A coerência crítica e o caos aparente nas colagens de Valêncio Xavier
Na literatura contemporânea, a colagem, recurso amplamente utilizado na maioria dos movimentos de vanguarda do início do século XX, na pop arte e na poesia visual, empresta ao texto um efeito artesanal. Algumas partes do livro são componentes estranhos à literatura convencional e ao próprio significado de texto. Fotos, pedaços de jornal, bilhetes, manchetes e anúncios transformam o texto em produto de bricolagem e relativizam o conceito de autoria.
A autoria, na colagem, é responsável pela seleção e pela organização dos materiais, de modo a propor um novo significado, pela recontextualização de elementos antes pouco utilizados no contexto da arte e pela articulação de elementos às vezes essencialmente diferentes no significado, na função que desempenham e no valor estético. No ready-made, técnica muito usada por Marcel Duchamp nas artes plásticas e por Oswald de Andrade na literatura, a criação dava-se a partir de coisas prontas. No entanto, o fazer da nova arte propunha novos modos de usar e ver determinados objetos, redimensionando-os e rompendo com a convenção artística.
Ao fragmentar algo já pronto e escolher algumas peças para formar um novo conjunto, o artista descontextualiza para recontextualizar. Nesse processo é que ocorre a mudança que faz evoluir o conceito de arte e o significado do próprio objeto. Evidentemente, a transformação, que exige nova postura do leitor/espectador, é resultado da ação crítica do artista diante do objeto reutilizado. Valêncio Xavier utilizou a colagem em vários textos. Dentre inúmeros elementos que ajudam a compor as narrativas do autor, o jornal é o mais utilizado. A mistura é inusitada, para muitos, porque rompe com a divisão feita pelo senso comum, segundo a qual a literatura é sinônimo de ficção e o jornal, de realidade. Ao emprestar notícias de jornais, Valêncio Xavier chama a atenção do leitor para a manipulação discursiva, demonstrando que o texto jornalístico, como qualquer outro, é mera construção sobre um fato.
O autor, inclusive, age, na criação de seus livros, como um redator de jornal. Ele seleciona as palavras; escolhe como dar a notícia. O fato pode ser o mesmo, mas ele é, invariavelmente, apresentado com variações, nos diferentes jornais, que têm linhas editoriais distintas e, consequentemente, público e linguagem também divergentes. Desse modo, fica claro que as características do jornal e o estilo do autor influenciam na criação textual. É certo que o Jornalismo, assim como a História, são vinculados à realidade, mas Valêncio Xavier revela a simplificação grosseira que existe por trás dessa e de qualquer outra categorização.
O principal objetivo da utilização de textos de jornal dentro do texto literário é a desmistificação do status da imprensa e dos discursos produzidos por ela. Para os leitores especializados, é fácil perceber que tudo é construção. É como se os fragmentos de textos jornalísticos emprestassem as características dos textos do universo ficcional, de que agora são parte. Em contrapartida, ao leitor comum, a notícia de jornal se sobrepõe ao texto literário, que de verossímil passa a ser considerado real por muitos leitores, que não duvidam de nada veiculado nos meios de comunicação de massa. Sendo assim, essas pessoas também não encontram motivos para desconfiarem de uma história que é feita com recortes de jornais. Esse efeito paradoxal de afirmação da realidade do texto literário pelo jornal e de negação do vínculo do jornal com a realidade pela literatura é resultado da dissolução da fronteira que, antes, separava realidade e ficção. Atualmente, essa distinção não existe mais:
O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado (...). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos mas nos sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. (HUTCHEON, 1991, p. 122, grifo no original)
Valêncio Xavier, ao tirar as notícias de seu contexto de origem, dá espaço ao questionamento sobre os limites da realidade e da ficção, confirmando os postulados de Linda Hutcheon e de outros teóricos da pós-modernidade. As colagens que caracterizam os textos do autor escolhidos para análise podem ser um convite à reflexão ou uma armadilha que pode fazer o leitor desconsiderar a ficcionalidade da literatura. A escolha depende do perfil do leitor e, consequentemente, de sua predisposição ao jogo intelectual ou ao mero entretenimento.
