Coco: O lado bom da morte
O filme Coco (EUA, 2018), de Lee Unkrich e Adrian Molina, é uma celebração aos mortos e à vida. Quando assisti pela primeira vez, logo que foi lançado, duas coisas me chamaram a atenção: a naturalidade dada à temática da morte; e a presença de Frida Kahlo no desenho. Como sabemos, a pintora mexicana sempre teve estreita relação com o sofrimento e a morte. Então, anotei a ideia de escrever um texto sobre isso e esqueci por um tempo. Porém, agora, quando acabamos comemorar o Halloween e o Dia dos Mortos, resolvi dar vida a este projeto. Em minhas pesquisas recentes, descobri várias coisas inusitadas sobre a morte para os mexicanos, o que, com certeza, oferece-nos uma perspectiva singular sobre o assunto. No Brasil, Coco foi lançado com o título Viva: a vida é uma festa. Evidentemente, com essa escolha, Socorro (ou, simplesmente, Coco), a bisavó do garoto Miguel, perde sua ênfase. Aliás, na versão brasileira do desenho, ela se chama Inês. Entretanto, a ambiguidade alcançada pelo título usado no Brasil foi no mínimo interessante, já que viva nos remete à interjeição de alegria e festividade, ao mesmo tempo em que nos impulsiona a viver, pelo uso do verbo no imperativo. Sem dúvida, essa duplicidade é bem adequada ao significado da morte para a cultura mexicana, como veremos a seguir.
No filme, isso é demonstrado em diversas cenas. Logo no início da história, utiliza-se a conhecida metáfora da morte como viagem. A diferença é que o reino dos mortos é mostrado como destino dos sonhos: um lugar organizado, bem frequentado e com um luminoso portal de boas-vindas. Ao cruzá-lo, todos têm de passar pelo inspetor da imigração e da alfândega (Fig. 1):
Considerando a estética predominante, Coco pode ser classificado como cartoon de longa-metragem. Contudo, o filme mescla, em sua produção, outros elementos midiáticos, associados à gastronomia, música, canto, dança e pintura. É justamente nessa relação intermidiática que surge o personagem de Frida Kahlo (Fig. 2):
Além da fisionomia, dos trajes e da caracterização na maquiagem e nos cabelos, o personagem tenta reproduzir os hábitos e o estilo da artista. Nas cenas representadas abaixo (Fig. 3), são visíveis as semelhanças nos elementos usados por Frida, em suas telas: frutas, animais e ela mesma, já que a maioria de suas pinturas é autobiográfica. Outro detalhe significativo é a metalinguagem, sinalizada nas imagens a seguir, que mostram Frida, no desenho animado e na vida real, em seu ateliê, pintando a si mesma:
Em Coco, na sequência em que o garoto Miguel conhece Frida, os elementos recorrentes na arte da pintora (mencionados no parágrafo anterior) são realçados (Fig. 4). Inclusive, na animação, Frida chega a interferir nos desenhos de todas as suas telas. As sementes do mamão, por exemplo, transformam-se em aranhas, que trazem o rosto e o penteado inconfundíveis de Frida. Posteriormente, essas aranhas passeiam por um cacto, também semelhante à artista mexicana:
De fato, a relação das cenas de Coco com os detalhes pictóricos das obras de Frida Kahlo é inegável. O mamão, mostrado acima, aparece em Natureza morta: viva a vida, ao lado de outras frutas tropicais, cocos, castanhas e de um pássaro, provavelmente um tentilhão mexicano (da espécie denominada Geospiza). Já, em O abraço de amor do universo, os cactos são os elementos naturais que aparecem em profusão, cercando as figuras principais, que representam Frida e Diego Rivera (Fig. 5):
A qualquer tempo, e em qualquer sociedade, as telas de Frida Kahlo chamam atenção pela intensidade, pois representam paixão, sofrimento e morte. Entretanto, levando em conta o aspecto social da arte, podemos afirmar que essas características estão intrinsecamente associadas às origens e ao repertório cultural da pintora, os quais ela sempre mostrou com muita ênfase. Claro que essa postura causou surpresa e incompatibilidade inúmeras vezes, sobretudo quando estava em jogo a associação de culturas tão diversas, como a mexicana e a norte-americana, por exemplo. Nesse sentido, o quadro O suicídio de Dorothy Hale sintetiza muito bem essa diferença (Fig. 6):
A tela foi encomendada por Clare Luce, da revista Vanity fair. O objetivo era presentear a mãe de Dorothy com uma homenagem à filha, que tinha cometido suicídio recentemente. Coerente com a cultura norte-americana, Clare esperava um retrato convencional da amiga, para representar seu esplendor em vida. Porém, Frida, como boa mexicana, tinha outra concepção a respeito da morte, razão pela qual decidiu eternizar o suicídio de Dorothy em uma pintura votiva (que segue a tradição dos ex-votos). Essa perspectiva é a que predomina ao longo de toda a história de Coco. No filme, os mortos são definidos desta maneira: “Não se trata só de pessoas. São sua família e eles contam com a gente pra lembrar deles” (COCO, 2018). Isso significa que os vivos mantêm os mortos. Portanto, quando os vivos deixam de homenagear ou lembrar aqueles que já se foram, os mortos somem para sempre. Em linhas gerais, a tela que Frida pintou para a mãe de Dorothy tentava representar essa ideia, eternizando sua presença junto à família e fazendo uso da morte como símbolo de liberdade e redenção.
