A literatura múltipla e analógica de S.¹

Anúncio
Verônica Daniel Kobs2

 

Neste artigo, analisaremos o livro S., de J. J. Abrams e Doug Dorst. Em plena era digital, essa obra literária mantém a preocupação com a relação intersemiótica e com a multimodalidade, mas privilegiando a mídia impressa. Com base nessa particularidade e sob a perspectiva do texto múltiplo, objetiva-se apresentar e discutir os recursos textuais usados pelos autores para consolidar a pluralidade e a complementaridade em S. Dessa forma, no processo criativo da obra, serão destacados os seguintes componentes: metalinguagem, paratexto, dialogismo, intertextualidade, interartes e intermidialidade, os quais interferem de modo decisivo, não apenas na produção, mas também na recepção do texto literário.

Anúncio

No que diz respeito ao enredo, S. conta a história de um personagem sem memória, também chamado S., que, logo no início da narrativa, é sequestrado e levado a um navio. Para tentar recuperar suas lembranças e sua vida, ele tenta achar uma mulher que sabe quem ele é (ou foi). Com o mesmo intento, dia após dia ele registra sua recente história por escrito, em pedaços de papel e nas paredes do navio. Ao longo da narrativa, surge a hipótese de que S. também seja o nome de uma sociedade secreta de escritores. Porém, o título S. é apenas um disfarce, pois o livro vem em uma caixa preta, que, quando aberta, revela outro título: O navio de Teseu. Esse segundo nome retoma um mito conhecido, no qual são fundamentais o labirinto e a ajuda de Ariadne. Por essas razões, o mito se relaciona à ficção, servindo de metáfora à busca de S. (o personagem), afinal, o navio como cativeiro, a necessidade de o personagem principal recuperar sua memória e a ajuda feminina (com função similar à de Ariadne, no mito grego) alinhavam a correspondência entre as duas histórias (do mito e de S.).

Acesse o link https://www.hollywoodreporter.com/news/jj-abrams-doug-dorst-talk-660757 para visualizar o livro S., de J. J. Abrams e Doug Dorst: a caixa preta contém o exemplar de O navio de Teseu, de V. M. Straka.

Em O navio de Teseu, há indicação do nome do autor, na capa e na lombada: V. M. Straka. Já na “Nota de tradução e prefácio”, o leitor é informado sobre o escritor: “[…] o mundo nunca conheceu o rosto de Straka, nunca soube com certeza um único fato da vida do homem. De forma previsível, […] o mistério da identidade de Straka se tornou mais estudado que o conjunto de sua obra” (ABRAMS; DORST, 2013, p. v-vi). Portanto, S. pode significar V. M. Straka, mas também Václav Straka, já que uma das teorias citadas pelo tradutor é a de que o escritor era um operário industrial. Além dessa hipótese, na “Nota de tradução e prefácio” citam-se outras oito principais, debatidas e investigadas por estudiosos de literatura, no mundo inteiro. Inclusive, durante a leitura de S., o leitor acompanha a discussão entre dois personagens: Eric, um aluno; e Moody, um professor, pois ambos têm ideias distintas sobre a identidade real de V. M. Straka.  Como se vê, não apenas o mito de Teseu reflete o problema do personagem. O autor do livro também não tem uma identidade definida, característica, aliás, comum a outros personagens da história…

Anúncio

Retomando a imagem da Fig. 1, é fácil perceber a divisão entre o autor ficcional, Straka, e os autores reais, J. J. Abrams e Doug Dorst. Com base nessa informação, é possível fazer algumas associações com o currículo e o estilo dos autores de S. Dorst é romancista, contista e instrutor de Escrita Criativa. Abrams é diretor, produtor e roteirista de cinema e de TV, conhecido principalmente por Super 8, Star wars e Lost. Esta brevíssima apresentação de ambos justifica o método, a estrutura e o enredo de S. A partir disso, pode-se supor que a experiência cinematográfica de Abrams contribuiu, principalmente, para a associação entre escrita e visualidade e para os enigmas da história, ao passo o ofício de Dorst auxiliou no aprimoramento do aspecto técnico-literário do livro em questão.

