Contos de fado e de violência

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Em 2016, sob a direção de Matteo Garrone, foi lançado o filme O conto dos contos, baseado na obra de Giambattista Basile (1566-1638). Nas palavras do diretor:

O texto original, que é uma das maiores obras-primas da literatura italiana, foi escrito em 1600. Como tal, essa era uma época muito sombria, violenta. […]. E são histórias baseadas em arquétipos, que falam de sentimentos retratados ao extremo e tratam de temas que são atuais até hoje. Então, pra mim, adaptar os Contos de Basile surgiu como um modo de explorar temas contemporaneamente interessantes pra mim. (TORRES, 2016)

A escolha do texto literário que serviu de base ao longa reflete uma das principais características da sociedade contemporânea, na qual a violência “surge como resultado […] de exclusão, marcando a falta de negociação entre os locais” (SILVA, 2008). Desse modo, o filme de Garrone coincide com o tema de outros lançamentos deste início do século XXI. Um exemplo bastante específico e também com gosto de retomada é a reedição dos contos de Wilhelm e Jacob Grimm pela editora Cosac Naify, em 2012. O ponto comum entre os textos das literaturas alemã e italiana (incluindo, aqui, a adaptação fílmica O conto dos contos) é a violência. Vale lembrar que, no conto Sol, Lua e Tália, de Basile, a rainha faz o rei acreditar que ele devorou os próprios filhos, nas iguarias servidas durante um jantar. Utilizando da mesma violência, os irmãos Grimm fazem as irmãs de Cinderela mutilarem os pés, para tentarem calçar o sapato que lhes garantiria um casamento rico e talvez feliz com o príncipe. No fim da história, ambas as irmãs de Cinderela têm os olhos furados por pombas. “Esses contos são um desfile de perversidades: crianças famintas, mutilações variadas, torturas e execuções elaboradíssimas” (TEIXEIRA, 2012, p. 122-123).

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Auxiliado pelo teor imagético, o filme de Matteo Garrone faz uso do contraste e do close up para realçar a violência dos contos de Basile. A partir desses recursos, estabelece-se o exagero, que, além de representar a predominância da violência física e psicológica na sociedade atual, tem o objetivo de impactar a plateia, conforme depoimento do diretor: “Nós quisemos fazer uma homenagem às origens do cinema, ao cinema mudo… Aos filmes que trabalhavam a imagem, como fosse possível, para causar espanto no público” (TORRES, 2016). O apelo visual do filme pode ser exemplificado com esta cena:

 

Contos de fado e de violência 1

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Contos de fado e de violência 1

 

Indo além da construção do apelo imagético das cenas, o filme representa a violência de vários modos, nas três mini-histórias que o compõem. Na primeira delas, são emblemáticos os desejos do rei e da rainha. Ela tem o desejo desmedido de ser mãe. Ele quer realizar o sonho da mulher e se sacrifica por isso. Na cena mostrada a seguir, percebe-se a indiferença da rainha pela morte do marido, afinal, apesar da tragédia, o coração do monstro (necessário para o feitiço que a faria engravidar) foi obtido.

 

Contos de fado e de violência 2

Contos de fado e de violência 2

 

De certa forma, a atitude egoísta da mulher reforça uma das constatações de Bauman, em Modernidade líquida, pois o autor enfatiza a predominância do interesse individual: “[…] todas as comunidades são postuladas mais projetos que realidades, alguma coisa que vem depois e não antes da escolha individual” (BAUMAN, 2001, p. 194, ênfase no original).

Na segunda história, também existe um desejo extremo e a violência surge no preconceito, na exclusão e na busca incansável pela beleza. Duas irmãs viviam reclusas, por causa de sua má aparência, até que uma delas, após se tornar bela, por meio de um feitiço, casa-se com um cobiçado rei. No dia do casamento, a irmã “feia” e “pobre” é convidada e, durante a festa, a irmã “bonita” e “rica” se revela em todo o seu esplendor. Entretanto, ela esconde a parte relativa ao feitiço e diz à irmã que sua beleza nasceu de sucessivos processos de esfoliação, para tirar a pele velha e enrugada. Após falar com sua bela irmã, a outra decide que precisa tirar sua pele, para também tornar-se bonita e desejável. Com esse propósito, ela procura um barbeiro, que se nega a ajudá-la. Porém, um serralheiro atende ao pedido e, no meio da floresta, tira a pele da mulher, que volta ao povoado em carne viva, pingando sangue, mas feliz, pois ela acredita que logo sua beleza irá surgir, como em um passe de mágica.

