Notas sobre a civilização do espetáculo (2)
Encerrei minha crônica anterior com uma afirmação e uma pergunta: a civilização criou uma miríade de coisas. “Por que você prefere a civilização à selvageria?” Essa multiplicidade de coisas e feitos é que devia fundamentar uma resposta esmagadora, e que às vezes se torna a resposta impossível – por que prefiro a civilização à selvageria, por que prefiro à Civilização clássica à do espetáculo?
Pouquíssimas foram as respostas dadas em público pelos meus poucos leitores.
Um amigo virtual achou explicação para o baixo índice de respostas: a falta de espontaneidade, o medo de incorrer em erro (ou o insucesso na resposta), enfim, uma espécie de não entendimento sobre a natureza da questão (pessoal), que se colocou mais na linha chestertoniana de gerar um chiste que fosse também uma síntese do que pensa o leitor sobre a civilização.
Outra amiga (também virtual) deu-nos uma resposta digna de uma capacidade de “riso bergsoniano”, ao afirmar que as coisas que mais preza na civilização são: “artes, bebidas, inseticida e liberdade para não se casar”.
De fato, eis-nos diante de um momento em que é preciso avançar. Quanto mais leio sobre a civilização do espetáculo, mais vontade me dá de dedicar o dobro de horas a compreender a civilização tout-court, aquela propriamente dita, que no caso judaico-cristão, vai se formando na Idade Média, com o húmus que lhe dá a cultura antiga.
Mas era preciso ler sobre o tema para dele se libertar. Continuei na companhia do meu Vargas Llosa, culpado pelo primeiro contato, que me levou a Guy Debord, o pioneiro – ou, como ele diz de si mesmo:
“Quando uma pessoa só dispõe da fama que lhe foi atribuída como um favor pela benevolência de uma Corte espetacular, pode cair em desgraça instantaneamente. Uma notoriedade antiespetacular tornou-se algo raríssimo. Sou um dos últimos a possuir esse tipo de notoriedade, sem nunca ter tido outro. Isso tornou-se altamente suspeito. A sociedade proclamou-se oficialmente espetacular. Ser conhecido fora das relações espetaculares equivale a ser conhecido como inimigo da sociedade”.
E isso de fato foi o que aconteceu com Debord, que foi sistematicamente ignorado pela mídia francesa, desde que lançou, em 1967, seu já clássico “A sociedade do espetáculo” – um livro errado, mas espantosamente lúcido e demolidor, precursor de toda análise crítica da moderna sociedade do consumo.
Com um entusiasmo algo exagerado, seu editor no Brasil afirma que “quanto mais o tempo passa, mais atual se torna esse livro de Debord, pois, como avalia Jean-Jacques Pauvert, “ele não antecipou 1968, antecipou o século XXI”.
E por que o livro de Debord se salva?
Vargas Llosa afirma que o livro contém “achados e intuições”, apesar de aceitar como “verdades canônicas a teoria [marxista] da história como luta de classes e a ´reificação` ou ´coisificação` do homem por obra do capitalismo”, colocando neste sistema a culpa “pela criação artificial de necessidades, modas e apetites, a fim de manter um mercado em expansão para os produtos manufaturados”.
A tese de Debord é mais sobre economia, filosofia política e histórica do que cultural, até porque, ainda segundo Llosa, porque “fiel também nisso ao marxismo clássico, [Debord] reduz a superestrutura das relações de produção que constituem os alicerces da vida social”.
As coincidências entre alguns achados e intuições de Debord e a argumentação conservadora de Llosa são:
i. a ideia de “substituir a vivência pela representação, fazer da vida uma espectadora de si mesma, implica em empobrecimento do humano”;
ii. “num meio em que a vida deixou de ser vivenciada para ser apenas representada, vive-se “por procuração”, como os atores vivem a vida fingida que encarnam num cenário ou numa tela;
iii. “O consumidor real torna-se um consumidor de ilusões” – essa lúcida observação seria mais que confirmada nos anos posteriores à publicação do seu livro (1967);
iv. Consequência desse processo: a “futilização” domina a sociedade moderna.
Aqui, começam as divergências entre Vargas Llosa e Debord, pois este defende que “a crítica à sociedade do espetáculo só será possível se for feita como parte de uma crítica prática ao meio que a possibilita, prática no sentido de ação revolucionária decidida a acabar com a referida sociedade”.
Nesse aspecto, sobretudo, o trabalho de Llosa se contrapõe frontalmente ao de Debord.
São valiosos esses aspectos que Vargas Llosa nos traz sobre a sociedade do espetáculo para confrontarmos com o mundo da civilização e da alta cultura.
Tomemos em bloco algumas observações de Vargas Llosa para nos livrarmos logo desse mal-estar que o Debord nos causa e podermos voltar a tratar da Civilização, mesmo estando convictos de que há da parte do escritor peruano um certo tom amargo em relação ao futuro da cultura (e por conseguinte da civilização).
A civilização do espetáculo, ao contrário do que pensa Debord, “está cingida ao âmbito da cultura, não entendida como mero epifenômeno da vida econômica e social, mas como realidade autônoma, feita de ideias, valores estéticos e éticos, de obras artísticas e literárias que interagem com o restante da vida social e muitas vezes são a fonte, e não o reflexo, dos fenômenos sociais, econômicos, políticos e até religiosos.”
Ao analisar o livro “Mainstream”, do sociólogo francês Frédéric Martel, (2010), Llosa diz: que “a diferença entre a cultura do passado e o entretenimento de hoje é que os produtos daquela pretendiam transcender o tempo presente”, ao passo que os produtos da civilização do espetáculo são “fabricados para serem consumidos e desaparecer, como biscoitos ou pipocas”.
