Trapo: Metaficção e estrutura narrativa

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             Metaficção e metalinguagem são termos similares. A única diferença é o universo em que atuam. Roman Jakobson refere-se a dois níveis de linguagem: “[…] a linguagem-objeto, que fala de objetos, e a ‘metalinguagem’, que fala da linguagem” (JAKOBSON, 1977, p. 127, grifo no original). Jakobson detém-se sobre esse assunto, quando focaliza o código como centro da função metalinguística da linguagem, que é identificada “sempre que o remetente e/ou o destinatário têm necessidade de verificar se estão usando o mesmo código” (JAKOBSON, 1977, p. 127). Além disso, o autor considera a metalinguagem como elemento indispensável para o processo de aprendizagem das línguas. A maioria dos verbetes dos dicionários de termos literários é baseada justamente nessas afirmações de Jakobson, como comprova o fragmento transcrito a seguir: “Metalanguage is any use of language about language, as for instance in glosses, definitions or arguments about the usage or meaning of words. Linguistics sometimes describes itself as a metalanguage because it is a language about language […]” (BALDICK, 1992, p. 133).
            Da mesma forma, metaficção pode ser definida como ficção sobre ficção ou, ainda, como um tipo de ficção que prima pelo desvendamento do processo narrativo. Linda Hutcheon (1991) considera a metaficção uma manifestação de pós-modernismo. Um paralelo interessantíssimo entre literatura e arquitetura permite apontar uma das diferenças entre modernismo e pós-modernismo, ligada ao desvendamento do processo narrativo que a metaficção provoca. Uma casa moderna inova nas formas e nas cores, principalmente. Já uma casa no melhor estilo pós-moderno é identificada pela peculiaridade dos materiais usados em sua construção. Estão em voga as telas e, sobretudo, o vidro. Assim, comparando uma casa de vidro à técnica metaficcional, pode-se perceber que a finalidade de ambas é a mesma: a transparência, que permite expor o que acontece nos bastidores.
 
Trapo: Metaficção e estrutura narrativa 1
(Imagem: Google Imagens/Reprodução)
 
