Asfalto Selvagem, de Nelson Rodrigues: uma história familiar
No romance Asfalto selvagem, de Nelson Rodrigues, entram em conflito o que é obsceno e o que é religioso. A luta é social e individual e põe em cena Deus e o Diabo. Fases distintas (a primeira dos doze aos dezoito anos e a segunda depois dos trinta) da vida da protagonista, Engraçadinha, compreendem núcleos de personagens e cenários igualmente distintos. O fato de o romance ser dividido em duas partes é de extrema relevância, pois a dualidade se instala na história, a partir da protagonista. Engraçadinha, na segunda fase, é fervorosamente religiosa, casada com Zózimo há muitos anos e respeitada mãe de família, o que representa o avesso do que fora na sua juventude, em Vitória. Porém, em dado momento, ela redescobre o prazer do sexo, momento em que a Engraçadinha do passado aflora e, junto com ela, ressurge Letícia, uma prima, que não só acompanhou toda a relação incestuosa entre Engraçadinha e Sílvio, mas também se declarou apaixonada por ela.
Tal divisão evidencia a ambivalência de Engraçadinha, que servirá para demonstrar a dualidade de qualquer pessoa, afinal, todos são vítimas da sociedade, que cria regras para reprimir os instintos, em nome da ordem e da harmonia coletiva. Nelson Rodrigues parte de uma microcélula social, a família, para analisar, por amostragem, a macroestrutura social. A partir da escolha da família como objeto de análise, a próxima providência a ser tomada é o desvencilhamento da representação dessa célula social como modelo a ser seguido, dispensando a imagem ideal, em prol de um aprofundamento, permitindo, assim, a exposição e a exploração dos problemas normalmente escondidos e mascarados pelos membros da família:
A família, núcleo da maioria dos textos de Nelson Rodrigues, é, na verdade, uma construção em ruína, que deixa entrever um processo histórico recheado de contradições e recalques, escamoteados por uma “moralidade de fachada”. Famílias de classe média, participantes de um mundo no qual se congregam os valores capitalistas e a tradição patriarcal, são a alegoria de um passado que apodrece de pé, resistindo ao presente. (FRANÇA, 2008, p. 17, grifo no original)
Essa importância dada à família, sobretudo a partir de outra ótica, que reage à idealização, além de ser responsável pelo tom desagradabilíssimo da obra rodrigueana, permite a Décio de Almeida Prado traçar um paralelo entre os textos do autor e as tragédias gregas, a partir da “forma” e do “conteúdo”:
Enquanto forma, por exemplo, a divisão nítida entre os protagonistas, portadores dos conflitos, e o coro que emoldura a ação, formada por vizinhos, parentes, circunstantes; e enquanto conteúdo, as famílias marcadas pelo sofrimento, designadas para o dilaceramento interior, com a maldição que as obriga ao crime e ao castigo passando de pais a filhos. (PRADO, 1996, p. 52)
Somando-se à universalidade das tragédias, as oposições, que acentuam o conflito e a duplicidade dos personagens principais, são, na opinião do crítico, outro traço comum entre a obra de Nelson e o teatro grego:
As antinomias em que se debatem são sempre extremas — pureza ou impureza, puritanismo ou luxúria, virgindade ou devassidão, religiosidade ou blasfêmia —, em consonância com os sentimentos individuais que se definem (ou se indefinem) pela ambivalência, indo e vindo constantemente do pólo da atração para o da repulsão, em reviravoltas bruscas que proporcionam as surpresas do enredo. (PRADO, 1996, p. 52)
As duas fases de Asfalto selvagem marcam exatamente essas diferenças, reforçadas pela mudança de cenário e de status, afinal, depois que se casa com Zózimo, Engraçadinha enfrenta uma realidade bem diferente da condição que tinha, quando morava com seu pai, em Vitória. A moça de família tradicional e abastada acaba indo morar em Vaz Lobo, subúrbio carioca. É por suprimir essa segunda parte que a adaptação cinematográfica da obra de Nelson, intitulada Engraçadinha e dirigida por Haroldo Marinho Barbosa, não dá conta de todo o processo de transformação da protagonista, apesar de ressaltar, acertadamente, as características mais comentadas dos textos do escritor. Pelo tamanho do romance, pode-se entender o corte, mas o fato é que isso contribui para uma redução do texto rodrigueano apenas ao aspecto erótico e devasso que permeia narrativa e personagens, enfatizando, sim, as “marcas registradas” do universo ficcional do autor, mas abrindo mão da ambivalência que detona a maioria dos conflitos e que traz à tona a hipocrisia, já que essência e aparência opõem, respectivamente, as esferas privada e pública, a individualidade e a alteridade.