Considerando apenas capas e contracapas, a duplicidade se faz complexa para o leitor, tanto pelas diferenças quanto pelas coincidências. Os elementos paratextuais que variam são: título, autoria, editora e ano de publicação3. Em contrapartida, há duas semelhanças. A caixa de S. traz um selo, que serve de lacre e que, quando rompido, dá acesso ao volume de Straka. Nesse selo, há a figura de um macaco e os dizeres: “O que começa na água lá deve terminar / E o que lá termina deve mais uma vez recomeçar” (ABRAMS; DORST, 2013). Os versos e a figura do animal também são importantes no romance de Straka pois assinalam, respectivamente, o final aberto (e cíclico) da história e a relação entre Straka e Filomela (já que ela envia ao autor um cartão com a figura de um macaco, com a inscrição: “Para seu livro” (ABRAMS; DORST, 2013)). Esse jogo entre ficção e realidade (na qual Straka é autor, mas ao mesmo tempo personagem) é próprio da metalinguagem e também será, nesta análise, um elemento-chave para o jogo estabelecido com o leitor e para a multiplicidade, temas que serão discutidos posteriormente.

O livro O navio de Teseu é envelhecido, traz um carimbo que indica que o volume pertence à biblioteca do Colégio Laguna Verde, mas também tem uma nota escrita à mão, indicando que o exemplar deve ser devolvido à biblioteca da Pollard State University. Além disso, há uma ficha com as datas das devoluções, desde outubro de 1957 até outubro de 2000. Em quase todas as páginas, a história divide espaço com anotações de duas pessoas, Eric e Jen. Ele estuda a obra de Straka desde os 15 anos e passou a investigar a identidade do autor com a ajuda de Jen. Os dois alunos trocam o livro constantemente e se comunicam pelas notas que fazem à margem, à caneta.

 

Acesse o link http://www.hojeediadelivro.com.br/2016/02/s-o-quebra-cabeca-literario-de-jj-abrams.html para visualizar o layout das páginas do livro S.

 

Na terceira imagem do link acima, percebe-se que os escritos de Jen e Eric vão da língua padrão ao coloquialismo, bem marcado pelo uso da tripla interrogativa, por exemplo. Essa oscilação é necessária para a verossimilhança da história4, pois cada personagem, por ter determinado perfil, deve fazer uso de um tipo específico de discurso, adequado a sua idade, à sua profissão, aos seus interesses, etc. Além disso, é mais uma comprovação da multiplicidade que caracteriza a obra. Do mesmo modo que S., o personagem desmemoriado, os estudantes preferem o “registro permanente” (ABRAMS; DORST, 2013, p. 231), razão pela qual escrevem todos os seus comentários (não apenas sobre Straka, mas também sobre o relacionamento pessoal, a família, a faculdade, etc.). Eric também se recusa a usar e-mail, porque não considera um veículo seguro de comunicação e pela abstração que predomina no universo digital.

Quanto à estrutura do livro, tomemos como base o conceito de transtextualidade, de Gerard Genette. Para o autor, há cinco tipos de transtextualidade, dentre os quais o paratexto, o metatexto e o hipertexto5, bastante pertinentes, aliás, para a análise de S. No que se refere ao paratexto, que Genette conceitua desta forma: “[…] título, subtítulo, intertítulos, prefácios, posfácios, advertências, prólogos, etc.; notas marginais, de rodapé, de fim de texto; epígrafes; ilustrações; errata, orelha, capa, e tantos outros tipos de sinais acessórios” (GENETTE, 2005, p. 9), além dos elementos já citados anteriormente, três assumem grade importância na história: as notas de rodapé e o prefácio, ambos assinados por Félix/Filomela6, e as anotações de Jen e Eric, escritas à margem das páginas. Nas notas dos estudantes, a história se expande e se dilui, simultaneamente. Digressões relacionam o livro de Straka a trechos de outros livros do mesmo autor (intratextualidade), de livros de escritores diferentes (intertextualidade), às vezes simplesmente há a indicação de um título, com ano de publicação e nome do autor (dialogismo) e, ainda, por vezes os personagens fazem desenhos e lembram nomes de quadros ou filmes de artistas renomados (interartes). Aliás, algumas anotações de Jen e Eric, que, por si só, já constituem uma interrupção, apresentam ao leitor uma foto, uma carta, um mapa, etc.. Nesse momento, a digressão aumenta, encadeando elementos estranhos à narrativa, mas que devem ser lidos, pois são peças-chave para os muitos mistérios que o enredo apresenta. O livro traz 24 anexos7, todos de caráter extraliterário e cada um em uma página adequada, já que a maioria deles é resultado de um comentário escrito por Eric ou Jen, quando há necessidade de comprovar ou mostrar algo. Evidentemente, os anexos também introduzem outros textos e outras artes ou mídias na narrativa, o que corresponde aos conceitos de intertextualidade (a exemplo de uma carta ou de um telegrama), interartes (como, por exemplo, quando o leitor encontra uma foto) e intermidialidade (cujo exemplo pode ser o artigo de jornal).

