Poetas em tempo de penúria [Érico Nogueira]
O jovem poeta, tradutor e professor de Letras Érico Nogueira[i] atesta com sua escrita o que o crítico Carlos Felipe Moisés dissera no posfácio a “O livro de Scardanelli”: “Érico é talvez um dos indícios mais fortes de que a moderna poesia brasileira vive hoje um momento crucial, de alta criatividade, a demonstrar a evidência de que, em tempo de penúria, os poetas são extremamente necessários, e imprescindíveis.”
Ele próprio, Érico, faz um balanço rápido em seu livro “Quase Poética”, incluindo nomes antigos e novos, como prova dessa alta criatividade poética brasileira: Nelson Ascher, Affonso Romano de Sant´Anna, Alexei Bueno, Bruno Tolentino, Gerardo Mello Mourão, Alberto da Cunha Melo, Carlos Felipe Moisés, Paulo Henriques Britto, Cláudio Neves, Marcos Catalão, João Filho, Wladimir Saldanha, etcétera, etcétera.
A poesia de Érico Nogueira expõe e sua crítica propõe toda uma série de dificuldades inerentes à grande arte. Basta para isso a citação tirada do ensaio “A dificuldade da Poesia[ii]”:
“É, leitor, infelizmente é assim: poesia é um negócio meio difícil mesmo, não há o que fazer. É claro que toda grande arte, quando exercida com competência, tem lá uma boa dose de complexidade, sem dúvida; mas a poesia – e, em especial, a grande poesia – parece que nunca chega a descer facilmente pela goela do público leitor. No fundo ela é como Campari: doce no início, amarga no final, e restrita a um grupo de excêntricos”. O que me fez lembrar de pronto da poetisa polonesa Wislawa Szymborska, pois, afinal, este “grupo de excêntricos” não passa de “uns dois em mil”, neste versos assim traduzidos por Regina Przybycien:
Alguns gostam de poesia
Alguns —
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
Santo Agostinho afirmou que “o tempo é a imagem móvel da Eternidade”. Nada haverá, pois, que possa resistir à memória fugaz desta crônica que não seja o olhar do Eterno e para o Eterno. E bem assim da (e para a) boa poesia.
Bem antes de Agostinho, Heráclito de Éfeso, retomado pelo filósofo (e bom cronista) Vicente Ferreira da Silva[iii]. E tudo flui porque “existir é coexistir”. Tudo flui porque “uma só coisa é em nós o vivo e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o velho; unicamente que ao inverter-se umas resultam as outras e, ao inverter-se estas, resultam aquelas”.
E é nesse “fluidismo absoluto” – recorda-nos Ferreira da Silva que “todas as ilhas do ser [são] dissolvidas no rio ilimitado do vir a ser”.
Os coros das tragédias, ao tempo de Heráclito, os oráculos misteriosos e os búzios lançados ao nosso redor, nenhuma Sibila antiga ou hodierna dão conta com mesma eficácia que a Poesia, quando a Sabedoria é o prêmio o que se pode obter do vir-a-ser, da compreensão da passagem do tempo diante de nossas rotinas e retinas cansadas.
Ao homem do século XXI a quem pouco importa uma Paidéia e em que a poesia não passa de um divertimento reservado àqueles “dois em mil”; ela mesma poesia tornou-se um ritual para iniciados; a ansiedade do tempo presente que a todos domina – faz da poesia, como nos tempos de Hölderlin, algo mais do que necessário em “tempos de penúria”
As iluminações dos poetas, o visionarismo dos Santos e dos heróis situam-se num patamar de importância significativamente maior para todos nós; de Heráclito, a Vicente Ferreira da Silva – eis o caminho para os homens que ainda são capazes de ter esperança, nesta era sombria, mais, muito mais do que buscar incessantemente as “pálidas abstrações de nossa ciência vã[iv]”.
Ter diante de si o livro do jovem poeta e professor de literatura Érico Nogueira (“Quase poética”) pode ser um prêmio, dileto leitor. É um livro que se impõe diante de nós como um desafio de aprendizado e comunicação. O cronista tem consciência de estar diante de um grande, mas deve se esforçar para obter o melhor da leitura diante de um autor no vigor criativo de seus quarenta anos.
Sabe-se logo que se está diante de alguém acima da média que pode ensinar porque teve a humildade de aprender. Acima porque tomou a “poesia como Autodescoberta; autoanálise. Autoconhecimento”, sempre na linha de Bruno Tolentino.
Eis-nos diante de um livro de múltiplas possibilidades de aprendizado – da polêmica com Domenek até os estudos sobre a poesia de Leopardi e de Friedrich Hölderlin, da carta de Hugo von Hofmannsthal, traduções ainda de Giacomo Leopardi e Luciano de Samósata “Arte e Moral…” – estudo dedicado ao polêmico pensador (e agitador político) Olavo de Carvalho.