Conforme Rossi, os “ex-votos remontam aos ritos pagãos da Antiguidade, assimilados pelos cristãos no início do século IV. […]. A prática se popularizou, difundindo-se na Europa meridional e central ao longo do século XVII” (ROSSI, 2019).
O ex-voto é tão comum na cultura mexicana, que, na Casa Azul, residência oficial de Frida, ela e o marido, Diego Rivera, guardavam uma coleção com 450 peças (SETTE, 2019). Inclusive, Diego estudou esse tipo de pintura, chamado de retábulo, ressaltando o valor místico e histórico dessa arte, principalmente para o período de transição colonial no México, durante os séculos XIX e XX (RIVERA, 2019). No que se refere à Frida, a artista pintou seu próprio ex-voto, depois do trágico acidente que sofreu, na adolescência (Fig. 7):
Analisando detidamente a tela Retábulo, de Frida, Rossi enumera as semelhanças com os tradicionais ex-votos: “[…] a narrativa pictórica do acidente extremamente realista, a santa evocada num canto do quadro, e o texto na parte inferior, que descreve o motivo da graça alcançada. […]. As cores fortes do quadro remetem ao colorido dos ex-votos mexicanos e também às pinturas astecas” (ROSSI, 2019). Para a maioria das pessoas, as cenas trágicas, que se associam à morte ou a graves doenças, são vistas como desrespeito ou mau agouro. Justamente por isso devemos levar em conta a especificidade cultural que serve de base a esse tipo de arte e tradição. Portanto, ninguém melhor que outro mexicano, como o diplomata e escritor Octavio Paz, para esclarecer mais sobre o assunto. Segundo ele, o “culto à morte é um culto à vida (EL PAÍS, 2019). Complementando essa afirmação, o jornal El país publicou uma lista que conta ao mundo como a cultura mexicana comemora o Dia dos Mortos:
Famílias inteiras vão aos cemitérios com cerveja e comida, que são decoradas com uma flor de outono. Tem até mariachis e trios especializados em ir cantar nas tumbas para animar o ambiente.
[…] há até desenhos animados que explicam o Dia dos Mortos. [As crianças] recebem um presente por esta data, chamado de
calaverita (caveirinha). […].
Escrevem-se versos predizendo a morte dos outros. São as chamadas caveirinhas literárias: pequenos poemas irônicos e satíricos dedicados a uma pessoa viva – especialmente a políticos – que tratam de seu inevitável encontro com a morte.
[…] no cemitério de Pomuch, uma região maia, os corpos são exumados e os ossos passam por uma limpeza a cada 2 de novembro. (EL PAÍS, 2019, grifo no original)
Na mesma reportagem, o jornal fornece um link que dá acesso a um curta de animação, intitulado Dia de los muertos, assinado por Ashley Graham, Kate Reynolds e Lindsey St. Pierre. Na história, uma garotinha que está chorando sobre o túmulo da mãe, é levada para uma excursão pelo mundo dos mortos. Lá, ela é recebida por Catrina, que lhe ensina sobre a morte e sobre as festividades típicas do mais importante feriado mexicano. Nas cenas a seguir, Catrina retira um dos braços para tentar quebrar a pichorra (Fig. 8). Nessa sequência, é fundamental percebermos a beleza de Catrina e a recorrência do humor negro.