Ainda no que se refere ao paratexto, é importante ressaltar que as primeiras páginas apresentam a lista completa de obras de Straka: 18 romances, sem contar O navio de Teseu. Além disso, na lombada, há uma etiqueta com o código da biblioteca, que facilita a localização do livro nas estantes, e, no verso da segunda página, informam-se os dados da editora e o copyright. A função desses elementos é a verossimilhança, o que serve também para reforçar o habitual paradoxo da metaficção, tipo de texto que tenta preservar o distanciamento e a ficcionalidade da obra, mas que, na verdade, acaba por aproximar a história e o autor do leitor, devido aos índices de realidade que apresenta.

Em se tratando da identidade, tema frequente das “conversas” de Jen e Eric, surgem reflexões sobre a evolução no perfil do leitor, referente às mudanças inerentes ao amadurecimento do sujeito e, consequentemente, ao processo de leitura, que se renova à medida que o leitor também se modifica.Nesse aspecto, pode-se aprofundar aqui a questão da duplicidade ou da imitação, já aventada anteriormente. Em determinado momento, Eric escreve uma pergunta a Jen, falando da relação de Filomela (a tradutora) e Straka (o escritor): “Ou seja: E se eles estivessem enviando mensagens um para o outro no livro?” (ABRAMS; DORST, 2013, p. 234, grifo no original). Com esse trecho, é inevitável que o leitor pense na hipótese de Jen ser Filomela e de Eric ser Straka e talvez também o personagem S. Além disso, há outras pistas que dão credibilidade a essa ideia: o tio de Eric morreu em um naufrágio e, certa vez, o estudante feriu a perna, acidente que também aconteceu com Straka. Some-se a isso a estratégia de mudar os nomes. Eric Husch já se fez passar por Thomas Lyle Chadwick e, ao final da história, revela seu nome real: Nicodemus8. Do mesmo modo, Jen é também Jenny ou Jennifer Heyward. Dessa forma, os personagens estão se descobrindo e se modificando do mesmo modo que Straka, o protagonista S. e Filomela/Félix. Exatamente por isso, Eric e Jen duplicam a história e a vida da tradutora e do escritor, que passam anos vigiados e em fuga. Outro detalhe importante é que, na estrutura, o leitor também pode duplicar as ações de Jen e Eric, se optar por também escrever nas margens das páginas. Afinal, para alguns leitores, as anotações fazem parte de uma leitura mais atenta.

Quando algumas dessas duplicidades são combinadas com o mito de Teseu, que dá nome à obra de V. M. Straka, a identificação entre os personagens se consolida. Importam, aqui, os fatos de Félix ser uma mulher, Filomela, pois essa mudança corresponde à androginia, e de haver dois casais, no livro: Eric e Jen; e Filomela e Straka. Esses aspectos permitem que comparemos S. ao mito, porque, na narrativa grega, restam apenas Ariadne e Teseu no navio, razão pela qual o mitólogo Junito Brandão menciona a “hierogamia” (BRANDÃO, 2000, p. 27), que, por sua vez, representa o casamento por excelência, habitualmente considerado como a celebração do “encontro da metade perdida” (BRANDÃO, 2000, p. 37). Outro elemento relevante no mito é que o labirinto equivale ao “inconsciente” (BRANDÃO, 2000, p. 162). Mais uma vez, utilizamos as considerações de Junito Brandão na tentativa de demonstrar as coincidências entre as histórias dos dois casais do livro e o predomínio da questão da identidade em S.