Mesmo com a ausência da segunda fase, o filme, bem como o romance, aposta no erotismo como tema-chave para a representação da brasilidade. Essa ideia aparece no final de Asfalto selvagem, em um diálogo entre Luís Cláudio e Abdias, que diz:
— O Brasil vive uma fase ginecológica!
Explicou: — “O desenvolvimento traz um medonho estímulo erótico. Nunca o brasileiro foi tão obsceno”. E insistia: — “É uma obscenidade histórica!” […]. Parecia-lhe nítida e taxativa a relação entre o sexo e a epopéia industrial.
Abdias pergunta:
— Você não acha que o meu raciocínio é batata?
Luís Cláudio exulta:
— Batata! E o que faz o romance brasileiro que não vê isso? A nossa ficção é cega para o cio nacional! (RODRIGUES, 1994, p. 552)
Retomando a informação da época em que a obra foi escrita, entre 1959 e 1960, torna-se fácil perceber, nas falas de ambos os personagens, o reflexo da ideologia que predominava, no período de 1956 a 1961, durante o governo de Juscelino Kubitschek, cuja prioridade era a rapidez, que alicerçava o slogan “50 anos em 5”, para a superação e o progresso. Apesar do aumento da inflação e da dívida externa, Juscelino promoveu o desenvolvimento em diversos segmentos, com destaque para o industrial, fez acordos que permitiram a vinda das primeiras montadoras automobilísticas para o país e criou a Operação Panamericana, que visava combater o subdesenvolvimento. Levando-se em conta apenas esses exemplos da imensa mudança que o governo de JK instaurou, as quais colocaram a população em uma onda de otimismo, pode-se entender a relação do erotismo com a euforia que dominava o país.
Aproveitando a intimidade que une as pessoas de uma mesma família, Nelson Rodrigues trata de redimensionar os laços, estreitando-os a ponto de as relações familiares darem espaço às perversões sexuais. Nesse ponto, o filme recupera vários temas do texto rodrigueano. O principal deles é o incesto (tanto aquele insinuado entre pai e filha, quanto o que acontece, de fato, entre Sílvio e Engraçadinha, que se julgam primos, mas se descobrem irmãos), seguido pelo adultério (Sílvio é filho de Arnaldo com a cunhada), pelo lesbianismo de Letícia (que se declara apaixonada pela prima), pelo voyeurismo (na parte em que Engraçadinha observa Sílvio possuindo Letícia, como se fosse ela) e pelo comportamento oscilante, tanto de Sílvio como de Engraçadinha.
Exemplos disso aparecem quando Engraçadinha vai procurar o primo no trabalho, insinua-se para ele, que a repele, e, como resposta ao convite que ela lhe faz, dizendo que o esperará, no quarto, à noite, ele a esbofeteia, ao que ela reage positivamente, como se tivesse realizado um grande anseio e mesmo esperando que ele a esbofeteie ainda outras vezes. Sílvio mostra-se também oscilante, porque, depois da bofetada, acaba indo ao quatro da prima. Entre o desejo e o ódio que sente por Engraçadinha, Sílvio vive em constante indecisão. Em outra ocasião, quando transa com Letícia, achando que se tratava de Engraçadinha, ele a chama de “querida” e diz que a ama, mas, segundos depois, ele a deixa, chamando-a de “vaca”.
