Algumas notas sobre Pushkin (parte 2)
Leia a primeira parte das “notas sobre Pushkin” clicando aqui
Na primeira crônica desta série, procurei situar o leitor sobre a vida do poeta russo Alexandr Pushkin e o meio em que escreveu. Negro, viveu entre eslavos, descendente de escravo africano viveu dentre a nobreza russa, nobre por direito e nobre de coração, Pushkin se tornou, com apenas 20 anos de carreira literária, o maior poeta russo de todos os tempos.
Pushkin é aclamado como o maior poeta russo dos século XIX e o criador daquilo que Carpeaux chama de “uma literatura universal em língua russa”. Tendo falecido antes de completar 38 anos e, 220 anos depois, ainda é considerado por muitos como o maior poeta russo de todos os tempos e influência decisiva não apenas entre seus compatriotas (como Gogol, Dostoiévski etc), mas entre poetas de todo o mundo.
Morto em consequência de ferimentos sofridos num duelo – que poderia ter vencido, porque era bom atirador –, o poeta foi talvez a vítima de sua popularidade. Servidor do czar e admirado pelo povo, foi talvez vítima de armadilhas e do ciúme que rondava a sua casa; e, assim, o antagonista é o cunhado, o oficial francês Georges D´Anthès, que pode ser considerado o lado C do triângulo amoroso com Natália Gontcharova, a esposa do poeta.
Hoje, passados mais de cento e oitenta de sua morte, Alexandr Pushkin continua nos desafiando com seus versos e suas histórias (em versos), como um dos poetas canônicos da literatura russa e influenciador de uma infinidade de escritores em todo o mundo.
Voltemos ao famoso discurso proferido por Dostoiévski ao pé do monumento ao poeta:
Pushkin morreu quando seus poderes estavam no mais completo desenvolvimento como escritor e sem dúvida levou consigo para o túmulo algum grande segredo. E agora, com sua ausência, nós tentamos adivinhar qual é este segredo.
A tentativa de descobrir este “segredo do poeta” motivou toda uma espécie de hagiografia em torno de seu nome, que começou com seu enterro (1837) – que, como disse, causou grande comoção nacional; foi quando se iniciou o processo que culmina com o status de “strastotérpets”, em russo “portador da Paixão”, designação dada àqueles que enfrentam a morte de uma maneira parecida com a de Cristo; é um dos vários títulos habituais para santos no catolicismo ortodoxo.
Essa espécie de culto em torno do poeta se disseminou sobretudo entre os mais humildes russos que viam no poeta uma feição profética, e se confirmou com uma monumental série de artigos do influente crítico Belínski, contemporâneo de Dostoiévski, e culminou na famosa frase de Apollon Grigorev, cunhada em 1859 e que dominou os debates em torno do significado da vida e obra do poeta – “Pushkin é nosso tudo!”.
Essa frase tornou-se, segundo Joe Andrew, “uma espécie de leitmotiv-chave para os estudiosos do autor russo” e surgiu quando as obras do poeta passaram ao domínio público em 1887, uma verdadeira avalanche de livros de Pushkin chegou às livrarias em todo o mundo.
No centenário da morte do poeta (1937), com os comunistas no poder, as autoridades e os fãs do poeta não se contentavam mais em celebrar o dia do seu aniversário, então se instaurou um “Ano Pushkin” e os discursos subiram o tom de louvação; porque os donos do poder queriam gerar a sua versão própria de Pushkin e resolveram consagrá-lo como “quase divindade”, distribuindo massivamente as obras do poeta às escolas públicas russas.
Malgrado esse sucesso internacional decorrente da multiplicação das traduções das obras de Pushkin ao redor do mundo, o português não estava incluído no rol dos idiomas em que se podia encontrar um acervo representativo da obra de Pushkin, pendendo a balança mais para as publicações ocorridas em Portugal, nem sempre traduções diretamente do russo.
No Brasil, o tradutor Dário Castro Alves registra um fato inusitado, ou seja, que o poeta russo teria traduzido um soneto de Tomás Antônio Gonzaga, de 1826/27, para o russo, a partir de um texto de “Marília de Dirceu”.