De diferentes modos, esta análise sempre enfatiza a principal característica de S.: a multiplicidade. Segundo Italo Calvino: “Há o texto multíplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo […]” (CALVINO, 1990, p. 132), afinal “o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (CALVINO, 1990, p. 127). De fato, em S., as vozes se acumulam e se complementam. Vale lembrar que, além de Straka, Abrams e Dorst, outros personagens assumem a função de escritores. A tradutora Filomela age como coautora, sobretudo quando informa o leitor que teve de fazer vários acréscimos no capítulo 10 de O navio de Teseu: ”Dei o melhor de mim para reconstruir o capítulo e preencher as lacunas de forma consistente com as intenções de Straka” (ABRAMS; DORST, 2013, p. xiii). Também Eric e Jen, após concluírem a investigação sobre Straka, planejam lançar um livro. Em uma das anotações, Jen conta a Eric: “Perguntei se ela publicaria nosso livro sobre Václav e ela riu. […]. Legal. Foda-se ela. Ela não merece nosso livro. Quando o escrevermos9, quer dizer” (ABRAMS; DORST, 2013, p. 445). No aspecto estrutural, essa multiplicidade corresponde ao que Linda Hutcheon caracteriza como “that complex Chinese-box mise en abyme structure typical of so much metafiction”10 (HUTCHEON, 2014, p. 105, grifo no original). Wallace Martin corrobora essa afirmação, pois conceitua a metaficção como “embedded narration11 (MARTIN, 1991, p. 135). Para demonstrar a estrutura múltipla e encadeada de S. e também para aproximá-la das considerações de Hutcheon e Martin, observem-se as figuras 4 e 5. Ambas as imagens enfatizam o caráter múltiplo, no sentido literal do termo. Entretanto, o significado de usar essa estrutura, em um texto literário, hoje, vai muito além do nível quantitativo: “Metaficcional deconstruction […] has also offered extremely accurate models for understanding the contemporary experience of the world as a construction, an artifice, a web of interdependent semiotic systems”12 (WAUGH, 1993, p. 9). Portanto, o esquema narrativo de S., plural e intricado, serve de metáfora para o mundo e para a vida, correspondendo perfeitamente à concepção de Italo Calvino, no que diz respeito à multiplicidade:

Alguém poderia objetar que quanto mais a obra tende para a multiplicidade dos possíveis mais se distancia daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior. A descoberta de sua própria verdade. Ao contrário, respondo, quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis. (CALVINO, 1990, p. 138)

Evidentemente, se Eric, em sua comunicação com Jen, está reunindo dados para o livro dele e se Filomela está traduzindo o livro de Straka, utilizando as notas de rodapé para informar o leitor sobre alguns acréscimos, dificuldades de tradução e até sobre curiosidades relatadas a ela, pelo próprio autor, ambos se inserem no que Genette chama de metatextualidade, “chamada mais correntemente de ‘comentário’, que une um texto a outro texto do qual ele fala” (GENETTE, 2005, p. 11, grifo no original). O status de Filomela, nesse quesito, é extremamente relevante, não apenas por ser tradutora/coautora da obra de Straka, mas também por assumir a autoria do último capítulo, que o escritor deixou incompleto. A voz dela, no prefácio e principalmente nas notas, levanta várias questões (sobre a vida pessoal de Straka, sobre O navio de Teseu e também sobre sua própria função), como exemplificam estes trechos, de duas notas: “5Não vou especular por escrito sobre quem poderia querer Straka morto. […]”(ABRAMS; DORST, 2013, p. x); “6Eu passara a maior parte de um ano trabalhando em minha tradução dos primeiros nove capítulos do original tcheco, […]”(ABRAMS; DORST, 2013, p. xi). Seguindo os preceitos de Genette, a tradução pode ser considerada tanto um metatexto como um hipertexto, pois é um “texto de segunda mão […] ou texto derivado de outro texto preexistente” (GENETTE, 2005, p. 12). Sendo assim, é opcional falar explicitamente do texto-base. Porém, é absolutamente necessário que o metatexto e o hipertexto tenham um ponto de partida, ou seja, que se relacionem a um texto anterior a eles.

De modo coerente com o jogo que enreda o leitor em uma investigação policial e literária, a postura da tradutora Filomela não é confiável. Se, às vezes, ela avisa que fez muitas interferências no capítulo 10, há trechos que Jen e Eric sublinham, mostrando ao leitor que, em diversas passagens, Filomela mudou o texto de Straka e, nessas ocasiões, ela não usa nota de rodapé. Em “Interlúdio”, Jen sublinha três linhas da história e, ao lado, escreve: “Fui verificar — essas linhas não estão no original! Essa parte termina com ‘intenção, inspiração ou consolo.’” (ABRAMS; DORST, 2013, p. 329, grifo no original). O alerta faz o leitor duvidar da tradutora, mas, em contrapartida, funciona para lembrar o leitor de que a metaficção é um artifício literário, detalhe que acentua o distanciamento em relação ao texto.