O mez da grippe
Na novela O mez da grippe, dois jornais são utilizados na composição do texto literário: Commercio do Paraná e Diário da Tarde. Desde o início, já na epígrafe, o texto faz alusão à construção textual e à verossimilhança: “Esta macabra execução é de cera, colorida com tanta naturalidade que a natureza não poderia ser, nem mais expressiva, nem mais verdadeira” (XAVIER, 2002, p. 9). A referência à “execução de cera” afirma o caráter ficcional do texto, que “colore” a realidade. No entanto, o leitor é advertido de que a mudança é tão sutil que não é capaz de tornar o texto uma simples história.
Essa realidade é conferida ao texto pelas notícias dos dois jornais. Apesar de o autor ter “resumido” e de ter feito “pequenas mudanças que não alteram significativamente o sentido do que é reproduzido” (BARREIROS, 2003, p. 113), é certo que “as notícias de jornais de fato foram publicadas no Commercio do Paraná e no Diário da Tarde. Quase sempre, estão mesmo nas datas citadas no livro” (BARREIROS, 2003, p. 113). Entretanto, para o leitor que, durante a leitura da novela, acompanha atentamente o que foi noticiado, em um e em outro jornal, nos meses de outubro e novembro de 1918, fica evidente que os dois veículos tinham preocupações muito distintas. Enquanto o Diário da Tarde informava sobre a epidemia de gripe espanhola, o Commercio do Paraná ignorava o fato e dava apenas informações sobre a Primeira Guerra Mundial.
Essa diferença na linha editorial dos dois jornais enfatiza bastante o questionamento sobre o status do discurso jornalístico, afinal, ao escolherem assuntos completamente diversos, os veículos assumem posições que marcam a parcialidade de seus discursos (Fig. 1). Sendo assim, desmistifica-se a ideia de que o texto jornalístico é neutro. Como qualquer texto, ele é uma construção narrativa: “Apesar da vocação para o ‘real’, o relato jornalístico sempre tem contornos ficcionais” (SATO, 2005, p. 31, grifo no original).
Na imagem, o uso da colagem evidencia as diferenças ideológicas de ambos os jornais. Além disso, é salutar que, na parte superior da figura, sejam mostrados fragmentos que anunciam eventos artísticos, como se fosse possível desviar a atenção do público de situações mais sérias, como a guerra e a epidemia. Mais abaixo, os recortes opõem as notícias. Ainda assim, o conflito bélico aparece em destaque, na forma de manchete, enquanto a gripe espanhola assume caráter secundário, parecendo uma nota.
Valêncio Xavier, em O mez da grippe, usa os jornais para reconstruir um curto período de tempo da História de Curitiba. Porém, essa intenção não assegura um relato verdadeiro. Para fazer sua novela, o autor escolhe notícias, fotos, testemunhos e anúncios, que, justamente por serem aqueles os escolhidos para compor o livro, e não outros, revelam determinado ponto de vista e acabam direcionando a leitura e a percepção do leitor. O discurso literário, assim como o jornalístico e o histórico, implica seleção. E é essa seleção que relativiza a neutralidade da História e do Jornalismo, comumente associados à realidade.
Por essa razão, as histórias de Valêncio Xavier tentam validar a ideia de que todo texto é narrativa, ou seja, é criação. Um jornal, por exemplo, ao escolher quais os fatos que virarão notícia, faz o mesmo trabalho do historiador (e de qualquer outro escritor): “Tanto o discurso jornalístico como o histórico fazem uma síntese a partir de uma pluralidade de vozes” (SATO, 2005, p. 33). A história, como o jornal, também era associada à verdade, mas passou a ser questionada, a partir do momento em que ficou claro que todo tipo de discurso recebe uma carga significativa de subjetividade, como indicam as respostas a estas perguntas: Quem escreveu a história? Com que propósitos? Quais eventos o autor do discurso escolheu registrar e por quê?
Raymundo Faoro faz menção à construção do discurso histórico, no artigo O espelho e a lâmpada, do qual se destaca este trecho:
A escolha, a seleção de um fato entre fatos sem número depende da conexão do valor (…) — num dia, ocorrem mil coisas, desde o afogamento de um marinheiro até o assassínio de César. O que ficou na percepção do historiador e o que feriu a sensibilidade dos contemporâneos foi o gesto de Brutus. Na seleção, que deixou uma personagem no anonimato e realçou outra, intervém o valor, que moldou o conhecimento. Criminosos o ato ou patriótico? — a indagação, entregue ao julgamento de valor, indica outro movimento interior, este mais particularizado, composto de paixões partidárias ou de preferências individuais. O valor cultural relevante está presente na configuração seletiva do historiador como na obra literária. (FAORO, 1982, p. 416)
Além disso, há também o problema da manipulação das informações pela imprensa. Levando em conta a imensa repercussão do que é publicado em um meio de comunicação de massa, em época de epidemia era preciso evitar o caos e um meio eficaz de conseguir isso era usar eufemismos e não publicar o número real do total de mortos pela doença. Isso prova que o jornal nem sempre tem autonomia. Nesse caso, era função do Estado manter a sociedade sob controle e os jornais tinham papel fundamental nesse processo.
