Reykjavik (Islândia) e em São Paulo (Brasil).
No Brasil, a série ganhou uma comunidade de 1.732.636 seguidores (FACEBOOK, 2019). Aqui e no resto do mundo, Sense8 tornou-se um referencial na produção televisiva, por diversos fatores. A abrangência do cenário natural de diversas cidades exigiu que elenco, diretores e equipe de produção se deslocassem constantemente. No especial de 25 minutos intitulado Sense8: criação do mundo, disponível na Netflix, a atriz Daryl Hannah faz menção ao elenco internacional e à perspectiva global da série (NETFLIX, 2019a). Aliás, é importante destacar que essa globalidade não atinge apenas o espaço físico, mas também a temática central da história, que discute identidade e alteridade, com base no conceito de diversidade, em seu sentido mais amplo. O diretor James McTeigue também cita a importância que a série deu aos atores e aos técnicos locais, em cada cidade e país em que foram gravadas as duas temporadas (NETFLIX, 2019a).
No que diz respeito ao método de gravação e à edição, predominam os cortes, resultantes da troca frequente de personagens (e de espaços, consequentemente), para a composição de uma mesma cena (NETFLIX, 2019a). Nesse processo, a ação coreografada, com ênfase ao gestual e à postura dos atores, era determinante para a construção da cena, devido às necessidades do corte e da perfeita continuidade. Os editores da série explicam essa complexidade revelando que uma mesma cena era gravada ou repetida, em cidades diferentes, e depois integrada (NETFLIX, 2019a).
No enredo, os sensates se opõem aos sapiens, pelo fato de apresentarem uma capacidade peculiar: eles podem transferir duas habilidades para outras pessoas, sem que precisem se deslocar. Dessa forma, a transição se faz por meio da mente e do espírito. Cada qual com seu talento, os sensates, unidos, conseguem superar qualquer obstáculo. Como exemplos, podem ser citadas as seguintes qualidades: os conhecimentos farmacêuticos de Kala, a direção exímia e defensiva de Capheus, ou a surpreendente desenvoltura de Sun em lutas. O ator Brian Smith, que faz o papel do policial Will, resume a capacidade dos 8 protagonistas da série desta forma: “Consigo absorver sua experiência e entender quem você é. Essa é a expressão legítima do que é ser um Sensate” (NETFLIX, 2019b). Nesse aspecto, a história inverte a realidade, pois, a rigor, a experiência tem um caráter inegavelmente “particular, subjetivo, relativo, contingente e pessoal […] o acontecimento é comum, mas a experiência é […] singular e de alguma maneira impossível de ser repetida” (LARROSA, 2002, p.27). Por essa razão, os veículos especializados em produção televisiva frequentemente classificam Sense8 como ficção científica.
Entretanto, tal categoria é inadequada para caracterizar a série, que começa e termina em um cenário absolutamente real, sem aeronaves de última geração, alienígenas ou outros elementos comumente associados ao espaço sideral. Sendo assim, Sense8 consolida-se como um drama, mas com recursos de ficção científica, quando os personagens rompem as barreiras de tempo e espaço. Nesse instante, as habilidades físicas e os sentimentos de um personagem são conhecidos e percebidos por outro protagonista. Sem dúvida, esse tipo específico de relacionamento sai do plano metafórico de alguém tentar se colocar no lugar do outro e se realiza literalmente, em um pleno exercício de alteridade, empatia e tolerância.
Essa convivência compartilhada, embora seja apenas etérea, concretiza-se fisicamente para o espectador, que vê os 8 protagonistas juntos, em cena (Fig. 2 e Fig. 3). Para alguns, isso pode parecer confuso ou paradoxal, mas a série televisiva, assim como outras artes predominantes visuais, precisa mostrar a maioria das coisas. Desse modo, uma vez que o público já foi informado sobre os dons de cada sensate, a equipe técnica escolheu a representação dos personagens de modo realista, em detrimento de ectoplasmas e seres evanescentes.
O compartilhamento entre os sensates permite a ampliação da experiência, cruzando as fronteiras interpessoal e entre gêneros. Nesse aspecto, o sujeito deixa de ter uma identidade individual. Consequentemente, os personagens da série não obedecem aos padrões estabelecidos pela sociedade tradicional, que, conforme Witting, entende o sexo como uma
Portanto, ao desrespeitar o sistema binário dos gêneros, Sense8 propõe outro tipo de estrutura, sem limitações ou combinações certeiras e estanques. Evidentemente, essa nova perspectiva é mais adequada à política atual, pela diversidade e contra o preconceito:
Quando o status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o próprio gênero se torna um artifício flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino como um masculino, e mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um feminino. (BUTLER, 2003, p. 24, grifo no original)
Nos 24 episódios, o compartilhamento entre gêneros distintos é frequente. Para citarmos alguns exemplos, há cenas em que Sun, especialista em luta, tem seu corpo e suas sensações completamente percebidas por Lito, um ator. O resultado é que ele passa a sentir a ação dos hormônios durante o período menstrual. Com menos profundidade, porque envolve um compartilhamento estritamente físico e corpóreo, em outros momentos Sun substitui Capheus. Assim, nas cenas de briga, o espectador assiste aos combates, acompanhando, inicialmente, a coreografia e a performance do homem, que dá lugar à imagem da mulher.
