O olhar profundo da memória

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As lembranças aparecem sem respeitar o calendário. Coincidentemente, o olhar profundo da memória voltou-se ao pai que não conheci, às vésperas de ver celebrado o dia dos Pais no Brasil. Mera coincidência que um desespero a mais pode gerar ao cronista.

Como se sabe, o exercício de relembrar fatos passados, de exercitar a memória profunda – processo este conhecido como anamnese tem um efeito estimulador para a criação artística. “Relembrar aquelas experiências que abriram fontes de estímulo, de onde resulta a vontade para mais reflexão filosófica” – conforme o ensino do filósofo Eric Voegelin.

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Entre as “camadas do meu ser” (Gurgel), travo a busca pela correspondência entre livros e sensações, livros e afetos, sentimentos, dores e ilusões.
Alguma alegria resta neste “olhar profundo da memória” – é o que assegura o dizer poético do romeno George Popescu.
O leitor que eu fui desde menino escava “nessa arqueologia/que a transparência também faz tua” e quer encontrar o gentil leitor desta crônica.

Quem sabe, tal eu atendi ao chamado da personagem poética do romeno, não possa o leitor conviver (e superar) “um desespero a mais[i]”?

“…mas não é assim – respondo
com o olhar profundo da memória
se cavares nessa arqueologia
que a transparência também faz tua
irás descobrir – basta que o desejes –
basta que possas ainda querer
irás descobrir todas as pobres existências
que me serviram de escudo e muro de defesa
no tempo mágico de uma só piedade”.

Lembro-me de um momento de “angústia sagrada”: foi só quando estava me inscrevendo para o exame de Admissão” ao Ginásio que, pela primeira vez, tive em mãos minha certidão de nascimento.
Exasperado, descobri duas coisas sobre a minha origem que me deixaram ainda mais inseguro. Uma delas apenas me interessa hoje e foi gritante à época – nome do pai: IGNORADO.

Sabíamos todos os meninos do Abrigo em Anápolis (GO) que éramos de alguma forma nós próprios ignorados por pais, mães, parentes próximos e distantes. Vez por outra, aparecia um tio, uma tia a visitar-me.

A genitora – que não tendo sido mãe por afeto, pelo menos tinha o nome na certidão – esta veio visitar-me quando eu já estava no Ginásio. A avó, sim, vinha com frequência, apesar das dificuldades de locomoção. Entrei no ginásio procurando o primeiro lugar e o pai, sem jamais ter respostas dos poucos parentes que apareciam no dia de visitas.

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Hoje, retiro da estante meu exemplar em francês de “O primeiro homem”, romance inacabado de Albert Camus, publicado em 1994. Lembro-me da emoção com que li aquela primeira parte “A procura do pai”.

O olhar profundo da memória 1

Sabemos através de Eurídice Figueiredo[ii] que “Camus carregava o manuscrito de “O primeiro homem”, quando o carro em que viajava bateu numa árvore, provocando sua morte, em 1960. Trata-se de um romance autobiográfico, que tenta reconstituir a vida de seu ´alter ego`, Jacques Cormery, desde a infância, a vida dos seus pais e, de modo geral, a colonização francesa da Argélia. Diferentemente de seus outros romances, a história contada em “O primeiro homem” se aproxima demais de sua biografia.”

Com que emoção, em 1994, o menino feito homem, agora com direito a viagem à França, leu os trechos que estão sublinhados no livro original, da pág. 179 a 182. A mesma “angústia sagrada que sobre os flancos das montanhas de Delfos, a noite produz o mesmo efeito, fazendo surgir os templos e os altares…” – eis-me, relendo em voz alta e traduzindo livremente:

“Não, ele jamais conheceu seu pai, que continuará a dormir à distância, o rosto perdido para sempre nas cinzas. Havia um mistério neste homem, um mistério que ele desejava captar, mas, enfim, não havia senão o mistério da pobreza que faz das pessoas seres sem nome e sem passado, que os reúne numa multidão de mortos sem nome, num mundo que se vai desfazendo para sempre…”
“E ele que quisera escapar do país sem nome, da multidão e da família sem nome, mas fora sempre alguém que nunca havia deixado de reivindicar obstinadamente a obscuridade e o anonimato, ele também fazia parte da tribo (…), [ele] caminhando na noite dos anos nessa terra de esquecimento onde cada um era o primeiro homem, onde ele próprio precisara educar-se sozinho, sem pai, nunca tendo vivido esses momentos em que o pai chama o filho (…).
“Ele tinha tentado escapar ao anonimato, à vida pobre, ignorante, obstinada, não pudera viver no mesmo plano dessa paciência cega, sem frases, sem nenhum outro projeto além do imediato. Havia corrido o mundo, construído, criado, rejeitado pessoas, seus dias tinham sido cheios a mais não poder…”

E, como tal, Anápolis para o cronista pode ser repensada como uma espécie de Saint-Brieuc (a cidade do alter ego de Camus), pela tomada de consciência de que a sua verdadeira pátria não é aqui, nem tem tais cidades como centro; pois, nada sou além de um “peregrino do Ser”, exilados que somos todos nesta terra; alguns – como este cronista, fortalecendo a fé, à espera do retorno ao Paraíso Celeste.

E para encerrar deixo o registro desta anamnese que gerou poema inédito, fruto deste “olhar profundo da memória”:

Pai ignorado

Eu não acompanhei o enterro
Do pai que nunca conheci.
De minha carne, não erro:
nem o nariz do morto eu vi.

Albert Camus enterrou o pai dele.
O primeiro homem – um estertor.
A dor dele em Alger, eu senti na Vila Jaiara –
e, em vão procurei, sem nunca o ter visto – pai!

Rodasse o mundo inteiro,
não o veria – ,
mas no lago à tarde,
por ordem de Santo Ignacio de Loyola,
pranto suave verti…

– E dei Adeus! ao pai ignorado.

Eu o vi ao cair da tarde no ribeirão
João Leite – e enterrei-o, sozinho:
feito cai o lírio do Chile,
na secura do meio-dia.

Acólito de la solitude, parti.
Parti e nunca mais lembrei
dele, nem do registro civil.

Ignorado confronto:
a grafia númida,
nímia de meus dias.

Filho do pecado, no dia dos pais –
levo presente pra minha tia.


[i] POPESCU, George. “Caligrafia silenciosa”, seleção e tradução de Marco Lucchesi – Rio de Janeiro: Rocco Jovens Leitores, 2015, p. 37 (poema intitulado “Um desespero a mais”).

[ii] FIGUEIREDO, Eurídice. “Albert Camus entre guerras: de Combat a O primeiro homem“, link consultado em 30/07/19 – https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/76260/46108

9 thoughts on “O olhar profundo da memória

  1. Que maravilha de crônica compadre-irmão! Eis que você me fez lembrar de algo que me incomodou quando a sua afilhada estava na barriga da mãe: como eu seria um bom pai, se não sabia como era um bom pai? Certo é, acredito piamente nisso, que eu e você somos bons pais e nossos filhos nos amam. Deus e São José, nos ajudaram e ajudam nessa missão. Fraterno abraço!

  2. Você já deve saber que sou extremamente emotiva e meus olhos me traem quando leio uma crônica como essa. Você é um grande homem, que ao expor suas lembranças se faz ainda maior.

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