É na polêmica com Domenek (ensaio “Poética da fé e poética do cepticismo”) que descobrimos nosso autor como seguidor da poética do cepticismo, por acreditar que “aquilo que um maior número de homens, em idades e geografias diversas, tem julgado poeticamente bom constitui o único critério razoável e seguro do fazer poético”; na busca por desocultar “os critérios, por assim dizer, do absoluto do poeticamente bom”, e insiste que é preciso exercer esta busca novamente, tarefa que se destina a repetição a cada nova geração. Érico Nogueira, conclui:
Quanto a mim, subscrevo o adagio latino: Homo sum: nihil humani a me alienum puto. Ou seja: “Sou homem: nada de humano julgo que seja alheio”. Operando, pois, sob o signo da semelhança, busco nos tempos, nos lugares, nos indivíduos e nos poemas aquilo que me parece uni-los, isto é, uma possível (e precária) “universalidade”.”
Merece “tirar o chapéu”. Digo isso porque vejo em Nogueira um exemplar de sobrevivente da poesia num mundo feito à medida para repudiá-la. Tendo encontrado mestre certo na hora certa (Bruno Tolentino), Érico Nogueira se aperfeiçoou no domínio da sua arte, e tendo estudado Filosofia e Letras Clássicas, tornou-se um escritor diante de quem o leitor perdoará até mesmo alguns excessos de erudição – característica, talvez, dos poetas geniais e traço marcante do mestre Tolentino.
Nogueira abre espaço entre os grandes desde sua estreia com “O livro de Scardanelli”; o homem simples que gosta de futebol e cerveja, bebeu o vinho dos gregos e latinos, olhou de frente, na condição de “protopoeta em seus dezoito anos”, depois de ter pego uma insolação, sob o sol da caatinga em que reside a poesia do modelar João Cabral de Melo Neto; teve a chance de ser pupilo de Bruno Tolentino; de beber na Tradição podendo então escrever esta “Quase Poética” para o século XXI.
Na primeira parte do livro, temos uma seleção de artigos, traduções e comentários sobre poesia e poetas; a segunda traz textos que o autor diz ser destinado “aos acadêmicos”, por serem longos, sobre Dante e Tácito. A terceira parte traz traduções de textos em prosa – de Leopardi, Hofmannsthal e Luciano de Samósata; e a parte IV, final, é uma longa entrevista do autor a Ronald Robson, de 2016.
Da primeira parte, importo esta tradução de um poema do hermético poeta inglês Geoffrey Hill, a cuja obra Érico diz ter sido conduzido à leitura pela mão do mestre Bruno Tolentino, e a quem considera como um dos poetas prediletos.
Before senility | Pré-Senectude |
dum possum volo* | dum possum volo |
Intermezzo of sorts, something to do with gifts. | Intermezzo daqueles, algo, como um dom. |
In plainer style, or sweeter, some figment | Mais leve (ou doce) o estilo, figurar-se |
of gratitude and reconciliation | agradecido e reconciliado |
with near things, with remmancy and love | com coisas próximas, com ruína e amor: |
to measure the ouwnerless, worn, eighteenth- | medir anônimas, setecentescas |
century tombstones realigned like ashlar; | lápides realinhadas qual silhar; |
encompass the stark storm-severed head | cingir o escuro, tempesteado rosto |
of a sunflower blazing in mire of hail. | de um girasol que esplende no granizo. |
É sintomático que este livro seja iniciado por essa tradução de um poema Hill, tão rara em português, que venha a perseguir o bom-gosto, como na tradução também rara em português, do poema “Afinidades secretas” de autoria de Théophile Guatier; mas que principalmente, se torne desafiador no sentido de propor ao leitor “uma reconciliação entre perfeição artística e inteligência moral”. Isso pode causar sintonia.
Para Érico, “em poesia…bem, há suor em meio a uma longa e tortuosa tomada de consciência – melhor ficar quieto… “There is no singing school but studying / monuments of its ow magnificence” – o velho Yeats já dizia!
Érico Nogueira estreia com uma cara de clássico; que é para onde volto meus olhos, de modo a retirar a poeira da ansiedade derivada do fluidismo absoluto: Hölderlin.
O poeta Érico e o filósofo Vicente aqui se aproximam pela via da contradição. Vicente[v] dissera nos idos dos anos 60 que “o pensamento só pode pensar o que foi aberto pela palavra desocultante da poesia”. O autor de “O livro de Scardanelli” demonstra poder navegar com propriedade no campo da crítica.
Recorro aqui à afirmação de Tolentino em “O mundo como ideia”, livro que sabemos é bastante admirado por Érico: “You say I am repeating…” – até parodiando meus maiores, mas pouco importa se o que tenho a dizer já foi dito melhor mais de uma vez, vou dizê-lo de novo – “Shall I say it again?”
É o expediente que, sem temor e com muita personalidade, repete Érico Nogueira desde seu livro de estreia.
Proponho que o leitor desta crônica, releia este poema de Érico Nogueira, emulado do poeta alemão Frederico Hölderlin, cuja poesia se tornou uma “mistura de helenismo e messianismo”. O original se intitula Lebenslauf (“Curriculum vitae)[vi]” e foi emulado por Érico Nogueira em “O livro de Scardanelli”, sob o título de “Envoi”:
Envoi
Querendo ser maior, vi que o amor
rebaixa tudo, a cólica nos curva;
o nosso arco não acerta a fruta
se a sua corda não estoura.
