Momentos antes de fechar o cartório

Adalberto De Queiroz

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Reabro um velho livro de autoria do escritor alemão Hermann Hesse e nele garimpo palavras para esta nossa conversa de fim-de-ano. “Pequenas alegrias” reúne textos que começaram a ser escritos na juventude, aos 22, e que foram concluídos com as melancólicas considerações do homem enfermo e solitário aos 83 anos. De forma alguma, são artigos superados.

O livro sobrevive ao tempo porque nele Hesse se mantém como “um filósofo do belo e do vital, apologista da simplicidade franciscana e do respeito pelas coisas vivas” – como disse sua tradutora brasileira Lya Luft.

Mais uma vez chega o Menino Jesus, é sua quarta visita desde o início da guerra. E se há sinais de que essa guerra esteja chegando ao fim, hoje ainda não se pode prever o quanto esse dia vai demorar” – diz o artigo intitulado Natal, de 1917.

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Escritor alemão Hermann Hesse

O escritor alemão nasceu em Württemberg, em 1877 e, em 1919, se mudou para a Suíça, onde viveu em exílio voluntário até sua morte em 1962. Na mesma época do artigo citado, Hesse também escreveu poesia – ele que aos treze anos já dizia que “queria ser poeta, ou nada”.

O poema intitulado “No quarto ano de guerra” reflete a esperança do poeta no Amor:

“Embora o mundo se asfixie em guerra e medo,
nalgum lugar,
em segredo, sem que ninguém o veja,
o amor flameja ainda”.

Retorno ao artigo, onde Hesse deseja que:

Todos os que de alguma forma se tornaram vítimas da guerra, sobretudo os muitos prisioneiros em países inimigos, possam celebrar este Natal como uma festa de melancolia, de recordação de amadas coisas perdidas, pátria e infância, paz e felicidade tranquila. E neles ressoará como profundo desejo o “Paz na Terra” [aos homens de Boa Vontade], apregoado pelo evangelho de Natal”.

É a busca por uma “salvação do mundo através do Amor” o valor fundante do pequeno (e poderoso) texto sobre o Natal de Hesse, que acrescenta: “O Natal não nos deve ser, como qualquer festa, um mero olhar para trás, mas um novo impulso de toda a nossa boa vontade. Pois é aos homens de boa vontade que se dirige a promessa”.

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O poeta português Miguel Torga

É essa mensagem de esperança que exalava nas páginas do diário de Hesse, é similar a tantas outras de escritores e artistas que reforçam o valor dos homens de “boa vontade” nesse período do ano.

É assim que faço deste penúltimo recorte lírico do ano minha homenagem a este nobre sentimento.

Pensemos com Hermann Hesse, a partir da ideia de que “temos boa vontade quando tomamos consciência do que há de melhor, mais vivo em nós mesmos, e seguimos a voz dessa consciência”.

Deixemos que a vontade de fazer o bem, de desejá-lo ao Outro e de contribuirmos para o sumo Bem nos invada com a chegada do Natal.

Por certo, o menino Jesus redivivo na lembrança de cada festividade pode reforçar em nós tais convicções, como nestes versos do poeta português Miguel Torga:

Natal (1973)

Todos os anos, nesta data exacta,

Momentos antes

De fechar o cartório

De poeta

— Um registo civil ultra real —,

O mago desse arquivo de presságios

Regista de antemão o mesmo nome

No seu livro de assentos:

— Jesus… — repete com melancolia,

A consumar a morte prematura

Do nascituro,

E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,

Humana criatura,

Continue a ter filhos no futuro

Condenados à mesma desventura.

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