A metaficção, segundo Wallace Martin, ainda pode ser entendida como embedded narration: “A story told by a character in a story is ‘embedded’. Some critics refer to it as ‘metanarration’ or ‘hyponarration’” (MARTIN, 1991, p. 135, grifo no original). Embora o termo embedded narration, escolhido por Martin, sirva para elucidar parte do processo desencadeado pela utilização do recurso metaficcional, suas palavras são insuficientes para fazer de embedded narration sinônimo de metaficção. Com a simplificação extrema do conceito, o autor deu espaço à ambiguidade, pois, do modo como é definida, a expressão de Martin pode servir também para explicar outros recursos que não a metaficção unicamente, como, por exemplo, o flashback, que também pode ser encarado como “a story told by a character in a story”. Diante disso, seria mais cuidadoso, por parte do autor, optar por uma definição mais completa e que fizesse referência ao desvendamento do processo narrativo, principal característica da metaficção.
            Na tentativa de esclarecer a diferença entre ficção e metaficção, é importante ressaltar que, embora o narrador e as personagens sejam criações do autor, não constituem a mesma coisa. São dois elementos diferentes e indispensáveis à narrativa. A narração pode ser brevemente definida como ação ou capacidade de contar uma história e, eventualmente, essa ação pode ser desempenhada por uma personagem da história. Nesse caso, a narração é feita em primeira pessoa e a personagem assume duas funções: protagonizar e narrar a história. Com a utilização da técnica metaficcional, a personagem pode acumular uma terceira função, a de escrever uma história que é inserida no romance e, nesse instante, é como se o autor conferisse à personagem o mesmo status que lhe cabe, com a intenção clara de dar espaço ao desvendamento do processo narrativo. Essa é a principal diferença entre ficção e metaficção e o que justifica a utilização do prefixo meta– antes de ficção. Manuel, personagem de Trapo, exemplifica bem esse processo. Além de narrar a história, Manuel é protagonista dela e confessa estar escrevendo a biografia de Trapo, o que permite ao leitor entrar em contato com diferentes versões escritas pela personagem, na tentativa de iniciar seu trabalho.
            Em todas as obras ficcionais, o autor conta com a vantagem de o narrador lhe servir como máscara. Cristovão Tezza declarou, em entrevista, quando questionado sobre o motivo que o levara a desistir de escrever contos: “Eu nunca assinaria um conto meu”**. Depois dessa declaração, o autor mencionou como exemplo as poesias atribuídas a Trapo, mas que, na verdade, tinham sido escritas por ele, anos atrás. Por isso, em Trapo, fica clara a função do narrador como máscara do autor, pois, dessa forma, o autor dá voz ao narrador ou à personagem e, assim, fica isento de qualquer vínculo com a posição assumida por quem narra ou protagoniza a história. Sendo assim, é impossível afirmar qual é a intenção ou a posição do autor a respeito de determinados assuntos, pois ela aparece refratada na narração e, também, na fala das personagens.
            Pelo fato de a narração servir como um disfarce para o autor, provoca o distanciamento deste em relação à obra. Em romances de caráter metaficcional, esse distanciamento é ainda maior, pois a autoria da obra é atribuída a uma personagem. Diante disso, um leitor leigo é levado a desconsiderar o paratexto (ECO, 1994, p. 126). A consequência disso é que o leitor passa a ser dominado pela armadilha da técnica narrativa e chega a colocar em xeque a ficcionalidade da obra. Isso ocorre, porque o mundo ficcional é desvendado, quando o romancista deixa transparecer, na ficção, o que acontece nos bastidores do processo narrativo. Essa característica da metaficção implica um processo autoconsciente da produção escrita e rompimento da ilusão criada a priori. Essa é a principal diferença entre os textos ficcional e metaficcional. Ambos criam um mundo ficcional, ou o que Linda Hutcheon (1991) prefere chamar de “heterocosmo”, mas apenas a metaficção joga com a construção e com a desconstrução do mundo criado. Em contrapartida, a metaficção também serve de metáfora para o mundo real. Nas palavras de Patricia Waugh, “metaficcional deconstruction […] has also offered extremely accurate models for understanding the contemporary experience of the world as a construction, an artifice, a web of interdependent seimotic systems” (WAUGH, 1984, p. 9). Mais adiante: “In showing us how literary fiction creats its imaginary worlds, metafiction helps us to understand how the reality we live day by day is similarly constructed, similarly ‘written’” (WAUGH, 1984, p. 18, grifo no original).
            Na metaficção, é comum a rejeição do conceito tradicional de autor como criador, posição que lhe garante superioridade e, por conseguinte, o direito de controlar suas criaturas. Nesse tipo de texto, “the ‘author’ discovers that the language of the text produces him or her as much as he or she produces the language of the text” (WAUGH, 1984, p. 133, grifo no original). Desse modo, paradoxalmente, o autor e o texto ficam em uma posição igualitária e com o único propósito de construir um “mundo possível” (ECO, 1994).

            Dos romances escritos por Tezza, Trapo é a metaficção por excelência. Antes, O terrorista lírico foi escrito com o mesmo objetivo. No entanto, em Trapo, o recurso da metaficção passa por um aprimoramento e é usado com exímia destreza. A autoria do livro é atribuída a Manuel, um professor universitário, já aposentado, que recebe das mãos de Izolda, dona da pensão onde Trapo morou e suicidou-se, um pacote com cartas e poemas escritos pelo jovem que, meses depois, tem a história de sua vida transformada em livro. No entanto, os poemas, as cartas e mesmo o relato dos amigos de Trapo não são suficientes para desvendar o mistério do suicídio do rapaz. Então, professor Manuel decide inventar um final, para que seu livro possa ser concluído. É nesse momento que a metaficção dá espaço à manipulação do discurso, estratégia que fica evidente no romance, já que este é de caráter metaficcional e, sendo assim, tende a mostrar também o que acontece nos bastidores do processo narrativo.

       A saída que Manuel encontra é inventar um final coerente, crível e possível, misturando amor e tragédia, no melhor estilo folhetinesco, como na passagem transcrita abaixo, quando Manuel diz a Izolda o que aconteceu, depois que Trapo soube da gravidez de Rosana e depois que ele havia decidido se casar com ela: 