Nesta análise, a intertextualidade já foi mencionada no diálogo dos dois estudantes, Eric e Jen, que se comunicavam pelo que escreviam, nas margens do livro, e pelos materiais que trocavam (ou seja: os 24 anexos já especificados neste artigo). Conforme Bakhtin: “O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros)” (BAKHTIN, 2014, p. 124). Esse processo duplica a estratégia narrativa de V. M. Straka, que interrompe a história, a fim de inserir nela outros tipos de textos, especificamente extraliterários, como: manchetes de jornal, diagramas, inscrições em cavernas, pichações em paredes, placas e mapas, os quais ampliam o alcance do texto, tornando mais complexas as diferenciações entre realidade e ficção. Essa é mais uma estratégia narrativa para potencializar o caráter múltiplo, evidenciado pela natureza dos textos que se cruzam, pelas diversas mídias envolvidas e pela relação de complementaridade que se estabelece entre a narrativa e os intertextos.

Ao interromper a história, o intertexto fragmenta e multiplica, razão pela qual esse recurso textual coincide com os efeitos da obra aberta, que “enfrenta plenamente a tarefa de oferecer uma imagem da descontinuidade” (ECO, 1997, p. 157). Além disso, o final aberto (ou “ambíguo” (ABRAMS; DORST, 2013, p. 456), na visão de Eric), escrito por Straka e Filomela, rompe com a autoridade do escritor e passa a responsabilidade ao leitor, que é convidado a responder as perguntas do texto: “[…] o navio é um dos deles, e quanto às identidades das duas pessoas ao timão, bem, os dois deixarão a imaginação criar suas feições” (ABRAMS; DORST, 2013, p. 456). Dessa maneira, cada leitor, pelo caráter subjetivo da interpretação, irá imaginar um final diferente.

Outra associação entre os efeitos provocados pelas diferentes estratégias do texto diz respeito à subversão, que caracteriza tanto a metalinguagem quanto o caráter lúdico do livro:

 

Metafictions, on the contrary, bare the conventions, disrupt the codes that now have to be acknowledged. The reader must accept responsibility for the act of decoding […].. Disturbed, defied, forced out of his complacency, he must self-consciously establish new codes in order to come to terms with new literary phenomena.13 (HUTCHEON, 2014, p. 39)

 

Com base nos postulados de Wolfgang Iser, que apresenta quatro tipos distintos de jogos, pode-se afirmar que S. propõe dois deles ao leitor: “Ilinx é um padrão de jogo em que as várias posições são subvertidas, recortadas, canceladas ou mesmo carnavalizadas, como se fossem lançadas umas contra as outras” (ISER, 2002, p. 113). O segundo, Alea, propõe “a desfamiliarização, que é alcançada pela estocagem e condensação de diferentes textos […]. Pela subversão da semântica familiar, ele atinge o até então inconcebível e frustra as expectativas guiadas pela convenção do leitor” (ISER, 2002, p. 113).  Os modos de subversão, em S., são vários e compreendem todas as características apresentadas até agora. Entre elas, destacam-se, sobretudo: o uso da metalinguagem; os registros de Eric e Jen, em letra cursiva; e os 24 materiais anexos à narrativa. De diferentes maneiras, tais elementos subvertem não apenas a forma trivial do livro impresso, mas também os processos de produção e recepção da obra literária (afinal, porque os autores pensaram em usar até o espaço das margens para contar parte da história, o leitor deve descontinuar a leitura, a fim de atender às associações entre a narrativa propriamente dita e os comentários dos personagens). Além disso, há inúmeras pistas falsas, ao longo da história, mas, como esse falseamento é admitido pelos personagens, que mudam seus relatos, seus nomes, etc., o leitor vai se acostumando com essa conduta e passa a duvidar de tudo e de todos. Aos poucos, o receptor torna-se um investigador, apurando as informações que lhe são dadas. Nessa dinâmica, alguns leitores podem pensar que comandam a situação, mas, ao contrário disso, o receptor apenas reage ao texto: “Quanto mais o leitor é atraído pelos procedimentos a jogar os jogos do texto, tanto mais é ele também jogado pelo texto” (ISER, 2002, p. 115-116, grifo no original). S. exige um leitor bastante colaborativo e atento, sobretudo porque, em vários momentos, a tradutora e os estudantes discordam, cabendo, então, ao leitor decidir quem está com a razão.

