Notas sobre a civilização do espetáculo (1)

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Perguntar o que resta do conceito de civilização seria perguntar o que resta da cultura. Nesta era da civilização do espetáculo essa questão parece banal e cada vez mais irrelevante porque as pessoas acreditam que “cultura é diversão e o que não é divertido não é cultura[i]*”.

Dia desses, minha mulher me pediu um socorro para uma de suas reuniões de negócio. Ela queria um resumo do conceito de civilização, uma espécie de passeio na história que concluísse com uma espécie de um mantra: “Civilização é…

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Teria sido mais fácil recorrer ao escritor inglês Gilbert Keith Chesterton que sinalizou o tema com uma técnica simples que esta crônica revelará ao final.

De início, deixe-me valer da frase lapidar com que ele descreve civilização. “O essencial acerca da civilização é que se trata de um caso complexo.” Lancemos um olhar a essa complexidade, em algumas crônica literárias, a partir de hoje.

E é no meio dessa “multiplicidade de coisas, dessa multiplicidade de provas” que se torna tão difícil responder à pergunta embaraçosa do autor inglês: “por que você prefere a civilização à selvageria?”

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Franklin de Oliveira, maranhense. (1916, São Luís – 2000, Rio de Janeiro)

Recorri, pois, a um de meus mestres do ensaio o pensador maranhense Franklin de Oliveira[ii], para quem:

“A palavra civilização denota o cultivo social, quer dizer: de algo que não é só o estar junto, o ser companheiro, o estar reunido um-com-o-outro”.

A isso está atrelado o conceito de progresso, a ideia de perfeição, de aperfeiçoamento sem o que a civilização se torna uma noção ausente.

Para Franklin, na concepção essencialmente pragmática pela qual se define uma sociedade — toda sociedade – deve ser acentuado esse aspecto de unidade de crenças. É, pois, “significativo que a ideia de civilização tenha surgido antes de aparecer a palavra que a definiria.”

Os gregos chamam civilização de “polis”; para os romanos, era a “civitas“. Bárbaros eram os outros, barbárie, a vida dos outros povos, isto é, aqueles excluídos da vida na “politeia“, da “civitas“; para os gregos, bárbaros – “hoi barbaroi” — eram os estrangeiros.

Mas “na Idade Média, isso mudou [evoluiu] porque um decreto do Imperador Marco Aurélio Antonino estendeu o direito de cidadania romana a todos os habitantes do imenso Império Romano.

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Marcus Aurelius (Museo del Prado). Artist
Anonymous Italian, Século XVI.

E o segundo fato foi o advento da fraternidade cristã. O somatório desses dois fatores ampliou a noção de civilização sem, contudo, forjar o respectivo conceito.

Aí vem o poeta florentino Dante Alighieri e age como profeta, ao escrever o livro “Il convivio”, base filosófica para a sua imortal Divina Comédia, concluído, ao repetir Aristóteles que “a ideia de civilitas [civilização em latim] pertence à toda a espécie humana, à humanidade inteira”.

Assim sendo, mesmo para comunidades africanas que em pleno século XXI convivem com aberrações como o Boko-Haram – perguntaria o leitor mais atento?

Sim, prossigo. E parece incontornável estender o tema para a relação entre civilização e barbárie, assunto que não caberia nessas poucas páginas.

Por isso, retornemos a Dante que com sua genialidade deu à palavra convívio (civilizacional) um aspecto político, uma espécie de direito universal à felicidade humana, agindo como profeta entre os poetas e reabilitando o conceito aristotélico de “felicidade da vida civil ou da vida contemplativa”.

Franklin de Oliveira entende que Dante “transformou a noção de civilização num programa de ação política consubstanciado no direito do homem de buscar a sua felicidade”.

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Portrait of Dante Alighieri, 1495. Sandro Botticelli.

Como se sabe, Franklin era um distributivista e foi por isso que ousou dizer que “Dante antecipou em quase cinco séculos o direito que iria ser inscrito na Declaração de Direitos de Virgínia[iii] (1776) — direito esse que é a procura obsessiva dos atormentados homens de nosso tempo“. Este cronista não polemizará com o crítico maranhense. Não por ora.

Agora, voltando à minha mulher, dito daquele jeito, não parecia mesmo haver grande coisa para adicionar ao que dissera o poeta italiano, se eu escolhesse não polemizar. De qualquer forma, ainda assim seria necessário forjar um mantra.