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— A família de Rosana também foi contra, mas de uma forma mais violenta. Sexta-feira Rosana contou, muito provavelmente para a mãe, que estava grávida.
            Por que ‘provavelmente’?
Ignoro a interrupção — sou um sortista às avessas, na fumaça leio o passado.
— […] e posso imaginar o terror daquela mão em garra, súbita nos cabelos, para matar, sacudindo Rosana de um lado a outro — ‘sua vagabunda! sua puta!’ — […].
            Rosana… Rosana morreu? Então…
Descubro que minha lenta e medida retórica envolveu Izolda por completo — as palavras constroem o mundo.  (TEZZA, 1995, p. 191-192)
       Manuel prossegue a sua história e Izolda vai ficando cada vez mais envolvida, o que fica evidente quando ela demonstra impaciência: “— Continue, Manuel” (TEZZA, 1995, p. 192), ou indignação: “— Que sujeitinho filho da puta… — espanta-se Izolda” (p. 193). Manuel, ao perceber que sua versão está tendo sucesso, diz: “Continuo a escrever meu romance, um prazer inefável” (p. 193). No entanto, em muitos momentos, o relato de Manuel é frágil, com marcas de insegurança e incerteza como: “O que me parece muito provável”, “ cheguei mesmo a imaginar que”, “mas a hipótese não fecha”, “ sabe-se lá o que disse a ele”, “ provavelmente” e  “digamos que”.
       Izolda só se dá conta do absurdo da história, quando pergunta a Manuel se ele quer que ela acredite que foi a mãe de Rosana que contou a ele aquela história maluca. A reação do professor é imediata:
— E por que não?
   Mas é absurdo!
   Pode ser absurdo. Mas faz sentido. É o que me basta.
   Mas Manuel, isso parece novela de rádio!
Um segundo formigamento, muito mais forte, começa a me queimar a careca. Reajo, furioso:
   E daí? sua burra! Você sabia que a novela foi inventada pelos gregos?
   Que gregos?!
— Os gregos, ora! A diferença é que eles levavam a tragédia até o fim, sem remissão. Exatamente como o Trapo.  (TEZZA, 1995, p. 195)

            O recurso metaficcional reaparece nas obras posteriores a Trapo. Em Aventuras provisórias, a personagem João escreve a história de Pablo, mas não se mantém fiel aos fatos. Assim como em Trapo, onde Hélio, um amigo do suicida, aconselha o professor Manuel a inventar um final para a história do amigo, Pablo, em Aventuras provisórias, sugere a João que faça uso do mesmo artifício. Os exemplos seguem-se, respectivamente: 

— E tem mais, professor: invente à vontade. O povo gosta de história complicada, muita emoção. Já que as coisas do Trapo vão ficar à parte, integrais, do seu lado o senhor pode enfeitar o pavão. (TEZZA, 1995, p. 129)
— Espere! Você vai escrever a minha história. Eu sou analfabeto, mas você sabe escrever. Pode enfeitar à vontade, mas conte a minha história. Nem que seja para eu mesmo ler. Quero saber, de fora, o que aconteceu. Você promete? (TEZZA, 1989, p. 82)

            Uma história contada pela própria pessoa que a vivenciou não pode ser considerada como um relato fiel e verdadeiro dos fatos e, muito menos, quando essa história é apresentada por outra pessoa autorizada a inventar coisas que, na realidade, não aconteceram. Essa desconfiança é justificada basicamente por dois fatores. Em primeiro lugar, a história passa por diversos filtros, antes de ser escrita, e, de uma forma ou de outra, transforma-se em uma versão apenas, pois é impossível que todos os fatos sejam narrados e que seja conferida a eles a mesma importância que tiveram na realidade, ou seja, são inevitáveis a seleção e os eufemismos ou exageros. Em segundo lugar, devem ser avaliados o interesse de quem narra e o seu interlocutor, pois tais elementos também determinam o rumo da história. Logo, tanto a narrativa quanto as personagens podem receber tratamentos diversos, possibilitando versões totalmente opostas.

 

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REFERÊNCIAS

BALDICK, C. The concise Oxford dictionary of literary terms. Oxford: Oxford University Press, 1992.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

HUTCHEON, L. Narcissistic narrative: the metaficcional paradox. New York: Routledge, 1991.

JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix, 1977.

MARTIN, W. Recent theories of narrative. Ithaca: Cornel University Press, 1991.

TEZZA, C. Trapo. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

_____. Aventuras provisórias. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1989.

WAUGH, P. Metafiction: the theory and practice of self-conscious fiction. New York: Routledge, 1984.

Verônica Daniel Kobs*

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* Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Doutora em Estudos Literários pela UFPR. E-mail: veronica.kobs@fae.edu

** Declaração dada pelo autor em entrevista concedida a Cláudia Barcelos, locutora da rádio CBN, no dia 18/09/99.

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