O empenho do então jovem diplomata Dário Moreira Castro Alves começa, pois, a dar seus frutos nos anos 2000, quando depois de inúmeras horas de “sacrificante trabalho… uma tarefa esfalfante”, Dário dá a público “Eugênio Oneguin” – a mais conhecida obra de Pushkin, traduzida diretamente do russo para o português do Brasil, num exuberante trabalho de dez anos, trazida a público em edição bilíngue contendo 390 estrofes, 5523 versos inseridos em oito capítulos e mais um capítulo especial, menor, constituído por “Fragmentos de viagem de Eugênio Oneguin”.
Procurei, na medida do possível, utilizar na tradução, respeitando o sentido de como pudesse fazer, formas consagradas por grandes poetas clássicos portugueses e brasileiros, mestres da rima como Camões, Bocage, Olavo Bilac, Raimundo Correia, e temperar com o uso constante dos particípios passados ou terminações em ´mente`. É sabido que Pushkin avançou muito no esgotar as rimas da língua russa. Procurei utilizar composições com adjetivos clássicos de prosadores ou poetas da língua portuguesa. Utilizei em Oneguin adjetivos como o machadianíssimo ´casmurro`. Após o texto da carta de Tatiana, no final do capítulo 3, pretendi dar um certo “tom de Inês de Castro” nas reflexões feitas por Pushkin sobre Tatiana.
Dário Castro Alves foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos, na Rússia e em Portugal. Conforme relato do escritor português Antônio Valdemar, depois de 41 anos de carreira, Dário decidiu, em 1999, radicar-se em Lisboa, optando pela dupla cidadania. Membro da Academia das Ciências e da Academia Portuguesa de História, Dário é autor dos excepcionais estudos sobre Eça de Queirós – “Era Lisboa e chovia” e “Era Tormes e amanhecia” – um dicionário de termos sobre a obra de ficção, cartas, artigos e discursos do escritor português; e o segundo, dicionário gastronômico de Eça, com cerca de 4500 alusões condensadas em 400 verbetes; além do dicionário de vinhos e outras bebidas citadas na obra do Eça – “Era Porto e entardecia”.
Em Portugal, há mais livros de Pushkin à disposição do público leitor, incluindo o famoso “Diário secreto: 1836-1837”. A própria editora responsável pelo lançamento do Diário em Portugal informa em seu site que “muita especulação e muito mistério têm rodeado este diário. Diz a lenda que o testamento de Pushkin estipulava que o diário não poderia ser publicado antes de decorridos cem anos sobre a sua morte. Mas há quem afirme que “o diário nunca existiu.”
E mais se especula: “o fato é que o diário existe mesmo e consiste em confissões explícitas sobre as relações íntimas de Pushkin com a mulher, as duas irmãs dela e outras mulheres, que acabaram por arrastá-lo para um fim trágico. Estes acontecimentos e revelações surpreendentes trazem à luz pormenores desconhecidos da vida de Pushkin – a vida de um Dom Juan russo do século XIX.”
O diário cobre os dois últimos anos da vida do poeta e se abre dedicado à sua esposa Natália, com vislumbres de premonição do terrível destino que lhe esperavam. Pushkin fala da “enfermidade incurável de escrever” como “uma enfermidade mortal” e diz que deseja com o diário “confessar a alma ao papel”.
E a confissão assume ares de profecia:
…dentro de uns duzentos anos, quando seguramente estará abolida a censura na Rússia…este meu diário haverá de ser publicado antes na Europa, ou mais provavelmente na América. É sombrio pensar que àquela época não só não estarei vivo como até meus ossos estarão totalmente apodrecidos...
Vejo minha mão que escreve estas linha e trato de imaginá-la morta, como parte do meu esqueleto, enterrado no chão, e ainda que eu saiba que meu destino é inexorável, falta-me capacidade para imaginá-lo. A certeza da morte é a única verdade inapelável e, apesar disso, a coisa mais difícil de apreender intelectualmente, ao passo que aceitamos qualquer mentira, reconhecemo-la facilmente e sem sequer pensar.