E eu tentei este: civilização é o estágio alcançado por um povo, um nação, uma comunidade de certo domínio da Natureza, obtido através da ordem e da disciplina, conjunto que dá a seus membros uma “ordem interior”- esta que garante ao conjunto dos membros um domínio sobre os instintos primários e, externamente, a ordem política que lhes garante o direito à busca da felicidade individual

Fiz uma ressalva: há pré-requisitos para tamanho desenvolvimento, seja no Egito ou na Pérsia, na Babilônia ou na China, na Inglaterra vitoriana ou nos Estados Unidos da Declaração da Independência.  E outra ainda: que a felicidade dita é individual e se baseia na obtenção de no mínimo direito a um teto, à livre expressão, ao alimento e à arte.

De novo, me socorro em Franklin de Oliveira, que cita o pensador holandês Johan Huizinga, para forjar os requisitos da existência de uma civilização:

1) um certo grau de domínio da Natureza física, com técnicas científicas e industriais; 2) um indispensável equilíbrio entre progresso tecnológico e o domínio do homem sobre a natureza física; 3) um correspondente progresso moral expresso no domínio que este homem tem sobre a sua própria natureza; e, finalmente, 4) a existência de um “ideal comum” – aquela espécie de “community of belief” [unidade pela crença comum], como característica da feição espiritual de uma época ou de um povo.

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Civilização urbana com todos os pré requisitos de modernidade do Século XXI. (Foto: Lawrence Macaron)

O pensador judeu-alemão Eric Voegelin[iv] chama essa unidade unificante de “ecúmena”, termo que tomou de empréstimo a Heródoto, que o aplica ao império persa. Para Heródoto a Pérsia englobava todo o mundo cultural conhecido e fora organizado em linhas imperiais, como uma formação imperial multicivilizacional.

Em nosso tempo, alerta Voegelin, há “ecúmena global que se tornou igualmente um campo potencial de organização para impérios ideológicos como foi a ecúmena menor para os persas no tempo de Heródoto”.

Voegelin reforça “a ideia cristã da humanidade como [sendo] a de uma comunidade cuja substância consiste no Espírito em que os membros participam; a ´homonoia[v]`, que é conceito grego de ordem e unidade dos membros. Esta afinidade de opiniões através do Espírito que se torna carne em todos e em cada um deles os funde numa comunidade universal da humanidade.”

Ao contrário disso, um “ser deficiente em organização espiritual e equilíbrio” cai facilmente na tentação de submergir-se numa personalidade coletiva – de um partido político, uma causa etc.

Um homem assim, atormentado por inseguranças, frustrações, medos, agressividades, obsessões paranoicas, ódios incontroláveis etc. terá como “fuga” a submersão numa “personalidade coletiva”, praticando o que Voegelin chama de “tribalismo[vi]” – que é uma resposta à imaturidade.

As tribos emergem na “crise de uma civilização” e são de uma eficácia política considerável, embora temporária, para certos movimentos políticos que podem assim ocupar espaços deixados nas brechas do colapso de uma civilização.

Tal nos parece ser os caso do “Estado Islâmico”, bem como do Boko Haram, nos dias hoje; ou do nacional-socialismo e do stalinismo no século passado.

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Boko Haram, grupo terrorista da Nigéria fundado por Mohammed Yusuf, que nasce justamente através dessa brecha proporcionada por uma determinada crise social/política, apontada pelo autor desta crônica. (Foto: Reprodução)

Antes de fazer a embaraçosa pergunta Chestertoniana ao leitor inteligente: “por que você prefere a civilização à selvageria?” seria interessante remontarmos à história e reencontrarmos as grandes civilizações do passado.

Falo do Egito e da Babilônia – esses dois monstros primevos, essas duas grandes civilizações”. Ah, o Egito, esta civilização que se construiu ao lado do Nilo – “uma faixa verde ao longo do rio que margeia a desolação rubro-escura do deserto.

Segundo um provérbio da antiguidade, diz Chesterton em “O homem eterno”: “o Egito foi criado pela misteriosa abundância e quase sinistra benevolência do Nilo”.

O Nilo que alimentou o Império Romano, outra civilização que nos legou tanto. E dos gregos, dos judeus e dos chineses, outros tantos exemplos civilizacionais nos chegaram a este que é o tempo da civilização do espetáculo.

E o que quer dizer “civilização do espetáculo”? Vargas Llosa nos responde: “É a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigentes é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal.”

Não há nenhum mal em divertir-se, diz o peruano vencedor do Prêmio Nobel, mas transformar em valor essa propensão natural a divertir-se tem consequências inesperadas” – afirma Llosa e lista:

  1. Banalização da cultura;
  2. Generalização da frivolidade;
  3. Proliferação do jornalismo irresponsável, da bisbilhotice e do escândalo – isso no campo da informação.
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Comediante Carioca “divertindo” e distribuindo bananas aos jornalistas (outros atores deste conjunto civilizatório) no Planalto Central. Outra amostra desta civilização do espetáculo, atuando na política (Arquivo Blasting News)

E para que esta crônica, que se vai alongando demais e se complicando – que é bem diferente de ser complexa – deixo a pergunta (enquete) aos meus seis leitores: “Por que você prefere a civilização à selvageria?”- (liste alguns exemplos de atos e coisas). Lembre-se de que: todas as civilizações, das pirâmides às muralhas da China, dos hieróglifos à escrita cuneiforme, da binóculo à nave espacial – todas, criaram coisas e incentivaram-nos a fugir da futilidade.

