A arte de pinçar exceções

Thiago Kuerques

Fala-se muito em amostragem, teste, vacina, dosagem, tudo por conta da pandemia que assolou o mundo em 2020. Por um lado, os que torcem para os testes obterem sucesso. Do outro, os que passam a utilizar de qualquer argumento frágil para confirmar que determinada vacina não vale. Ou de que determinado remédio é eficaz. Essa lógica obedece a um movimento bastante popular – e populista – de tentativa individualizada de que a qualquer custo estejamos todos certos e os outros todos errados.

Cherry Picking é um termo britânico que, em tradução livre, significa “apanhar cerejas”. É um tipo de falácia utilizada pela lógica do debate público. No meio acadêmico, Cherry Picking significa “evidência suprimida”, a arte de pinçar exceções. Consiste em escolher casos específicos para comprovar uma tese geralmente controversa. Essa forma de citação fora de contexto atravessou todas as fronteiras: está na conversa com os filhos, na mesa do boteco, na reunião de trabalho e, principalmente, na argumentação de “influenciadores digitais”. Reside nesse último grupo de pessoas o maior perigo, justamente pelo alcance que o Cherry Picking ganha.

Imagine, por exemplo, o teste de uma vacina. Em 100 pessoas, 10 ficaram imunes a determinada doença. Em um debate, com o intuito de defender a eficácia dessa vacina, o sujeito traz cinco pessoas onde o teste fez efeito positivo. A ideia é de que pinçando apenas as cerejas boas a colheita inteira foi boa. É o que acontece com a maçã, a pera, o pêssego e as uvas de supermercado em bairro rico.

Nas redes sociais, poucas pessoas percebem que já vivem no mundo imaginado pela plataforma Second Life, lançada em 2003 pela estadunidense Linden Lab. O Second Life é um jogo com ambiente que simula virtualmente a vida real e social do ser humano. Entre Twitter, Instagram e Facebook, os debates de nicho são a força motriz para as interações. Quem odeia algo pega um pequeno exemplo pra reforçar o ódio e convencer os outros de que o certo é odiar também. Os odiados também podem fazer por vezes do mesmo expediente. Obviamente um lado faz muito mais que outro e, se fosse comparável, seria este um artigo da Folha de São Paulo, veículo mestre de falsas equivalências.

É a prática do Cherry Picking que muitos negacionistas utilizam para contrariar evidências vastas de racismo, por exemplo. O caso do homem negro assassinado por seguranças do Carrefour é um grande exemplo disso: bastou a informação – já desmentida por imagens de câmera de segurança – de que o homem teria desferido o primeiro soco para que isso sirva de exemplo para comprovar a tese, ignorando todos os outros casos, de que racismo não existe.

Em entrevista ao jornalista Guilherme Azedo, do UOL, o economista Samuel Pessôa afirmou que “a polícia de São Paulo aumenta a expectativa de vida dos jovens negros e pobres das periferias paulistas”. Ele mesmo reconhece ser uma “fala superforte” e que “as pessoas de esquerda vão ficar loucas da vida comigo”. A ideia então é a já estereotipada do intelectual: pensar em uma tese especial e inédita (ou absurda) e tornar pública para que o autor seja mais reconhecido que a tese. É óbvio que ele usa também de Cherry Picking, porque suas cerejas escolhidas a dedo ignora o contexto, se baseia na redução pura da taxa de homicídios e ignora qualquer outro motivo (muito mais plausível) que a simples defesa policial. O que acontece? Barulho.

Que a vacina que venha seja eficaz. Que nossos debates possam ser um pouco mais honestos. Uma obviedade: nem toda colheita é boa porque nem nós somos. Tem momentos que fazemos a mesma coisa de pinçar uma evidência suprimida, às vezes de forma inconsciente. Resta-nos, então, a arte de despinçar, inclusive a nós mesmos.

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