Como se não bastassem todos esses pontos que desconstroem a imagem de família feliz, a virgindade da filha também serve de mote para denunciar a necessidade social de sobrepor a aparência à essência. Depois de Engraçadinha inventar que está grávida, Arnaldo a leva para uma consulta ginecológica, buscando ter certeza sobre o que a filha afirmava. Porém, para tomar tal atitude, o pai cerca-se de cuidados, buscando pretextos para se informar sobre um médico de confiança e optando, inclusive, por um horário fora do expediente normal, para assegurar o segredo, afinal, era uma pessoa conhecida e não podia meter-se em escândalos. Também o médico dá sua colaboração para ressaltar a importância de se manter a aparência a qualquer custo, quando diz ser possível reconstituir a virgindade da moça, saída aceita pelo pai, mas não por Engraçadinha.
Em outros momentos, há mais referências ao radicalismo de Arnaldo, que não mede esforços para evitar que ele e a filha caiam “na boca do povo”. O aborto e o casamento arranjado com Zózimo já tinham sido cogitados, caso a gravidez, naquele momento, fosse real. No caso do “arranjo”, insistir no plano ainda representava certas vantagens, na opinião do pai: manter a filha longe de Sílvio e assegurar que ninguém soubesse do passo em falso da filha, pois, quando ela teve o caso com Sílvio, ainda estava noiva de Zózimo.
Interessante é perceber o número de “podres” que aparecem, à medida que se revolve a vida familiar, como se um erro desencadeasse outro. Sobre isso, é extremamente relevante a vida que Arnaldo constrói, para servir de fachada, apenas, e encobrir suas faltas. Habituado a “esconder a sujeira debaixo do tapete”, ele nãos se dá conta de que, sem saber, colabora para que outro erro seja cometido, como se mentira gerasse mentira, afinal, se o parentesco verdadeiro ente Sílvio e Engraçadinha fosse revelado desde o começo, o caso entre os dois poderia ter sido evitado. O problema é que, se assim fosse, a tragédia não aconteceria e o texto, que daí teria como objeto uma família feliz e ideal, soaria bastante artificial, não se detendo sobre um dos piores defeitos da sociedade: a hipocrisia. Dessa forma, seguindo os passos do pai, os filhos não só repetem o erro, mas também sofrem com o castigo e a culpa, passados de geração a geração, assim como ocorria nas tragédias gregas, que primavam pela força atávica do destino.
Freud, que, aliás, também estudou as tragédias e os mitos gregos, para formular sua teoria psicanalítica, discute essa “herança”, quando discorre sobre tabus, considerados por ele “proibições de antiguidade primeva”, porque “devem ter persistido de geração para geração. Possivelmente, contudo, em gerações posteriores devem tornar-se ‘organizadas’ como um dom psíquico herdado” (FREUD, 1996, p. 48). As maiores provas disso são as repetições das situações. Assim como Arnaldo traiu o irmão, tendo um filho com a cunhada, Engraçadinha, mesmo noiva de Zózimo, começa um caso de amor com o primo (acrescente-se, aqui, o fato de ambas as traições terem acontecido no mesmo lugar: no divã da biblioteca da casa de Arnaldo). Tais “coincidências” são mais enfatizadas pelo romance, que, na segunda fase da protagonista, também menciona a fixação de Durval na irmã caçula, Silene, o que faz Engraçadinha lembrar-se de si própria e de Sílvio, ainda mais levando-se em conta a semelhança que havia entre os personagens, tanto no aspecto físico como no comportamental.
Na família de Zózimo e Engraçadinha havia, sim, desvios de conduta, sobretudo envolvendo Silene, mas é a parte referente à adolescência de Engraçadinha, justamente a que é focada no filme de Haroldo Barbosa, que guarda inúmeras transgressões, como exemplificado acima. Sendo assim, a opção pela primeira parte justifica-se pelo intento de reforçar as características que mais bem definem o estilo rodrigueano. Porém, dessa postura surge um problema: elegendo apenas a primeira parte da história, o diretor perpetua o estilo de Nelson como aquele desagradável e de ruptura, o que resulta em um reducionismo, afinal, as obras de Nelson são mais do que isso. O erotismo e a violência de seus textos não são gratuitos, apesar de serem as marcas da arte rodrigueana.
