A semântica da cor no filme “Herói”, de Zhang Yimou

Verônica Daniel Kobs

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Em Herói (2002), de Zhang Yimou, sofisticação e simplicidade determinam a plasticidade das imagens, em diversas sequências do filme. A primeira qualidade aparece na escolha de uma cor predominante e na composição da cena, a partir do uso da tonalidade escolhida e de seus matizes. O caráter simples reside na utilização de figurino e cenário elementares, que preservam a essencialidade do sentido da cor, sem desviar a atenção do espectador.

Uma paleta variada de cores, no filme, representa a diversidade de pontos de vista, em um processo que transforma o rei e o espectador em ouvintes/leitores/intérpretes das narrativas do protagonista, Sem Nome. Dessa forma, o a história contada é constantemente retomada, refeita e ampliada. Desempenhando os papéis de narrador e ouvinte, respectivamente, o rei e Sem Nome enredam-se em um jogo argumentativo e retórico, tendo o próprio público como testemunha e como terceiro jogador.

Na produção cinematográfica dirigida por Yimou, o teor imagético e a lentidão são essenciais, de modo a obedecer às características recorrentes nos filmes europeus e em parte do cinema oriental. Aliás, nesse aspecto, a sétima arte aproxima-se mais da espacialidade da pintura. Isso garante a intermidialidade, sem dúvida nenhuma. No entanto, Herói vai muito além desse cruzamento e também faz uso dos recursos da mídia literária, de assinalado aspecto temporal. Evidentemente, a estrutura simples e linear é substituída pela narrativa frequentemente interrompida, cujos flashes, sempre associados a uma cor específica, alteram significativamente a história.

Durante o filme, cinco cores e cinco versões são apresentadas. De início, a combinação entre cinza e amarelo pálido representa indefinição:

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Figura 1: O combate em preto, cinza e amarelo Imagem disponível em: http://kungfudoc.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Filme-Heroi-kungfudoc.com_.br_.jpg

As duas cores se complementam, considerando que o cinza é resultante do atenuamento da cor preta: “O amarelo se separa do negro no momento da diferenciação do caos […]. O amarelo emerge do negro, na simbologia chinesa […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 41). Quanto ao cinza, o sentido de indefinição está no fato de esse tom ser intermediário. Em outras palavras, o gris mediano aparece sempre nas “passagens de uma a outra [cor] e dos inumeráveis pares de contracores” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 249).

Em seguida, surge a cor vermelha, que corresponde à paixão e ao impulso:

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Figura 2: O vermelho e seus matizes Imagem disponível em: http://evanerichards.com/wp-content/uploads/2006/09/Hero20-580×250.jpg

Na cultura japonesa, “a cor [vermelha] é usada quase que exclusivamente pelas mulheres” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946). Quando raramente é usada por homens, aparece na roupa dos recrutas japoneses, que “usam um cinto vermelho no dia de sua partida” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946). Além disso, o vermelho sugere: “[…] ação e paixão, libertação […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 946).

O terceiro segmento narrativo, dominado pela cor azul, está associado ao amor verdadeiro e ao equilíbrio:

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Figura 3: As variações de azul, em Herói Imagem disponível em: https://www.asia.cinedie.com/images/hero07.jpg

Já o azul, conforme Chevalier e Gheerbrant (2009), é a cor mais profunda que existe e simboliza pureza, imaterialidade e “verdade” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 108).

Quase ao final do filme, o branco, soma de todas as cores, traz a paz e a verdade:

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Figura 4: Sequência que apresenta a cor branca, no filme Imagem disponível em: https://i.pinimg.com/originals/09/06/aa/0906aa881c2e1836da76b3bf1688575f.jpg

A totalidade do branco é garantida, porque esse tom está “situado no ponto de junção do visível e do invisível e, portanto, é um outro início” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 141).

Por fim, o verde, relacionado à juventude, completa o panorama, ao revelar o início da história de amor do casal protagonista:

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Figura 5: A complementaridade em dois tons de verde Imagem disponível em: https://www.cafecomfilme.com.br/media/k2/galleries/203/04.jpg

A cor verde, definida, em sua simbologia, por seu “valor médio, […] entre o calor e o frio, o alto e o baixo, equidistante do azul celeste e do vermelho infernal – ambos absolutos e inacessíveis – é uma cor tranquilizadora, […]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 938-939) e que sinaliza “juventude eterna” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 939-940).

Observando atentamente a sequência das cores utilizadas pelo diretor, concluímos que as tonalidades puras predominam, no início da história. Consequentemente, as cores frias e secundárias assumem a narrativa aos poucos. Percebe-se, também, em dois momentos da história, a mescla de tons. Na passagem do amarelo para o vermelho, o cenário ganha tons de alaranjado, cor que resulta da soma das duas cores puras em destaque, na transição cromática pensada por Yimou. Da mesma forma, entre as cores branca e verde existe uma influência, pois o verde vivo e vibrante torna-se claríssimo, assumindo a tonalidade vede-água, resultante da mistura do verde e do branco, como se a maturidade e a verdade tentassem controlar e equilibrar os arroubos da juventude. Aliás, o branco, ao final, relaciona-se com a ideologia do rei de Qin e de Espada Quebrada.

Como última observação, vale enfatizarmos a intermidialidade, já que o cinema, a partir de empréstimos da pintura e da literatura, amplia suas potencialidades expressivas. Isso significa que a recorrência à metalinguagem, por meio dos flashbacks, não implica apenas a reconfiguração da narrativa, mas também a do próprio cinema como arte.

REFERÊNCIAS

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 24 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

HERÓI. Direção de Zhang Yimou. China; Hong Kong; EUA: Beijing New Picture Film Co., China Film Co-Production Corporation, Elite Group Enterprises, Sil-Metropole Organisation e Zhang Yimou Studio; Edko Films, Beijing New Picture Film Co. e Miramax Films, 2002. 1 DVD (158 min); son.

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