Assistindo ao desenho Dia de los muertos, é impossível não fazer comparações com Coco. Assim como Catrina é a guia da garotinha, no curta mexicano, Hector, também um esqueleto, é o guia de Miguel em sua aventura pelo mundo dos mortos. Aliás, na cena a seguir, Hector age exatamente como Catrina, fazendo malabarismo com os próprios ossos e juntando-se ao amigo vivo, em um momento de pura diversão. Em Coco, Hector e Miguel fazem uma dupla, cantando a música Un poco loco, em um festival de calouros (Fig. 9):
Outra música que ganha destaque em Coco é La llorona (A chorona), pelo fato de representar o estilo folk mexicano, ao tratar de uma figura lendária. Além disso, a canção apresenta versos que falam do ciclo ininterrupto da vida e da morte (Fig. 10). Por essas razões, essa música também foi usada no filme Frida (EUA, 2002), de Julie Taymor.
Voltando à relação peculiar da cultura mexicana com a morte, vale a pena citar uma reportagem publicada no jornal Milênio, que registrou a declaração de Andrew Chesnut sobre o culto à Santa Muerte (Fig. 11): “Puedo afirmar que el culto a la Santa Muerte es el movimiento religioso que más crece, tanto en México como en toda América, desde Argentina hasta Canadá. Estimo que tiene cerca de 12 millones de devotos, la gran mayoría en México y Estados Unidos, pero también esa devoción crece en Centroamérica” (MEDEL, 2019).
Sem dúvida, essa representação da Santa Muerte é reveladora no que diz respeito ao modo como os mexicanos encaram a vida, o sofrimento e a perda, que, em se tratando da morte, não é algo definitivo para eles. Panceri nos lembra de que o feriado do Dia dos Mortos no México é uma comemoração (Fig. 12) “considerada pela Unesco como patrimônio da humanidade” (PANCERI, 2019). De acordo com o mesmo autor: “Se, no Brasil, a data é sinônimo de cemitérios lotados e melancolia, no México a animação toma conta, pois se acredita que os mortos devem ser recebidos com alegria e coisas de que gostavam enquanto vivos” (PANCERI, 2019).
Depois de pesquisar todas essas coisas sobre a morte, no que se refere ao México, lembrei alguns fatos e constatei que outras culturas também guardam uma admiração bastante peculiar por cadáveres. Achei histórias interessantes sobre isso, no século XIX, em vários países. Na Inglaterra, por exemplo, durante a Era Vitoriana, era comum “fazer imagens dos falecidos — e até mesmo juntar-se a eles no registro” (BELL, 2019). Ainda segundo Bethan Bell, esse costume tornou-se mais comum na década de 1850, quando “surgiram procedimentos ainda menos custosos” (BELL, 2019) que os antigos daguerreótipos. “Assim, os ‘retratos da morte’ se tornaram incrivelmente populares. Para muitas famílias, era a primeira chance de tirar uma foto conjunta, e ao mesmo tempo a última de ter uma lembrança de um ente querido” (BELL, 2019, grifo no original). Aliás, muitas pessoas acreditavam (e ainda acreditam, pois já ouvi afirmações a esse respeito) que a câmera tem o poder de capturar a alma de quem é fotografado. Sob essa perspectiva, é como se o registro da imagem pudesse eternizar uma pessoa especial, guardando-a para sempre.
Esse hábito só entrou em declínio na metade do século XX, já que, em 1948, foi inventada a Polaroid, que permitia a fotografia instantânea: “Primeiro, a qualidade dos serviços de saúde britânicos melhorou e aumentou a expectativa de vida da população, em especial a infantil. E o surgimento da fotografia instantânea permitiu que pessoas tirassem fotos uma das outras em vida, o que basicamente derrubou a demanda pelos ‘retratos da morte’” (BELL, 2019, grifo no original). Evidentemente, a Polaroid não se popularizou imediatamente, de modo que o costume de fotografar os mortos ainda perdurou por algumas décadas (Fig. 13). Na família do meu marido, de ascendência alemã, já ouvi histórias relacionadas a isso: minha cunhada até hoje guarda a foto do corpo do pai dela, que morreu enforcado; e minha sogra guardava uma caixa, com fotos dos vivos e também dos mortos, as quais costumava mostrar aos filhos (mesmo quando eles eram crianças) e às visitas. De fato, meu marido conta que viu várias fotos de crianças mortas (com a família ou sozinhas) e também de adultos mortos, sentados em cadeiras.