Em noite densa, em que não luz a lua,
quando a natura sonha um outro astro,
me achei no fundo Orco, tão bizarro,
tão arredio ao nosso olho:
isso eu vivi. Pois nunca, nunca os deuses
permitiriam que eu vivesse o mesmo
que esses mortais, e que como um covarde
me arrastasse ao rés-do chão:
não, não, que minha boca prove tudo;
a tudo grata então, que ela se abra;
que eu seja um sol, que só de mim dependa
pra levantar, ser tudo ou nada.
Na entrevista a Ronald Robson, na parte IV de “Quase Poética”, Érico se diz um homem simples, ligado às mais caras tradições brasileiras da cerveja-e-futebol – que é, na verdade, um sofisticado leitor dos clássicos, um poeta-pensador da cultura, um que encontrou uma forma de dizer em meio ao fluidismo que nos envolve a todos – direto da Academia em que ensina, como um de seus mestres – Geoffrey Hill e outros poetas.
Penso que Érico, assim como Wladimir Saldanha, Wagner Schadeck e João Filho estão entre os que, certamente, devem fazer parte do cânone da poesia brasileira deste século XXI. E vejo que hora de reatar os bilros do início desta jornada.
Exalto a bela aula que está no livro “Quase poética” – humilde no título como no da estreia drummondiana “Alguma poesia” e faço um apelo: leiam o Érico, poetas! Leiam-no e estudem-no, professores, leitores e amantes da poesia!
Leiam o Érico, contadores, comerciantes, professores de literatura e de botânica. Leiam-no: é alegria garantida encontrar um poeta-crítico-professor de tão alta estirpe, entre nossos contemporâneos.
Érico demonstra conhecer o significado da “maravilhosa serenidade, da abundante doçura e da perseverança que transborda”; é um escritor que sabe ainda se alegrar com os que se alegram; que confessa padecer de inveja por poucos semelhantes – (e quando o faz, torna-se digno do perdão consolador) –, como na declarada simpatia pelos poetas baianos Wladimir Saldanha e João Filho.
Até a expressão dessa “inveja” parece-nos ser da natureza de uma “mediação externa” (Girard), onde o modelo enseja o conflito, mas fazendo deste motivo de pura especulação intelectual, produzindo Cultura, de uma forma agregadora, aproximando-nos da mimese criadora que gera Civilização.
Isso se dá em termos que o torna uma espécie de invejoso simpático, quando se expressa sobre o livro “Lume cardume chama”, de Wladimir Saldanha nestes termos:
– Que livraço, pungente, singelo e ingênuo bem neste sentido de que falamos [no comentário sobre “As horas de Katharina” e o poema exordial “Adeus”, de Bruno Tolentino].Queria escrever como ele [Wladimir], ah queria, este é um dos melhores livros de poesia que tenho lido nos últimos tempos, ao lado de “A dimensão necessária” do também baiano João Filho (que definitivamente não integra o time dos líricos “puros”, porém)”.
É esse poeta-crítico a quem apresento como mestre (para mim maior que o doutor a que ele tem direito por titulação acadêmica!), mestre no sentido original do que constrói uma Paidéia, daquele que está apto e sabe ensinar, diante de quem o leitor se faz aprendiz. Um poeta desta grandeza é capaz de expressar-se com a simplicidade dos nobres: “que alegria ler fulano”; ou: “que feliz fortuna a minha” por ter as primícias da obra de um poeta novo – ou sobre uma obra que lhe é enviada para escrutínio de especialista.
Só me resta, amparado num filósofo e em um santo, saudar o Érico Nogueira que premia seus leitores com sua poética de alto nível. “Quase poética” é um esforço muito bem-sucedido de desocultação da crítica e da poesia em tempos de penúria, i.e., onde os poetas são mais que necessários.
[i] Publicações de Érico Nogueira: 1 – “Contra um bicho da terra tão pequeno” (2018) – https://bit.ly/2xlSvxn
2 – “Quase Poética” (2017) – https://bit.ly/2L5dwhF 3 – Poesia Bovina (2014) – https://bit.ly/2kxaHLb; 4 – “Verdade, Contenda e Poesia nos Idílios de Teócrito” (2013) – https://bit.ly/2sg0OWi; 5 – “Dois” (2010) – https://bit.ly/2kA2iXx; 6 – “O Livro de Scardanelli” (2008) – https://bit.ly/2ISCh4d
[ii] NOGUEIRA, Érico. “Quase Poética”. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017, pág. 159.
[iii] Vicente Ferreira da Silva, “Transcendência do mundo: Obras completas”. Org: Petronio, Rodrigo. Posfácio: Julián Marías; Agostinho da Silva; Per Johns e Dora Ferreira da Silva. É Realizações, 2010.
[iv] Vicente Ferreira da Silva, livro citado, pág. 278.
[v] Vicente Ferreira da Silva, livro citado, pág. 269.
[vi] NOGUEIRA, Érico. “Quase poética”. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017, p.180-1.
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