Relacionado à estrutura do livro, outro grande desafio que se apresenta ao leitor diz respeito ao tradicional status da obra literária. Jen e Eric escrevem em quase todas as páginas do livro, que é usado não como um objeto imaculado, mas como um material de pesquisa e como um meio de comunicação entre os dois estudantes. Por isso, há um carimbo que demonstra a total ironia do livro. Na contracapa, acima das datas de devolução, está escrito em vermelho: “CONSERVE ESTE LIVRO Solicitantes que encontrarem este livro marcado a lápis, escrito, rasgado ou injustificadamente danificado devem informar ao bibliotecário” (ABRAMS; DORST, 2013). S. sugere ao leitor um novo posicionamento sobre o objeto livro e, apesar de muitos criticarem essa escolha dos autores, a proposta pode ser considerada eufemista, se comparada a projetos mais arrojados, como é o caso de Destrua este diário, publicado pela primeira vez, no Brasil, em 2007, pela mesma editora de S., a Intrínseca. A autora, Keri Smith, é conhecida por sua escrita interativa e propõe não apenas que os leitores escrevam no diário, mas que também façam colagens, sujem e rasguem algumas páginas.

Acesse o link http://spleen-juice.blogspot.com.br/2013/12/destrua-este-diario.html para visualizar as primeiras páginas do livro Destrua este diário, de Keri Smith.

Em S., com tantas anotações nas margens das páginas, o leitor não pode ler a obra sob sua própria perspectiva. Ele é obrigado a ler o romance de Straka contaminado pelas observações e perguntas dos dois personagens.  O percurso de leitura é árduo e pode variar, dependendo da escolha de cada leitor. Há três possibilidades mais evidentes: 1) agir como se as anotações de Eric e Jen fossem notas de rodapé e interromper a leitura da história toda vez, para ler o comentário junto com o trecho a que ele corresponde; 2) ler a página inteira, dando prioridade à história, e só depois ler os comentários à margem, relendo os trechos do livro a que eles se referem; 3) ler todos os comentários antes e a história depois (nesse caso, algumas retomadas também podem ser necessárias). Apesar da interrupção, o primeiro percurso é o mais indicado, pois não exige tantas retomadas. Mas, mesmo assim, as passagens escritas por Eric e Jen geram outros desafios ao leitor. Às vezes, é preciso colocar tudo em ordem, seguindo flechas ou avançando/voltando algumas páginas, seguindo as orientações dos personagens. Além disso, devido às muitas coincidências entre as histórias dos estudantes e aquela narrada em O navio de Teseu, o leitor deve ficar atento, para separar as duas coisas. Claramente, qualquer que seja a sequência de leitura escolhida, S. acentua o convite ao jogo detetivesco, ao mesmo tempo em que reforça a obra aberta e em progresso: “[…] é tanto um evento em processo como um acontecimento para o leitor, provocando seu envolvimento direto nos procedimentos” (ISER, 2002, p. 116). As correspondências não cessam, mas ainda há tempo de mencionar mais uma citação, que ressalta o valor da estrutura inovadora14 de S. e a estreita conformidade da forma com os novos papéis atribuídos a autor, personagens e leitor: “Quando, no entanto, o sistema fechado é perfurado e substituído por um sistema aberto, o componente mimético da representação declina e o aspecto performativo assume o primeiro plano” (ISER, 2002, p. 105).

 

 