De qualquer modo, o fato é que a seleção era necessária, pelo tempo restrito do filme e pela extensão da trama. Cabia, então, ao diretor, escolher entre o mais e o menos comentado e a primeira opção garantiria duas coisas ao mesmo tempo. Primeiramente, explicações através de flashbacks não se faziam necessárias, já que a primeira parte, ao contrário da segunda, não obrigava o diretor a fazer relações frequentes com a primeira fase da protagonista, de modo a levar o espectador a entender melhor a história. Em segundo lugar, as expectativas do público seriam atendidas, já que esse reconheceria, imediatamente, no filme, os principais traços estilísticos das obras de Nelson Rodrigues, pois a primeira parte do texto é responsável por dissociar a imagem da família real daquela imagem que todos, sobretudo Arnaldo, tentavam passar e que era propagada nos eventos sociais. Nada do que aconteceu na biblioteca, entre Sílvio e Engraçadinha, foi conhecido pelas pessoas que estavam na festa. Apenas a família (e, mesmo assim, nem toda ela) soube do ocorrido.
A tensão entre as esferas pública e privada é que divide os personagens, obrigando-os a transitar entre dois mundos diferentes. Sem poder ter certeza de nada, as pessoas que mantêm relações sociais com a família ficam sabendo apenas dos detalhes que lhes são contados por alguém que “ouviu dizer” ou “soube por alto”, o que abala, mas sem destruir por completo, a imagem que a família construiu para servir aos outros. Quando Nelson escolhe a família como núcleo de suas histórias, obriga o espectador/leitor a penetrar em um universo íntimo, no qual os detalhes mais sórdidos passam a ser conhecidos, razão pela qual o desvendamento é termo-chave para a compreensão do desagradável nos textos rodrigueanos.
A análise da família pode, então, ser encarada como algo que estabelece um laço indissolúvel entre o aspecto psicológico e a onisciência e a onipresença do narrador, já que esse, ao entrar em contato com o espaço privado, acaba conhecendo segredos relacionados aos personagens, que, por sua vez, carecem de uma análise mais profunda. Dessa forma, o desvendamento do plano psicológico serve, simultaneamente, para aprofundar a ambiguidade do caráter humano, em se tratando do aspecto individual, bem como sustenta a crítica que estabelece a hipocrisia como principal qualidade social. Defeito ou virtude? Sem dúvida, para Nelson Rodrigues, um defeito a ser exterminado, mas, para a sociedade da época, uma qualidade, afinal, a hipocrisia permitia fechar os olhos para os problemas, propiciando a criação de um universo confortável.
A abertura ao plano psicológico permite que o narrador avance ainda mais no abismo pessoal de cada indivíduo, o que o torna capaz de revelar ao leitor o que de fato se esconde por trás da máscara social. Levado por esse narrador, o leitor/espectador descobre o outro lado da família, que pode, muito bem, em maior ou menor grau, corresponder à dele, afinal, como afirma Renato Gomes da França:
A família, que no espaço público deve brilhar, perde o seu verniz quando vista dentro das paredes da casa. Como um organismo vivo, a casa e a família guardam em seu interior a doença, que espera o momento preciso para se manifestar, como um câncer: Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Pode ser a família mais decente, mais digna do mundo. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão, um cunhado louco. Tudo ao mesmo tempo. (FRANÇA, 2008, p. 19)
Além da oposição entre público e privado, o crítico ressalta a universalidade resultante do recorte familiar, o que justifica o uso da família como metonímia da sociedade em geral. A família do texto rodrigueano pode ser todas as famílias ou qualquer família, razão pela qual, na citação, percebe-se um diagnóstico não só de todas as famílias, mas também de todos os tempos, sem que a família, tal qual é apresentada por Nelson Rodrigues, represente apenas o tempo da escrita da narrativa ou da ação. Ressalte-se ainda a função da família para delinear a dualidade que Nelson concretizou com a divisão de sua obra em duas fases. Concorrem para o confronto entre realidade e idealização a “moralidade de fachada” e a “tradição”, pois são elas que obrigam os personagens a perpetuarem a história de seus antepassados (também falsa), cercada da mesma hipocrisia que revelam os epitáfios ou homenagens póstumas, que tendem a enfatizar as boas ações e esconder as faltas.