Além desses exemplos, é importante ressaltar os diferentes relacionamentos que envolvem os personagens da trama: a) Lito namora Hernando e, posteriormente, o casal passa a dividir o apartamento com Dani, mulher e heterossexual; b) Nomi, uma expert em computadores, mora com Amanita; e ainda há o triângulo amoroso formado por Kala, seu marido Rajan e seu amante Wolfgang (no início, o caso é extraconjugal e por isso é mantido em segredo, mas, ao final, o triângulo torna-se oficial, com total aprovação de todos os envolvidos).
Com certeza, no que se refere às questões sexuais e de gênero, a série dá espaço para as discussões necessárias hoje, não apenas relacionadas ao público LGBT, mas à sociedade em geral. Dessa forma, alguns protagonistas ajudam a tirar da sombra as minorias, ainda mais se considerarmos a questão do local de fala. Essa abertura pode refletir, em certa medida, as experiências vividas pelas irmãs Wachowskis, idealizadoras de Sense8. Conforme o jornal O Globo, que, em 2016 publicou o texto intitulado Transgêneros: irmãos Wachowski agora são irmãs Wachowski, Andy, que agora é conhecido como Lilly Wachowski, revelou “ser transexual após jornal inglês ameaçar levar história a público” (O GLOBO, 2019).
Com a diversidade em pauta, Sense8 acentua a troca, a convivência e a diferença acima de tudo. Entretanto, o diferente, na série, não é motivo de exclusão, mas de complementaridade. Por essa razão, o grupo de sensates triunfa, ressoando em uníssono. Em outras palavras, respeitar a diferença significa “deixar que o outro seja como eu não sou, deixar que ele seja esse outro que não pode ser eu, que eu não posso ser, que não pode ser um (outro) eu; significa deixar que o outro seja diferente […]” (SILVA, 2000, p. 9). De acordo com o mesmo autor, e com tantos outros da área dos Estudos Culturais e de Gêneros, essa questão diz respeito ao caráter relacional da identidade, que só se estabelece diante das diferenças. “É esse diferenciar-se de si mesmo que está no centro do processo de produção do novo. Sem diferenciação, não existe criação” (SILVA, 2004, p. 20).
Em nossa sociedade, esse novo olhar já existe, mas encontra-se, ainda, em estágio embrionário. É preciso mais abrangência e aderência, para que as relações de alteridade sejam de fato ampliadas e reconfiguradas. Nesse intuito, o episódio final de Sense8, sob o título Amor vincit omnia (O amor vence tudo), reforça essa necessidade:
REFERÊNCIAS
BUTLER, J. Problemas de gênero:Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
FACEBOOK. Sense8. Disponível em: <https://www.facebook.com/Sense8NoBrasil/>. Acesso em: 8 ago. 2019.
LARROSA. J. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, Rio de Janeiro, jan.-abr. 2002, p. 20-28.
NETFLIX. Sense 8: Criação do mundo. Disponível em:
<https://www.netflix.com/watch/80062064?trackId=13752289&tctx=0%2C1%2Ca39e4d251efe7d2a1dd6238b5cee3e163cd9d30d%3A73c2e2199c535fb8e6bb2dbbe84ad4274e3536f6%2C%2C>. Acesso em: 8 ago. 2019a.
_____. Final de Sense8: Esse laço latente. Disponível em: <https://www.netflix.com/title/80025744>. Acesso em: 8 ago. 2019b.
O GLOBO. Transgêneros: Irmãos Wachowski agora são irmãs Wachowski. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/transgeneros-irmaos-wachowski-agora-sao-irmas-wachowski-18834078>. Acesso em: 11 ago. 2019.
SENSE8. Direção: Lilly Wachowski, Lana Wachowski e J. Michael Straczynski. EUA, 2015-2018. Lilly Wachowski, Lana Wachowski e J. Michael Straczynski; Netflix (2 temporadas).
SILVA, T. T. da. A filosofia de Deleuze e o currículo. Goiânia: Núcleo Editoria FAV/UFG, 2004.
_____. A produção social da identidade e da diferença. In: _____ (Org.). Identidade e diferença: A perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 73-102.