Em outro estudo, Vanessa Schwartz conta que, ao final do século XIX, em Paris, “o necrotério atraía tanto visitantes regulares quanto grandes multidões de até 40 mil pessoas em seus dias mais movimentados, quando a história de um crime circulava na imprensa popular e os visitantes curiosos faziam fila na calçada à espera de andar em fila pela salle d’exposition para ver a vítima” (SCHWARTZ, 2001, p. 413). Sem dúvida, naquela época, um dos fatos mais marcantes ocorreu em 1886, quando o necrotério exibiu, por quase 10 dias, o cadáver de uma criança de 4 anos, que tinha sido encontrada morta, na rua. “Na época, Le Matin estimou que 150 mil pessoas haviam feito fila para ver o corpo […]. A cada noite, o cadáver era colocado em uma caixa refrigerada para preservá-lo” (SCHWARTZ, 2001, p. 417). Na ocasião, o trânsito foi interrompido “e os vendedores vendiam coco, pão de gengibre e brinquedos” (SCHWARTZ, 2001, p. 417).
Considerando todos os fatos que pude apurar, nesta pesquisa fascinante sobre a morte (afinal, acho que mudei um pouco meu modo de encarar esse momento de perda), escolhi ressaltar, neste fechamento do texto, a sabedoria popular e inegável do memento mori. Conforme Bauman, trata-se de um processo humano, que pode ser sintetizado desta forma: sempre que a ideia da morte surge, acabamos por valorizar mais a vida:
A advertência memento mori, lembrar-se da morte, […] é uma afirmação do impressionante poder dessa promessa de lutar contra o impacto imobilizante da iminência da morte. […]. Lembrar a iminência da morte mantém a vida dos mortais no curso correto — dotando-a de um propósito que torna preciosos todos os momentos vividos. (BAUMAN, 2008, p. 47)
Nesse sentido, de modo divertido e emocionante, o filme Coco nos lembra da história secular de nossa família e da passagem do tempo. Para aqueles que quiserem complementar essa ideia, indico o documentário Nós que aqui estamos por vós esperamos (BRA, 1999), de Marcelo Masagão. Evidentemente, essa dica não vai gerar riso, mas alguma angústia e perplexidade. Entretanto, o filme de Masagão, assim como Coco, surpreende pela demonstração da inexorabilidade do tempo, do destino, da ação da vida e da própria morte. Ambos os filmes nos fazem experimentar o memento mori, mas de maneiras completamente distintas, a fim de que nos tornemos mais conscientes do fato de que nossos entes queridos, que já se foram, representam um pouco de nós mesmos. Todos eles contam nossa história. Não há razão para termos medo, afinal, de algum modo, os mortos somos nós. Eles nos contam de onde viemos, quem somos e nos lembram da trajetória que devemos seguir, antes do fim inevitável.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
BELL, B. A perturbadora arte de fotografar mortos. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-36461785>. Acesso em 24 out. 2019.
COCO. Direção de Lee Unkrich e Adrian Molina. EUA: Pixar Animation Studios; Disney e Buena Vista, 2018. 1 DVD (125 min); son.
EL PAÍS. Onze razões pelas quais o México vive a morte como nenhum outro país. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/01/sociedad/1414853802_175512.html>. Acesso em: 24 out. 2019.
GRAHAM, A.; REYNOLDS, K.; St. PIERRE, L. Dia de los muertos. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/01/sociedad/1414853802_175512.html>. Acesso em: 24 out. 2019.
MEDEL, L. S. Tienen más fe en la muerte… que en la Virgen. Disponível em: <https://sipse.com/mexico/aumenta-el-fervor-a-la-santa-muerte-en-mexico-y-america-106260.html>. Acesso em 24 out. 2019.
PANCERI, R. Dia dos mortos é comemorado em festa cheia de alegria no México. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/turismo/2016/10/30/interna_turismo,554824/dia-dos-mortos-e-comemorado-em-festa-cheia-de-alegria-no-mexico.shtml>. Acesso em 24 out. 2019.
RIVERA, D. Los retablos: Verdadera actual y única expresión pictórica del pueblo mexicano. <http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/THEARCHIVE/FullRecord/tabid/88/doc/734088/language/en-US/Default.aspx>. Acesso em 28 out. 2019.
ROSSI, E. A. O suicídio de Dorothy Hale: Um exemplo de permanência das pinturas votivas na arte de Frida Kahlo. Disponível em: <https://www.hacer.com.br/dorothy-hale>. Acesso em 24 out. 2019.
SCHWARTZ, V. O espectador cinematográfico antes do aparato do cinema: O gosto do público pela realidade na Paris fim-de-século. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V. (Orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 411-440.
SETTE, R. Ex-votos, a arte de dar graças no México. Disponível em: <https://www.360meridianos.com/especial/ex-votos-arte-mexico>. Acesso em: 24 out. 2019.
Bravo! bela pesquisa, professora Verônica.