Um livro de Tolstoi, Thomas Mann ou ainda Joyce ou Faulkner estão no polo oposto ao das novelas brasileiras ou de um show de Shakira, diz o escritor peruano.
A mudança no quadro de valores é uma mudança traumática que atinge até a boa-intenção. A facilitação formal do acesso ao conteúdo dos produtos culturais tido como propósito cívico de atingir a maioria da população levou à quantidade em detrimento da qualidade.
As piores demagogias políticas beneficiam-se disso, como agora o vemos executando nas milhares de “lives” pelo planeta afora, muitas delas manifestação de interesses políticos passageiros e demagogia barata.
Nem o ilustre prêmio Nobel nem este cronista estão contra “uma maneira agradável de passar o tempo” em meio à quarentena do tempo atual, mas, é inaceitável que se equipare e se uniformize tudo, ao extremo, ao ponto de “que se tornem equivalentes” uma ópera de Verdi, a filosofia de Kant, um show dos Rolling Stones e uma apresentação do Cirque du Soleil.
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A ausência da “crítica” em nossos meios de informação está, segundo Llosa, entre as causas deste tipo de equívoco. Antes, tínhamos como certo e fundamental o papel da crítica e dos analistas sérios, como um Edmund Wilson ou, entre nós, um Carpeaux ou Álvaro Lins, Temístocles Linhares e Franklin de Oliveira.
Hoje, ao contrário, temos os “publicitários” e o poder dos “legisladores invisíveis” (os membro da mídia, vista como 4º. Poder, cf. o conceito de Dalrymple) – jornalistas e relações públicas engajados em promover, “youtubizar”(se), vender.
Massificação e frivolidade andam juntas, é que nos prova a realidade atual, até mesmo nos agentes públicos. Assim surgem os presidentes que ou foram “celebridades” e conquistam o poder ou tentam influenciá-lo com suas opiniões, do que podem ser exemplos Trump, presidente dos EUA de um lado, e Roger Waters, no outro espectro.
E o que deve fazer o intelectual nesse conflito? “Consta que a denominação `intelectual´ só nasceu no século XIX, durante o caso Dreyfus, na França, e as polêmicas desencadeadas por Émile Zola, com seu célebre “Eu acuso”, escrito em defesa do oficial judeu acusado falsamente de traição.
“(…) os produtos da civilização do espetáculo são ‘fabricados para serem consumidos e desaparecer, como biscoitos ou pipocas’”.
E se o termo tornou-se popular a partir de então, a função do “intelectual” vem de antanho, dos tempos da Grécia de Platão, da Roma de Cícero, do Renascimento de Montaigne e Maquiavel, no Romantismo de Lamartine e Victor Hugo e em todos os períodos históricos que conduziram à modernidade”.
A presença de Vargas Llosa prova que esse papel ainda não está obsoleto, mesmo que este ironize dizendo que “na civilização do espetáculo, o intelectual só interessará se entrar no jogo da moda e se tornar bufão”. Sem querer entrar nesse jogo e antes de poder voltar a tratar da cultura da Civilização do Ocidente, minha próxima investida nesta série de artigos, permita-me o leitor transcrever um trecho mais animador de Vargas Llosa, alvíssaras para que possamos tirar o foco neste “mudo-tela”, em que o poder da literatura se vai esvaindo:
“Não está em poder do jornalismo por si só mudar a civilização do espetáculo, que ele contribui a forjar. Essa é uma realidade enraizada em nosso tempo, a certidão de nascimento das novas gerações, uma maneira de ser, de viver e talvez de morrer do mundo que nos coube, a nós, felizes cidadãos destes países, a quem a democracia, a liberdade, as ideias, os valores, os livros, a arte e a literatura do Ocidente ofereceram o privilégio de transformar o entretenimento passageiro na aspiração suprema da vida humana e o direito de contemplar com cinismo e desdém tudo o que aborreça, preocupe e lembre que a vida não é diversão, mas também drama, dor, mistério e frustração”.
Ah, ao finalizar esta crônica, cabe-me dizer que as três ou quatro coisas que tenho como favoritas na Civilização e que dela me fazem um devoto contra a barbárie são: as catedrais, o ar-condicionado e os livros, esperando poder explanar aos meus seis leitores sobre os porquês da escolha em outros artigos.
À suivre!
Minibio de um Prêmio Nobel sul-americano:
MARIO VARGAS LLOSA – Jornalista, dramaturgo, ensaísta e crítico literário, é um dos mais importantes escritores da atualidade. Nascido em Arequipa, no Peru, em 1936, viveu em Paris na década de 1960 e lecionou em diversas universidades norte-americanas e europeias. Autor de uma extensa obra literária, foi vencedor dos prestigiosos prêmios Cervantes, Príncipe de Astúrias, PEN/Nabokov e Grinzane Cavour. Em 2010, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre outros livros, o leitor encontra em boas traduções recentes, os títulos “Conversa no Catedral”, “A guerra do fim do mundo” (sobre a Guerra de Canudos), “A Festa do Bode”, “Travessuras da menina má”, “O herói discreto” e sobre o fazer literário o já clássico “A orgia perpétua”. A sua mais longa e interessante entrevista foi dada ao jornalista brasileiro (e amigo) Ricardo Setti “Conversas com Vargas Llosa”. Os artigos de Llosa são publicados regularmente pelo jornal “El País” – https://elpais.com/autor/mario-vargas-llosa/ O autor divide seu tempo atualmente entre Londres, Paris, Madri e Lima.
Uma verdadeira pérola. As primeiras notas são excelentes, profundas, coisa e tal. Mas essas, com o Llosa e tudo o mais é magnífico. Obrigado, Beto!