Sim, a civilização criou uma miríade de coisas. E essa multiplicidade de coisas e feitos é que devia fundamentar uma resposta esmagadora, e que às vezes se torna a resposta impossível – por que prefiro a civilização à selvageria, por que prefiro à Civilização clássica à do espetáculo?

No caso do Chesterton, que era antes e, sobretudo, humorista, alguns itens foram lembrados: a polícia inglesa; o piano, e o aquecimento das casas (na época a velha e boa lareira) – isso que para os insulares tem tanto valor no inverno quanto pra nós, tropicais, teria (e tem) o ar-condicionado.

E assim pensando, deixo-lhe leitor, com o desafio de que você próprio encontre seu próprio mantra sobre a Civilização Brasileira, que, lamentavelmente, decai antes de ter ascendido ao topo do desenvolvimento.


[i] VARGAS LLOSA, Mário. “A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura”. Trad. Ivone Benedetti. 1ª. ed. – Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2013. 208 pp.

[ii] OLIVEIRA, Franklin. “Literatura e civilização”. – Rio de Janeiro: Difel; Brasília: INL, 1978.

[iii] [A Declaração de Direitos de Virgínia é uma declaração de direitos estadunidense de 1776, que se inscreve no contexto da luta pela independência dos Estados Unidos da América]

[iv] VOEGELIN, Eric. “Anamnese: da teoria da história e da política”. Introdução David Walsh; Trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. – S. Paulo: É Realizações, 2009, pág. 499 e ss.

[v] “Homonoia – Wikipedia.” Link consultado em 07/04/2020: https://en.wikipedia.org/wiki/Homonoia.

[vi] VOEGELIN, Eric. “História das ideias políticas: a crise e o apocalipse do home / Edição de texto e introdução David Walsh; trad. Elpídio Mário Dantas Fonseca. 1ª. ed. – S. Paulo: É Realizações, 2019, pág. 140 e ss.

6 thoughts on “Notas sobre a civilização do espetáculo (1)

  1. Do que se conclui, é a lentidão no processo civilizatório do ser humano. Civilizatório no sentido de busca de elevação de comportamentos e princípios. Esta é a máxima impossível de ser negada. Hoje, o mundo parado, e tantos assistindo live de músicas artistas pop e ou torcendo no BBB. E assim já o era desde muito, muito. O circo ainda distrai na necessidade de pão no presente humano.

  2. Excelente trabalho! O tema pode ser bem complexo. Julgo não ter pulmão nem bagagem filosófica para mergulhar no tema em águas mais profundas que aquelas de simplórias considerações. Todavia, penso serem as fronteiras que delimitam o que chamamos civilização e o que poderemos chamar de selvajaria muito mais ténues que gostaríamos. Os selvagens duelos à metralhadora a que os habitantes do Rio de Janeiro são submetidos desde os pavorosos favelões que dominam uma cidade de internacionalmente cantada e encantada “civilização”, são um perfeito exemplo de como os poderes civilizadamente constituídos e legislados, são completamente desprovidos de força e moral para se fazerem cumprir. A Lei sem força, resulta invariavelmente em força sem Lei. Nada há de “civilizado” nisto!
    Eu poderia então flanar sobre um qualquer Kimbo (aldeia) de uma das muitas etnias de Angola, que poderia ser por exemplo “Cokwe” com suas milenares tradições e obediência aos seu Soba, como um exemplo de civilização funcional, embora com um quê de tribal. E aí já seria matéria para citar Desmond Norris.
    Desculpe ter-me alongado

  3. Obrigado, amigos NELSON e LUCIANA, pela atenta leitura e gentis comentários, mas ainda não responderam à pergunta final que propus ao leitor(a): ““Por que você prefere a civilização à selvageria?”- (liste alguns exemplos de atos e coisas). Lembre-se de que: todas as civilizações, das pirâmides às muralhas da China, dos hieróglifos à escrita cuneiforme, da binóculo à nave espacial – todas, criaram coisas e incentivaram-nos a fugir da futilidade.”
    Se (e quando) puderem, responda aqui ou pelo email (que possuem), pois usarei alguns insights nos próximos textos.
    Grande abraço do BETO.

  4. Brilhante texto! Nos dias de hoje vejo que aquilo que deveria ser a civilização produz cada vez mais a selvageria. Não sei pensar em civilização sem pensar em hipocrisia e no assassinato do conceito de arte.

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