E o que dizer deste sátiro encabulado chamado Alexandr Sergueievitch Pushkin? A edição do “Diário secreto” que tenho comigo, garimpada em um sebo, não passa nenhuma segurança de que seja mesmo autêntico e prefiro, às depravações confessadas num verbo rasgado, devasso mesmo, os textos canônicos e autênticos do poeta de Oneguin e do Cavaleiro de bronze. Deixo ao leitor o escrutínio, e deixo-lhe esta amostra (poema sem título):
Não, não dou valor ao delírio arrebatado,
À doida fúria sensual, aos extasiados
Gemidos, aos ganidos da jovem bacante
Que em meus braços, como cobra ondulando,
Com beijos mordidos, as carícias ardentes,
Apressa os últimos estremecimentos!
Quanto mais querida és, ó minha resignada!
Que torturante é, contigo, a minha felicidade,
Quando, enfim submissa ao meu longo suplicar,
Te entregas, terna e sem enlevos, devagar,
Fria, envergonhada, ao meu arrebatamento,
E não atendes a nada, mal respondendo,
Mas te avivas depois, mais e mais, sem o supor,
E te partilhas toda, enfim, no meu furor!
[1831]
O poeta conquistador, que alguns críticos denominam como uma espécie de sátiro da poesia russa, aparece em algumas notas aqui, e mais intensificadas no “Diário secreto”. No fragmento acima, ele se mostra como o poeta que irá morrer dali a seis anos depois, por uma briga por questões de amor e de honra, no duelo com o cunhado Georges d’Anthès.
É essa, basicamente, a trama do filme “O escândalo Pushkin”, de Natalya Bondarchuk (2016) e o tema deste poema “Bardo[i]”:
Ouvistes na floresta a voz nocturna
Do bardo do amor, da tristeza o bardo?
A voz da flauta, simples e soturna,
Quando pela alva o campo está calado,
Ouviste-la?
Achastes no escuro ermo do bosque
O bardo do amor, da tristeza o bardo?
Achastes sorriso, sinais de choro
Ou um brando olhar de mágoa pejado,
Achaste-lo?
Suspirastes ao som da mansa voz
Do bardo do amor, da tristeza o bardo?
Ao avistardes um moço no bosque
E chocando em seu olhar mirrado,
Suspirastes?
(1816)
E para encerrar esta crônica, deixo-lhe um poema de Pushkin, feito muito claramente a partir de um texto bíblico, tirado do livro do profeta Isaías, cap. 6, em que o profeta se declara “um homem de lábios impuros” que habita com um povo (também) de lábios impuros; e para quem a solução salvífica vem pela mão de um serafim (um anjo) que com uma brasa viva tomada ao altar com uma tenaz.
E a solução final é dada: “Tendo esta brasa tocado teus lábios, teu pecado foi tirado, e tua falta, apagada”. Este Pushkin sobreviveu ao suposto autor do citado diário. Carpeaux considerava este poema como a mais famosa poesia lírica de Pushkin.
O profeta[ii]
Com o espírito morto de sede,
Rojo-me num deserto escuro,
E voa um anjo de seis asas
Na encruzilhada dos meus rumos.
Com dedos leves como o sonho
O serafim toca-me os olhos:
Uns olhos profetas se abriram
Como os da águia assustada.Eis que me assoma os ouvidos
E os enche de alvoroço:
Escuto o tremer do céu, o alto
Voo dos anjos, o deslizar
Subáqueo do monstro marinho
E a rosa a crescer no vale.
Sobre minha boca se inclina
E arranca a língua ardilosa,
Carpideira, iníqua e vã,
E com a dextra ensanguentada
Põe o dardo da sábia cobra
Na minha boca silenciada.
Com a espada me corta o peito,
O meu coração latejante
Despega, e no vão negro do seio
O anjo mete a brasa viva.Estou, como morto, no deserto
E a voz de Deus por mim clama:
“Ergue-te, ouve e vê, profeta,
Da minha vontade te tomes
Mares e terras percorre, queime
Teu verbo o coração dos homens.”[1826]
No próximo artigo desta série, ocupar-me-ei detidamente da tradução de Dário Moreira Castro Alves fez, durante uma década, de “Eugênio Oneguin”. Até lá!
[i] PUSHKIN, Alexandr S. “O cavaleiro de bronze e outros poemas”, tradução, introdução e notas por Nina Guerra e Filipe Guerra. Lisboa: Ed. Assírio & Alvim, 1999, pág. 77. Mantive o respeito à ortografia original pré-Acordo e o tom lusitano dos tradutores.
[ii] Idem, pág. 94-95.