Notas
1Artigo vinculado ao projeto de Pós-Doutorado em Estudos Literários, atualmente em desenvolvimento na UFPR, sob a supervisão da Profa. Dra. Patrícia da Silva Cardoso.
2 Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE. Professora do Curso de Graduação de Letras da FAE. Pós-Doutoranda em Estudos Literários na UFPR. E-mail: [email protected]
3 S. tem a Intrínseca como principal editora e foi publicado em 2013. Já O navio de Teseu foi publicado em 1949 pela editora Sapatos Alados.
4 Além da linguagem, o aspecto gráfico (forma e cores) também auxilia o leitor a diferenciar as notas dos dois estudantes. Enquanto Jen usa letra manuscrita, nas cores roxa, azul, bordô, preta e alaranjada, Eric sempre usa letras em caixa alta, nas cores rosa, cinza, preta, verde e vermelha.
5 Os outros dois tipos são o intertexto e o arquitexto. No primeiro caso, não usaremos, aqui, o conceito de Genette, mas o de Bakhtin, levando em conta o critério da anterioridade. No segundo caso, como a obra analisada não apresenta nenhuma classificação, o conceito não se mostra relevante para esta análise.
6 Félix é o tradutor das obras de Straka e autor do prefácio da obra O navio de Teseu. Mais tarde, descobre-se que ele é uma mulher, Filomela, que adota o nome de Ermelinda Pega, após forjar sua própria morte.
7 Lista de anexos: 6 cartas, 1 Roda de Eötvös, 1 lista com os crimes atribuídos a Straka, 3 artigos de jornal/revista, 2 telegramas, 2 fotografias, 5 cartões-postais, 2 cartões, 1 obituário e 1 mapa.
8 Nicodemos, na mitologia cristã, é relacionado à renovação e ao novo nascimento, os quais são temas que correspondem à questão da identidade. Além disso, vários estudos mencionam que esse personagem bíblico era “membro do Sinédrio [S.], filiado ao partido dos fariseus” (SILVA, 2018). Essa informação pode ser uma pista para a identidade de Eric, afinal, se ele também fosse o desmemoriado S., faria parte da organização secreta S.
9 Considerando que muitas anotações dos estudantes serão desenvolvidas no livro que eles pretendem publicar, retomamos aqui o conceito de paratexto, que compreende também “o ‘pré-texto’ dos rascunhos, esboços e projetos diversos” (GENETTE, 2005, p. 10, grifo no original).
10 “[…] aquela complexa caixa chinesa mise en abyme, estrutura típica de muitas metaficções” (Tradução nossa).
11 “Narração embutida” (Tradução nossa).
12 “A desconstrução metaficcional também oferece modelos extremamente acurados para compreender a experiência do mundo contemporâneo como uma construção, um artifício, uma rede de sistemas semióticos interdependentes” (Tradução nossa).
13 “Metaficações, pelo contrário, expõem as convenções, rompem os códigos que agora têm de ser admitidos. O leitor deve aceitar a responsabilidade pelo ato de decodificação […]. Perturbado, desafiado, forçado a sair de sua complacência, ele deve estabelecer conscientemente novos códigos para se adaptar a novos fenômenos literários” (Tradução nossa).
14 Enfatize-se que “estrutura inovadora” não diz respeito à interatividade, já que é possível citarmos tendências artísticas anteriores à S. e que exploraram essa característica, a exemplo do Dadaísmo, do Poema Processo e do Neoconcretismo. Portanto, meu intento é destacar, aqui, o modo específico como os autores de S. tentam explorar esse mesmo elemento. Nesse aspecto (e tendo como parâmetro meu repertório específico de obras lidas/conhecidas), considero dois elementos de fato “inovadores”: a utilização de 24 materiais extras, em meio às páginas do livro, para completar a história; e os trechos manuscritos de Eric e Jen, que mediam a relação do leitor com o livro, pois introduzem a crítica no enredo ficcional (por meio do conteúdo e também da parte gráfica do romance).

 

 

REFERÊNCIAS
ABRAMS, J. J.; DORST, D. S. Rio de Janeiro: Intrínseca; Santa Mônica (Califórnia): Bad Robot; New York: Melcher Media, 2013.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 2014.
BRANDÃO, J. de S. Mitologia grega. Vol. III.  Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
ECO, U. Obra aberta: Forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 1997.
GENETTE, G. Palimpsestos. A literatura de segunda mão. Belo Horizonte: UFMG, 2005.
HUTCHEON, L. Narcissistic narrative: The metafictional paradox. Canadá: Wilfried Laurier University, 2014.
ISER, W. O jogo do texto. In:  LIMA, L. C. (Org.). A literatura e o leitor: Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 105-118.
MARTIN, W. Recent theories of narrative. Ithaca: Cornel University, 1991.
SILVA, I. do N. Nicodemos e Jesus, o novo nascimento. Disponível em: <http://www.rudecruz.com/nicodemos-novo-nascimento.php>. Acesso em: 19 fev. 2018.
SMITH, K. Destrua este diário. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.
WAUGH, P. Metafictional: The theory and practice of self-conscious fiction. New York: Routledge, 1993.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.