Para expor esse problema e chamar atenção para o fato de nem sempre o texto jornalístico privilegiar a verdade, Valêncio Xavier cria um personagem, Dona Lúcia, cujos depoimentos alternam-se com os textos dos dois jornais, na novela. Em entrevistas sobre sua obra, o autor afirmou que Dona Lúcia, na verdade, era a mãe de Poty Lazarotto, que, além de amigo, foi parceiro de Valêncio Xavier, em vários projetos artísticos. Em um trecho, Dona Lúcia diz: “Como saber quantos morreram? O governo não ia dizer o número verdadeiro dos mortos para não alarmar. Até hoje, ninguém sabe ao certo” (XAVIER, 2002, p. 39).
A contradição não para por aí. Em outros dois depoimentos, Dona Lúcia afirma: “Famílias inteiras. Não houve casa que não tivesse alguém doente. Parecia a cidade dos mortos” (XAVIER, 2002, p. 21); “Os primeiros mortos tinham mortalha, eu mesma costurei algumas. Depois era de qualquer jeito, faltou até caixão. Vinham buscar os mortos, antes de enterrar tiravam do caixão pra servir para outro” (XAVIER, 2002, p. 33). Os dois trechos citados, porém, não combinam com as informações oficiais, transmitidas pelo jornal Diário da Tarde. Na última página da novela, é reproduzido um relatório assinado pelo doutor Trajano Reis, diretor do serviço sanitário, na época. De acordo com os dados do documento (XAVIER, 2002, p. 78), das 45.249 pessoas doentes de gripe, apenas 0,84% morreram. E o livro termina assim, com a contradição evidente entre o exagero de Dona Lúcia e o eufemismo do jornal.
Outro exemplo que relativiza o caráter factual dos textos jornalísticos é a notícia sobre um louco que assassina várias pessoas, no hospício Nossa Senhora da Luz, em Curitiba. Os dois jornais usados na novela informam o crime, mas de modos diferentes. Embora ambos os textos sigam o estilo sensacionalista, o texto do Comercio do Paraná dá mais detalhes. Outra distinção importante é que o Diário publica a notícia no dia seguinte ao fato, enquanto o outro jornal dá a informação dois dias depois do ocorrido. O paralelo poderia incluir diferenças sutis, mas uma informação desencontrada e de fundamental importância é responsável por reacender o debate sobre a credibilidade das informações publicadas pelos jornais. Os dois periódicos fazem referência à idade do assassino, mas um informa que ele tinha 22 e o outro que tinha 32 anos. A diferença é grande, pode ser considerada até mesmo grotesca, mas não é uma raridade.
Sem contar as fake news, que constituem um fenômeno à parte, existem muitos dados incorretos, diariamente, nos jornais. Geralmente, eles ocorrem porque a fonte falha e as incorreções podem colocar em descrédito o veículo que publica a notícia: “(…) o jornalismo, produto industrial, precisa de esquemas para captação de notícias, dos quais a fonte é uma das principais. As fontes podem constituir posições estereotipadas (…)” (SATO, 2005, p. 32). No entanto, uma diferença que não é estilística, mas que comprova o erro de um dos periódicos, envolve até mesmo questões éticas, pela probabilidade de erros, como o citado acima, serem frequentes, pela não confirmação do dado apurado.
Já no que se refere aos temas privilegiados pelos jornais (a gripe espanhola, pelo Diário; e a guerra, pelo Commercio do Paraná) e à diferença na linguagem, percebida na notícia do assassino do hospício, o fator condicionante é o perfil de cada periódico. No caso do crime, por exemplo, as particularidades de cada texto servem para comprovar que “a narrativa jornalística parece contígua ao fato, mas (…) variações de jornal para jornal refletem a angulação de cada veículo (…)” (SATO, 2005, p.32). Desse modo, apenas a multiplicidade pode servir de contraponto para o reducionismo de um texto, mesmo que ele tenha, a priori, e teoricamente, total compromisso com a realidade.