 

Contos de fado e de violência 3

Contos de fado e de violência 3

 

Esse contexto encontra correspondência na preocupação do sujeito contemporâneo com o corpo, a boa forma e a beleza. De acordo com Chiara Palmerini, o predomínio da hipocondria no mundo atual está intrinsecamente relacionado ao culto ao corpo e à saúde perfeita. A partir dessa associação, a autora propõe o uso do termo “cybercondria” (PALMERINI, 2014). De acordo com a jornalista e filósofa, esses traços culturais fazem com que, em algumas pessoas, qualquer desvio ao padrão seja considerado um sinal de doença ou disfunção.

Finalmente, na terceira história, a violência marca a trajetória de uma princesa, dada em casamento a um ogro, pelo próprio pai. O rei organizou um concurso e propôs um desafio que ele considerava impossível de ser cumprido. Porém, o ogro foi o vencedor e a princesa foi obrigada a se casar, pela honra do rei, que tinha empenhado sua palavra. Embora a princesa tenha sofrido por um tempo, enquanto vivia em uma caverna, com seu marido, ela conseguiu retomar o comando de sua vida, após decapitar o ogro e levar a cabeça dele em um saco, como um presente para seu pai. A atitude da moça redefine o perfil da princesa, que, nos contos tradicionais, tinha a passividade enfatizada. Exatamente por isso, a escolha da princesa, em O conto dos contos, associa a violência à necessidade de reconhecimento, em consonância com o que Glauber Rocha menciona em Estética da fome: “[…] o comportamento exato de um faminto é a violência” (ROCHA, 2008); “[…] uma estética da violência antes de ser primitiva é revolucionária” (ROCHA, 2008).

 

Contos de fado e de violência 4

Contos de fado e de violência 4

 

Além disso, a terceira história traz à tona a questão do empoderamento, muito discutida hoje em dia. A princesa finalmente passa por vários estágios, respectivamente: “power within”, “power over” e “power to” (MOSEDALE, 2016), demonstrando que “empowerment is an ongoing process rather than a product” (MOSEDALE, 2016). Por meio de autoconfiança e autoestima, a personagem se sobrepõe à vontade do marido e à ordem do pai, para finalmente conquistar o poder necessário para reassumir sua vida e traçar seu próprio destino. “People are empowered, or disempowered, relative to others or, importantly, relative to themselves at a previous time” (MOSEDALE, 2016). Depois de ter sido “desempoderada”, a princesa decide matar o marido, voltar para seu reino, confrontar o pai e assumir o trono.

Fim.

 

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
O CONTO dos contos. Direção de Matteo Garrone. Itália, França e Reino Unido: Archimède; Mares Filmes, 2016. 1 DVD (134 min); son.
MOSEDALE, S. Policy arena. Assessing women’s empowerment: Towards a conceptual framework. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/261727075_Mosedale_Assessing_women’s_empower
ment>. Acesso em: 10 out. 2016.
PALMERINI, C. Doentes imaginários. Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/vivermente/artigos/doentes_imaginarios_imprimir.html>. Acesso em: 26 set. 2014.
ROCHA, G. Uma estética da fome. Disponível em:
<http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_gg_cinenovo.php>. Acesso em: 24 mai. 2008.
SILVA, M. G. da. Literatura e cinema: do sertão à favela. Disponível em:
<http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/marianagesteira.html>.  Acesso em: 10  mai. 2008.
TEIXEIRA, J. Maravilhas brutas. Veja, 17 out. 2012, p. 120-123.
TORRES, R. Exclusivo: Matteo Garrone comenta o universo fantástico e violento de O conto dos contos. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-121471/>. Acesso em: 23 mai. 2016.

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